O "espantalho" e o debate perigoso |
[Leia
este texto com seu detectômetro de falácias ligado e depois o comentário
abaixo.] Vencer um religioso num debate é sempre muito difícil. O fato de você
ter argumentos melhores do que ele não o imuniza contra a possibilidade de ser
derrotado. Tome-se como exemplo o apologista cristão William Lane Craig, o virtuose cristão na arte de fazer absurdos parecerem
críveis. Craig acredita que Deus um dia se fez homem, que, apesar de ser
imortal, veio ao nosso planeta para morrer pelos nossos pecados, porque
aparentemente sua sabedoria não o habilitou a conceber outra maneira de nos
redimir, e que, depois de ser crucificado, provou que tudo não passava de uma
farsa ressuscitando, o que, entretanto, não nos dispensa de lhe sermos gratos,
sob pena de sermos condenados ao inferno... Mas, apesar de acreditar em todas
essas maluquices, que capacitariam qualquer pessoa a ser internada num
hospício, Craig se sai muito bem nos debates, vencendo a maioria deles. Isso
nos leva a uma pergunta: Se as crenças religiosas são manifestamente ridículas,
de onde vem o talento dialético dos devotos?
Talvez
haja várias respostas para isso. Não pretendo examinar aqui todas elas.
Limito-me a apontar a pista deixada por Marcos na famosa disputa entre Cristo e
os saduceus. Eis o trecho em que ela aparece: “Ora, vieram ter com ele os
saduceus, que afirmavam não haver ressurreição, e perguntaram-lhe: ‘Mestre,
Moisés prescreveu-nos: Se morrer o irmão de alguém, e deixar mulher sem filhos,
seu irmão despose a viúva e suscite posteridade a seu irmão. Ora, havia sete
irmãos; o primeiro casou e morreu sem deixar descendência. Então o segundo
desposou a viúva, e morreu sem deixar posteridade. Do mesmo modo o terceiro. E
assim tomaram-na os sete, e não deixaram filhos. Por último, morreu também a
mulher. Na ressurreição, a quem destes pertencerá a mulher? Pois os sete a
tiveram por mulher.’ Jesus respondeu-lhes: ‘Errais, não compreendendo as
Escrituras nem o poder de Deus. Na ressurreição dos mortos, os homens não
tomarão mulheres, nem as mulheres, maridos, mas serão como os anjos nos céus’”
(12,18-25).
Considero
essa passagem formidável, nem tanto pela “sabedoria” da resposta de Cristo, mas
porque ela sintetiza, com poucas palavras, o que acontece quando um cético se
põe a discutir com um religioso. Ora, no momento em que esse diálogo ocorre, a
possibilidade da ressurreição, objeto da controvérsia, ainda não havia sido
provada. De fato, ela só seria provada - caso você aceite os evangelhos como um
relato histórico - depois de Cristo ser crucificado e ter ressuscitado.
Portanto, naquela altura do campeonato, o ceticismo dos saduceus era legítimo,
e o desafio lançado por eles teria sido irrespondível se Cristo não tivesse se
socorrido da sua astúcia dialética: a sobreposição de ficções. Observe no
trecho citado que, embora considerado o vencedor do debate, ele não prova
nenhuma das duas afirmações que faz: nem que a ressurreição é real, nem que
viveremos como anjos nos céus. Seu método consiste em salvar uma ficção com
outra, como se empilhar ficções fosse um método válido para provar a verdade de
alguma coisa.
Marcos
não informa qual foi a reação dos saduceus diante dessa resposta ladina, mas
não é difícil imaginar. Eles devem ter ficado tão perplexos com a fantasia que
perderam a voz. E talvez tenha sido melhor assim: se tivessem continuado a
pressionar seu adversário, o filho de Deus teria inventado uma terceira ficção
para salvar a segunda, uma quarta para salvar a terceira, uma quinta para
salvar a quarta, e assim por diante.
Os
cristãos aprenderam muito bem esse truque. Quem já duelou com eles sabe
que é preciso ter um fôlego descomunal para levar uma discussão até o fim, uma
vez que a imaginação desses romancistas é sempre muito fértil. Diante de uma
nova dificuldade, eles não têm qualquer dificuldade em acrescentar outros
capítulos. Imagine-se o seguinte diálogo entre um ateu e um religioso a
respeito do chamado argumento da sintonia fina, uma bobagem muito popular entre
os que querem acreditar:
R:
Há muitos indícios fornecidos pela ciência de que o Universo está finamente
ajustado para acomodar a vida. A Terra tem certa inclinação, está localizada a
tal distância do Sol, as forças nucleares forte e fraca possuem determinado
valor e assim por diante. Se qualquer um desses parâmetros fosse diferente, a
vida seria impossível.
A:
Mas, se tudo foi ajustado para que houvesse vida, por que tudo morre, incluindo
nós? Deus teve tanto trabalho para ajustar o Universo em benefício de futuros
cadáveres?
R:
Mas não existe morte, pelo menos para nós. A morte é apenas uma aparência.
Somos todos dotados de uma alma imortal.
A:
E onde está essa alma que nunca ninguém viu?
R:
Ela é invisível.
A:
E o que acontece com ela depois que nós morremos?
R:
Ela vai para o paraíso ou para o inferno, conforme foram boas ou más as ações
do homem aqui na Terra.
A:
Mas e se uma pessoa morrer antes de ter tido tempo de praticar boas ou más
ações. Para onde é que ela vai?
R:
Para o paraíso.
A:
E como é que você sabe?
R:
Porque Deus é infinitamente misericordioso. Ele não mandaria para o inferno um
ser tão frágil etc., etc.
O
fato de sermos mortais deveria ter arruinado a hipótese de que o mundo foi
ajustado para possibilitar a vida. Mas o religioso a salvou com a afirmação não
provada de que a alma é imortal, que por sua vez foi salva pela afirmação não
provada de que ela é invisível, que por sua vez se salvou com a afirmação não
provada de que existem um inferno e um paraíso, que se salvou por fim com a
afirmação não provada de que a misericórdia de Deus é infinita...
Comentário do amigo
Frank Mangabeira: “Quem realmente é mais racional numa
discussão que envolve visões de mundo antagônicas: o ateu ou o religioso? O que
é racionalidade? Ela pertence exclusivamente à mente ateia? Como
podemos ser racionais utilizando as Escrituras para ‘explicar’ o
sobrenatural e as proposições religiosas do cristianismo? Artigos de fé podem
ser tratados racionalmente? O texto acima não faz jus à realidade do debate;
apenas cria um espantalho para depois atacá-lo. Só concordo numa coisa: a
doutrina do inferno defendida no maciço mundo cristão (cujo fundamento é a
errônea doutrina da imortalidade da alma), além
de antibíblica é antirracional. Ela constitui um ‘bom motivo’ para se
desprezar Deus. No entanto, o ateísmo poderia reconsiderar a discussão; em
vez de rejeitar Deus deveriam rejeitar aquilo que Ele nunca declarou em Sua
Palavra. No demais, com um bom testemunho e uma boa argumentação purificada de
heresias, os religiosos pensantes ainda são imbatíveis num debate. É tanto que
os ateus andam preocupados com cristãos que raciocinam, pois a própria
racionalidade, que eles arvoram como exclusividade sua, tem, e muito,
ajudado na defesa da existência de Deus. Difícil não é vencer um debate;
difícil é o homem abandonar seu orgulho e reconhecer a força das evidências.
Difícil, para essa natureza humana altiva, é dobrar-se racional, existencial e
emocionalmente perante Deus. Mas Ele ainda convida: ‘Vinde, pois, e
arrazoemos’ (Isaías 1:18). Acho que os ateus fundamentalistas e autocentrados
no seu ‘eu racional’ desconversam, pois não estão muito ‘a fim de papo’. Para
eles, esse ‘trololó’ parece muito chato, desinteressante, antirracional,
destituído de sentido, irrelevante e... perigoso.
Todavia, parecer não é ser. Sendo assim, o diálogo permanece aberto. Para
benefício da razão.”