quarta-feira, setembro 30, 2015

O ciclo semanal se perdeu ao longo da História?

É possível guardar o sábado hoje
A Bíblia é, por excelência, o livro mais influente do Ocidente. Por mais secularizada que seja uma pessoa, ela sempre se depara com elementos extraídos das páginas do livro sagrado de cristãos e judeus. Uma de suas influências mais marcantes diz respeito à contagem do tempo. A divisão do dia em doze horas, da semana em sete dias, e do ano em doze meses são medidas de tempo que estão registradas nas páginas da Bíblia. São praticamente universais, pois apenas poucas culturas sem muita expressão adotam medidas de tempo diferentes (e, entre os que adotaram contagens de tempo alternativas, como os revolucionários franceses do século 18 e os soviéticos no século 20, há os que fizeram isso para demonstrar claro inconformismo com a notória influência judaico-cristã da semana de sete dias nos calendários tradicionais).

No caso da semana, a duração de sete dias é atribuída na Bíblia ao período que Deus empregou para criar tudo o que há no mundo. Nos seis primeiros dias, o Criador executou Sua obra de criação. No sétimo dia, o sábado (do hebraico shabbath, “descanso”, “pausa”, “cessação”), Deus encerrou a semana da criação com uma ocasião de descanso e culto. Em geral, os seguidores da Bíblia observaram o sábado como dia de especial para descanso religioso durante o período de sua composição (que se encerrou no fim do primeiro século d.C.). Após isso, os judeus piedosos, que rejeitaram a segunda parte da Bíblia, o Novo Testamento, continuaram a ter o sábado como dia de descanso, enquanto boa parte dos cristãos foi gradualmente adotando o dia seguinte ao sábado, que passou a ser chamado de domingo (do latim Dominus die, “dia do Senhor”), como o novo “sábado” cristão.[1] Ao longo da história cristã, apenas grupos periféricos continuaram observando o dia correspondente ao shabbath judaico. Para os cristãos sabatistas, o sábado corresponde ao dia definido por Deus ao final da semana da criação, e seu preceito transcende as disposições da lei mosaica referentes ao templo e às cerimônias da economia hebraica. Para os cristãos que observam o domingo, a justificativa para a mudança de dia de culto pela maior parte da cristandade varia, mas em geral está associada à ressurreição de Cristo ou à tradição da igreja cristã.

Alguns cristãos observadores do domingo, no entanto, apresentam outro motivo para não cumprirem o descanso semanal aos sábados, conforme a Bíblia indica. Segundo eles, durante os milênios desde a semana da criação e a proclamação dos Dez Mandamentos no Monte Sinai, a contagem dos dias da semana muito provavelmente teria se perdido. Portanto, a conclusão a que chegaram é que o dia por nós conhecido como sábado pode não ser o dia correspondente ao sétimo dia da semana da criação. Sendo assim, a celebração cristã no domingo se justificaria pela tradição, já que seria impossível recuperar o verdadeiro sétimo dia do ciclo original. Mas será que o argumento procede? Há evidências para uma interrupção história da contagem da semana? É possível garantir que o ciclo semanal foi registrado ininterruptamente desde a criação do mundo?

 Para entender esse argumento, primeiro é preciso saber como o ciclo semanal poderia ter-se perdido, se é que isso aconteceu. Eventualmente, uma pessoa isolada pode, distraída, não saber qual é o dia da semana. Porém, se forçar um pouco a memória, poderá recuperar um evento que definitivamente ocorreu em um dia específico da semana e contar os dias seguintes até chegar ao dia presente. E isso com certeza será mais fácil se determinados eventos ocorrerem em dias específicos do ciclo semanal. Apesar de ser ficção, a história de Robinson Crusoé ilustra a improbabilidade dessa suposição. Após 25 anos perdido numa ilha deserta, o marinheiro do romance sabia exatamente o dia da semana em que resgatou um selvagem da gula dos canibais, a ponto de nomeá-lo “Sexta-feira”. Seria possível para uma pessoa em isolamento social completo manter a perfeita contagem do ciclo semanal ao longo de décadas? Não é irrazoável supor que sim, desde que a pessoa se proponha a não perder a contagem do tempo e não seja tão inculta a ponto de não ter noções básicas de calendário. No romance, o herói Crusoé conseguiu. Mas não estamos tratando de um único sujeito perder a contagem de tempo, o que já é difícil, mas de uma cultura completa perder a referência de semana.

Consideremos que é bastante improvável para um povo alfabetizado perder a contagem do ciclo semanal. E, se pelo menos um dia específico da semana possui um significado cultural e impõe quebra da rotina, pode-se arriscar dizer que é impossível uma nação inteira perder a contagem dos dias da semana.

Para afirmar que a semana original se perdeu em algum momento da história, é preciso comprovar que o povo hebreu, de quem herdamos a semana, durante algum tempo deixou, coletivamente, de registrar as datas em um calendário. Para que isso tenha acontecido, é preciso concluir que a história israelita combinou, durante algum tempo considerável, retrocesso cultural, em que a esmagadora maioria da população era analfabeta, com apostasia religiosa generalizada, a ponto de a guarda do sábado ser completamente abandonada. Essa apostasia teria que ter, inclusive, interrompido durante algum tempo o funcionamento do santuário israelita. Afinal, havia rituais específicos para sábados, luas novas e outras datas comemorativas. Portanto, somente se houvesse uma interrupção completa das atividades do santuário, pode-se considerar verossímil a perda da contagem do ciclo semanal por parte do povo hebreu (isso, considerando que nenhuma outra civilização da época utilizasse a semana de sete dias, o que é bastante difícil de comprovar, já que vários povos não relacionados aos hebreus utilizaram uma semana de sete dias e seu sétimo dia era o sábado).[2]

Não há registros suficientes na Bíblia nem na História para verificar uma perfeita continuidade da contagem semanal desde a criação do mundo até a proclamação do Decálogo. Mas, se não podemos saber quanto a semana, sabemos pela Bíblia que, nas eras mais antigas da humanidade, a contagem do tempo era bastante importante. O Gênesis traz minuciosos relatos do tempo de vida de todos os seus personagens principais. As cronologias bíblicas desse período somam as idades de cada geração e tentam harmonizá-las com eventos contemporâneos marcados pela história secular. Se anos eram contados e registrados com tanto cuidado, a ponto de Moisés, o autor do Gênesis, ter conhecido as idades precisas de cada um de seus antepassados, não há por que imaginar que houvesse uma perda da referência de períodos de tempo menores, como a semana, antes de Moisés.

Ao se empenhar na libertação dos hebreus da escravidão, Moisés desperta o respeito pelo sábado entre o povo (Êxodo 5:4). Após o êxodo do Egito, a data do sábado é confirmada de modo sobrenatural pela dupla porção de maná no dia de preparação para o sábado e na ausência do milagre aos sábados (Êxodo 16). O fenômeno se repetiu durante quarenta anos, confirmando a vontade de Deus com respeito ao sétimo dia.

O texto dos Dez Mandamentos relaciona o sábado ao sétimo dia da semana da criação (Êxodo 20:8-11). Deus restabelece a observância do sábado indicando o dia correspondente ao sétimo dia da semana da criação. Portanto, durante a magistratura mosaica, o dia correspondente ao sétimo dia da semana da criação foi honrado de forma especial.

Mas o período entre a conquista de Canaã e o advento da monarquia unida é o menos definido da cronologia bíblica. A era semianárquica dos juízes é uma pedra no sapato de quem quer datar os eventos bíblicos pré-davídicos. Foram anos em que o ciclo de apostasia nacional, opressão e restauração se repetiu. Como o calendário hebreu era regulado por festivais religiosos, entre eles o sábado, é de se imaginar que, durante os tempos de apostasia, as datas, talvez, não fossem marcadas com tanta precisão. Aparentemente, na ausência de um governo central e de um templo fixo, as celebrações religiosas talvez não tivessem muita adesão nos períodos de apostasia generalizada e, assim, a contagem do tempo se perdeu. Fato?

É bastante difícil que a contagem do tempo tenha se perdido durante os eventos relatados em Juízes. Primeiro porque os israelitas eram, em geral, alfabetizados. Uma evidência bíblica disso está em Juízes 8:14. Na passagem, um rapaz (ou escravo) escreve vários nomes para o juiz Gideão. Ou seja, se mesmo um inculto serviçal era capaz de escrever, muito provavelmente boa parte do restante do povo e principalmente as classes sacerdotais responsáveis pela transmissão da Torá fossem letradas. Achados arqueológicos indicam que a alfabetização não era incomum no levante ao final da Idade de Bronze. O melhor exemplo é o Calendário de Gézer, que, ao que tudo indica, foi escrito por uma criança como exercício escolar no século 10 a.C. As evidências de alfabetização difundida durante o período dos juízes diminuem as possibilidades de a contagem do tempo ter-se perdido.

Deve-se entender também que, mesmo não havendo templo, o tabernáculo armado em Siló permaneceu ativo durante todo o período dos juízes. Em Juízes 21:19, lemos que a peregrinação anual ao santuário acontecia mesmo durante um período turbulento de guerra civil. A menção faz parte do relato de uma ocasião em que o povo praticava idolatria. Aliás, o livro de Juízes registra que o culto aos deuses pagãos coexistiu com a adoração a Yahweh (ver Juízes 6, 18:14-31, e.g.). Portanto, fica difícil afirmar que, mesmo com a apostasia, a guarda do sábado possa ter permanecido completamente suspensa a ponto de o ciclo semanal se perder.

O problema que persiste é a afirmação de que, durante os períodos de dominação estrangeira na terra de Canaã, o ritual do santuário teria sido desativado. Para provar que isso tenha acontecido, seria preciso encontrar, nas cronologias dos juízes registradas na Bíblia, lacunas de tempo. No entanto, não é isso o que acontece. A dificuldade de calcular o período dos juízes existe principalmente por causa de superposição de datas entre os diferentes juízes, afinal, alguns agiram como juízes locais simultaneamente com outros juízes. Por exemplo, é bem possível que os anos iniciais dos quarenta anos do sacerdócio de Eli tenham sido simultâneos aos vinte anos do juizado de Sansão.[3]

Mesmo que a contagem do tempo houvesse se perdido na era dos juízes, o próprio fato de profetas, inspirados por Deus, apelarem posteriormente para uma reforma do dia especial de culto a Deus levaria a crer que o dia perdido estaria recuperado por intervenção divina. Porém, mesmo fatores humanos podem perfeitamente ter mantido inalterado o ciclo semanal entre a milagrosa queda de maná no deserto e as manifestações proféticas posteriores.

Qualquer leitor da Bíblia percebe que a cronologia dos eventos bíblicos é bastante complexa. Os antigos hebreus eram aficionados por genealogias e registravam os anos de cada geração. Os anos eram contados pelos reinados dos reis ou pela data do Êxodo. Em 1943, o teólogo Edwin Thiele defendeu uma tese doutoral em Arqueologia pela Universidade de Chicago. Ele elaborou a melhor solução existente para as cronologias dos reis de Israel e Judá. O estudo encontra-se no livro The Mysterious Numbers of Hebrew Kings, publicado pela Zondervan. A partir desse estudo, os intérpretes da Bíblia têm como datar com bastante precisão os eventos registrados a partir do reinado de Davi.

Dificilmente essa possível perda coletiva da contagem semanal teria ocorrido durante ou após o reinado de Davi. A organização minuciosa do serviço sacerdotal estabelecida por Davi e registrada nos últimos capítulos de 1 Crônicas e o funcionamento contínuo do templo construído por Salomão são fatos que diminuem as possibilidades de uma falta de registro de tempo. Tampouco se pode afirmar que houve períodos sem registro de tempo até o exílio. Mesmo durante o reinado da ímpia Atalia, o sábado era conhecido e marcado como dia de encerramento do ciclo semanal (2 Reis 11:5-9). Houve uma tentativa de desprestigiar as celebrações sabáticas durante o reinado do apóstata Acaz (2 Reis 16:18). Mas devemos lembrar que o profeta Isaías foi atuante durante todo o reinado desse rei (Isaías 1:1; 7:1, 2; 14:28); e Isaías foi um ardente defensor da guarda correta do sábado (Isaías 1:13; 56:2, 4, 6; 58:13; 66:23). Afinal, uma observância hipócrita do sábado foi considerada uma das causas da ruína espiritual de Judá (Isaías 1:13, 2 Crônicas 36:21). E, para profetas como Jeremias reconhecerem o desrespeito popular ao sábado (Jeremias 17), é necessário que o sábado fosse conhecido

Durante o exílio, o profeta e sacerdote Ezequiel se destacou como um reformador do sábado, tendo registrado quinze menções ao sábado em seu livro (Ezequiel 20:12, 13, 16, 20, 21, 24; 22:8, 26; 23:38; 44:24; 45:17; 46:1, 3, 4, 12). É atribuída a Ezequiel a criação das sinagogas, instituições que promovem a guarda do sábado entre o povo judeu até hoje. A prática do descanso sabático é levada muito mais a sério após o exílio (ver Neemias 9, 10 e 13; 1 Macabeus 2:32-41; 2 Macabeus 5:25; 6:11, etc.). Nos dias de Cristo, os evangelhos e o livro de Atos registram que o sábado era bem definido entre os judeus e cristãos primitivos.

Portanto, não se pode admitir que o povo judeu tenha perdido a referência ao sábado durante os mil anos entre o reinado de Davi e a composição do Novo Testamento. Após a destruição do segundo templo, a prática e o uso de calendários diferentes entre os judeus dispersos por vários países do mundo indicaria facilmente se um grupo entre eles houvesse, de alguma forma, perdido a contagem da semana. Portanto, pode-se ter bastante certeza de que o sábado definido no calendário gregoriano em 2015 corresponde ao mesmo sétimo dia de um ciclo semanal ininterrupto desde os tempos bíblicos; o mesmo dia que os profetas Neemias, Jeremias, Ezequiel e Isaías apelaram, por inspiração divina, para que o povo santificasse e que interrompessem o trabalho; o mesmo dia no ciclo semanal que regulava os turnos sacerdotais nos dias de Davi; e por sua vez o mesmo dia que os hebreus guardavam no deserto abstendo-se da colheita do maná; e inegavelmente o mesmo dia da semana que o Deus criador separou para descanso após os seis dias em que esteve ocupado com a criação do mundo.

(Fernando Dias é teólogo e editor associado na Casa Publicadora Brasileira)

1. Para mais detalhes a respeito dessa mudança de dia de culto, ver: Bacchiocchi, S., From Sabbath to Sunday – A historical investigation of the rise of Sunday observance in Early Christianity, Roma: The Pontifical Gregorian University Press, 1977; Carson, D. A. Do Shabbath para o Dia do Senhor, São Paulo: Cultura Cristã, 2006; Dourado, A. R. Pausa Semanal, Domingo? ou Sábado? – Na Bíblia e na História, Niterói: Ados, 2010. Andrews, J. N.; Conradi, L. History of the Sabbath and First Day of the Week, Washington, DC. Review and Herald, 1912.
2. Uma boa documentação sobre o sábado como o sétimo dia da semana em diferentes povos encontra-se em: Stein Júnior, Guilherme, Sábado ou o Repouso do Sétimo Dia, Brasília: Sociedade Criacionista Brasileira, 1995.
3. Exemplos de datas historicamente definidas na cronologia bíblica. Note que, na era dos juízes, ocorre uma sobreposição de datas, tornando-se difícil definir as datas precisas, muito provavelmente porque a magistratura de alguns juízes foi simultânea (fontes: Nichol, Francis, Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011-2014, v. 1-7; Thiele, Edwin, The Mysterious Numbers of the Hebrew Kings, Grand Rapids: Zondervan, 1983.


Cronologia dos principais eventos do Antigo Testamento:

Chamado de Abraão (1875 a.C.); nascimento de Ismael (1864 a.C.); circuncisão de Abraão (1851 a.C.); nascimento de Isaque (1850 a.C.); perseguição dos descendentes de Abraão (1845 a.C.); nascimento de Jacó (1790 a.C.); entrada no Egito (1660 a.C.); Êxodo (1445 a.C.); viagem para espiar Canaã (1444 a.C.); travessia do rio Jordão (1405 a.C.); conquista de Canaã (Josué 14:10) (1400 a.C.); morte de Josué (1375 a.C.); servidão sob Cusã-Risataim (8 anos); magistratura de Otoniel (40 anos); opressão sob Eglom (18 anos); magistratura de Eúde e período de paz (80 anos); opressão dos filisteus e juizado de Angar (?); opressão por Jabim (20 anos); magistratura de Débora e Baraque (40 anos); opressão sob os midianitas (7 anos); magistratura de Gideão (40 anos); reinado de Abimeleque (3 anos); magistratura de Tola (23 anos); magistratura de Jair (22 anos); opressão sob os filisteus e amonitas (18 anos); magistratura de Jefté (1107-1101 a.C.); magistratura de Ibsã (7 anos); magistratura de Elom (10 anos); magistratura de Abdom (8 anos); opressão sob os filisteus (40 anos); magistratura de Sansão (20 anos); magistratura de Eli (40 anos); magistratura de Samuel (?); reinado de Saul (1050 a.C.); reinado de Davi (1010 a.C.); conquista de Jerusalém (1003 a.C.); coroação de Salomão (971 a.C.); morte de Davi (970 a.C.); construção do templo (965 a.C.); morte de Salomão (931 a.C.); cisma entre os reinos de Israel e Judá (931 a.C.); reinado de Roboão em Judá (931-913 a.C.); reinado de Asa em Judá (911[910]-870[869] a.C.); reinado de Josafá em Judá (972-848 a.C.); reinado de Acabe em Israel (874-853 a.C.); reinado de Joás em Judá (835-796 a.C.); reinado de Uzias em Judá (792-740[739] a.C.); queda de Samaria e deportação para a Assíria (722 a.C.); reinado de Ezequias em Judá (716[715]-687[686] a.C.); reinado de Manassés (687[686]-643[642] a.C.); reinado de Josias (641[640]-609 a.C.); primeira de deportação para Babilônia (605 a.C.); segunda deportação para Babilônia (597 a.C.); terceira deportação para Babilônia e destruição de Jerusalém (586 a.C.); queda de Babilônia (539 a.C.); decreto de Ciro (537 a.C.); inauguração do segundo templo (515 a.C.); decreto de Artarxerxes (457 a.C.).