Datação sequestrada pela filosofia |
Desde
a ascensão do uniformitarianismo geológico, no início do século 19, muitos na
igreja têm se rendido a essa nova “ciência”. Consequentemente, têm rejeitado a
simples e tradicional interpretação histórico-gramatical dos relatos da criação
e do dilúvio. Com frequência, recorrem a raciocínios equivocados a fim de dar
suporte à sua reinterpretação comprometida. A seguir, discutiremos os três
erros mais comumente cometidos.
Apelando ao “propósito”
do texto
Defensores
da Terra antiga frequentemente apelam ao “propósito” do relato da criação, em
geral reivindicando ser ele primeiramente teológico em vez de histórico. Por
exemplo, Bruce Waltke, citando Charles Hummel, argumenta que Gênesis 1–2 não
seria um relato puramente descritivo respondendo a perguntas do tipo “o quê?”,
“como?” e “o que seria?”[1] Ao contrário, seria prescritivo, uma vez que
responde ao “como”, ao “por que” e ao que “deveria ser”. Consequentemente, o
relato de Gênesis a respeito da criação e da queda discutiria assuntos
teológicos gerais em vez de descrever eventos históricos reais. Similarmente,
Bernard Ramm afirma que as Escrituras “nos dizem enfaticamente que Deus criou,
mas silenciam sobre como Deus teria
criado. Isso nos diz que as estrelas, as flores, os animais, as árvores e o
homem são criaturas de Deus, mas como Deus os produziu não é algo afirmado em
lugar algum nas Escrituras”.[2]
Entretanto,
tal visão simplesmente não se alinha com o que as Escrituras realmente afirmam.
Como Walter Kaiser responde, “[esse é] um óbvio desprezo da frase repetida dez
vezes, ‘e Deus disse’...”.[3] Certamente, a ação criativa de Deus é descrita
com precisão usando os verbos “criou”, “fez”, “disse”, “chamou”, “estabeleceu”,
“formou”, “causou”, “tomou”, “plantou” e “abençoou”. Além disso, essas
atividades são descritas do início ao fim, e se espalham por um período de seis
dias. Em outras palavras, o relato de Gênesis descreve exatamente a forma como
Deus criou, a ordem na qual Ele criou, e o tempo de Sua ação criativa – e assim
entendiam os escritores do Novo Testamento.[4] Se, de outra forma, tudo o que o
autor pretendia comunicar era que “Deus é o Criador de todas as coisas”, então
com certeza o primeiro verso seria suficiente.
Da
mesma forma, Bill Arnold afirma: “A importante lição de Gênesis 1 é que [Deus]
de fato criou todas as coisas, e que Ele o fez de forma boa e ordenada em todos
os aspectos.” Ele adiciona: “Se fosse importante saber quanto tempo levou para
Deus criar o mundo, a Bíblia teria deixado isso claro.”[5] Contudo, o relato da
criação diz explicitamente que Deus criou em seis dias. O primeiro dia foi
seguido por um segundo, terceiro, quarto, quinto e sexto dia, quando a criação
foi finalizada (Gênesis 2:1-2). Êxodo 20:11 confirma que Deus criou “em seis
dias”. O que poderia ser mais claro?[6]
Ninguém
duvida, é claro, de que Gênesis faça uma contribuição teológica fundamental,
mas dizer que Gênesis é primariamente teológico em vez de histórico é
estabelecer uma falsa dicotomia; história e teologia não são mutuamente
exclusivas. “O fato é que toda a Bíblia apresenta sua mensagem como teologia
dentro de um quadro histórico.”[7] Por exemplo, a ressurreição de Jesus é uma
doutrina teológica fundamental, mas seria inútil a menos que tivesse ocorrido
historicamente (1 Coríntios 15).
De
qualquer modo, a intenção e o propósito dos autores da Bíblia são certamente
expressos no próprio texto. De que outra forma o leitor pode saber a intenção
do autor se não pelo que o autor de fato afirma no texto? Do contrário, o
significado do texto teria que ser descoberto primeiro, antes que houvesse
qualquer expectativa de se determinar a intenção do autor. Sugestões de
intenção e propósito que não sejam derivadas diretamente do próprio texto só
podem vir da imaginação de quem interpreta. Portanto, atribuir intenção e
propósito não diretamente derivados do texto é subjugar as Escrituras à
imaginação do intérprete.
Exigência de conformidade
às atuais visões científicas
Os
mesmos crentes na Terra antiga exigem que qualquer interpretação seja
consistente com as visões “científicas” atualmente aceitas. Contudo, são por si
mesmos seletivos e inconsistentes em sua exigência por conformidade científica.
Conquanto rápidos em repreender criacionistas bíblicos (defensores da Terra
jovem) por defenderem interpretações dos relatos de Gênesis, no que diz
respeito à criação e ao dilúvio, que parecem ir contra as visões científicas
atuais, muitos não têm problema em aceitar interpretações literais da concepção
virginal, dos milagres de Cristo, e da ressurreição – todos os quais parecem ir
contra visões científicas atuais!
Veja
o milagre de Jesus ao transformar água em vinho (João 2:1-11) como um exemplo
dessa inconsistência. Poucos (se algum) defensores da Terra antiga que se
declaram evangélicos com uma visão elevada das Escrituras duvidariam que Cristo
literalmente e milagrosamente transformou água em vinho. Entretanto, esse ato é
cientificamente impossível! Água simplesmente não possui os átomos de carbono
que o vinho possui. Mesmo que fornecêssemos esses átomos na forma de açúcar e
fermento, o processo de fermentação levaria tempo (várias semanas), mas o texto
indica que isso tudo ocorreu de forma instantânea. Por que, então, os
defensores da Terra antiga não reinterpretam esse (e outros) relatos? Por que
aceitar alguns atos sobrenaturais de Deus e outros não?
Revisionismo histórico
É
difícil encontrar exemplos piores de reescrita histórica do que aquelas feitas
por muitos evangélicos defensores da Terra antiga, com respeito à visão
histórica da igreja sobre o relato da criação.[8] Essas visões históricas
equivocadas são refutadas detalhadamente noutro artigo.[9] A interpretação
objetiva do relato da criação descrevendo uma Terra jovem tem sido a visão
tradicionalmente aceita pela igreja ao longo de sua história até a ascensão do
pensamento iluminista, no Século 18.[10] David Hall lamenta: “O registro
histórico é abundantemente claro nesse ponto; entretanto, convencer alguns
teólogos a renunciar uma opinião conflitante com a história real é o
equivalente à extração do dente do siso. Alguém precisa questionar essa teimosa
resistência, especialmente quando confrontada com tanta informação factual. Por
que, pergunto, ótimos e piedosos teólogos lutariam contra a história com tanta
energia quando os argumentos contra isso são tão claros?”[11]
Outros
exemplos de revisionismo histórico realizado por evangélicos que defendem uma
Terra antiga incluem o tratamento que a Igreja supostamente deu a Colombo e a
Galileu. Segundo esses evangélicos, esses “cientistas” estavam corretos,
enquanto a dogmática igreja estava errada, e devemos ser cuidadosos para não
cometer os mesmos erros atualmente. [Leia “O mito da Terra plana”. Clique aqui.]
Frederico I, imperador do
Sacro Império Romano, como cruzado, segurando uma orb, que representa a Terra,
com uma cruz no topo, simbolizando o senhorio de Cristo
Tais
conclusões são baseadas na crença tradicional de que, antes de fazer sua
histórica viagem em 1492, Cristóvão Colombo compareceu diante de uma multidão
de teólogos dogmáticos e inquisidores ignorantes, todos crentes que as
Escrituras ensinavam que a Terra era plana. Colombo então partiu a fim de
provar que todos eles estavam errados, velejando ao redor do globo. Embora seja
verdade a ocorrência de uma reunião em Salamanca, no ano 1491, essa ideia
comumente aceita do que teria ocorrido não possui um pingo de verdade. O
historiador Jeffrey Burton Russel identifica
Washington Irving (1783-1859), um notável escritor norte-americano de ficção
histórica, como uma das primeiras fontes desse “conto popular”.[12] Irving
criou o relato fictício de um inexistente conselho universitário e deixou sua
imaginação correr livremente.[13] O relato inteiro é “enganador e
perniciosamente sem sentido”.[14] Russell demonstrou que, com pouquíssimas
exceções, do século 3 a.C. em diante, todo cidadão educado no mundo ocidental
acreditava que a Terra era um globo. Não é, portanto, acidental que reis
medievais fossem presenteados com uma orb (esfera), representando a Terra como
símbolo do seu poder.
Da
mesma forma, é comum acreditar que as observações e os argumentos de Galileu
ofereceram apoio esmagador à teoria de Copérnico (de que a Terra orbita o Sol),
mas os teimosos, dogmáticos e ignorantes teólogos da Igreja Católica quiseram
silenciar Galileu com medo de que sua tradicional interpretação das
Escrituras fosse exposta como equivocada. Isso por medo de que tal fato
invalidasse a reivindicação da igreja como autoridade da interpretação bíblica.
Contudo, como demonstrou Thomas Schirrmarcher, “a apresentação do processo
contra Galileu como um heroico cientista se posicionando contra o dogmatismo de
mente limitada da igreja cristã repousa inteiramente sobre um mito, não sobre
uma pesquisa histórica”.[15, 16]
Os
desacordos entre cientistas e teólogos da época refletiam não um conflito entre
o cristianismo e a ciência, mas um conflito entre a filosofia aristotélica e a
ciência.[17] Galileu era um cientista convencido da verdade e acurácia das
Escrituras. Ele era tido em alta estima pela igreja; sua primeira defesa do
sistema copernicano, Letras e Raios de
Sol (1613), foi bem recebida, com nenhuma crítica levantada. Certamente o cardeal
Barberini, posteriormente papa Urbano VIII, responsável pela sentença em 1633,
esteve entre os que congratularam Galileu por sua publicação.[18] Assim, os
maiores inimigos de Galileu não estavam na igreja; ao contrário, estavam entre
seus colegas e companheiros cientistas, muitos dos quais negavam o sistema
copernicano[19] e temiam perder posição e influência.[20] De Santillana escreveu:
“Sabe-se há muito tempo que grande parte dos intelectuais da igreja eram
favoráveis a Galileu, enquanto a oposição mais clara vinha das ideias
seculares.”[21]
A
ironia nisso tudo é que são os que defendem uma Terra antiga que precisam
aprender a lição com o que ocorreu com Galileu.[12] Galileu chegou à conclusão
correta crendo totalmente na acurácia da Bíblia, enquanto seus colegas
cientistas chegaram à conclusão errada por se basearem no consenso científico
da época (o aristotelianismo). A igreja vem sendo pintada como inimiga da
ciência quando, na verdade, os companheiros e colegas cientistas de Galileu é
que foram os maiores inimigos da ciência verdadeira.
Não
deixe que aqueles que negam uma leitura objetiva do relato da criação escapem
quando trazem esse tipo de argumento falacioso. Se você ouvir pessoas
apresentarem tais argumentos, desafie-as a justificar sua posição, e aponte –
gentilmente – os erros sobre fatos e lógica.
(Andrew S. Kulikovsky é bacharel
em Ciências da Computação e Informação pela Universidade de South Australia e mestre
em Estudos Bíblicos e Teologia pela Lousiana Baptist University. É autor do
livro Creation, Fall, Restoration: A Biblical Theology of Creation; artigo
traduzido de Creation 33(3):41-43, julho de 2011; tradução de Nathan
Vinícius/revisão de Daniel Ruy Pereira; Considere a Possibilidade)
Referências e notas:
[1] Waltke, B.K., “The first
seven days”, Christianity Today
32:45, 1988.
[2] Ramm, B., The Christian View of Science of Scripture,
Paternoster, London, 1955, p. 70.
[3] Kaiser, W.C., “Legitimate
hermeneutics”; in: Geisler, N.L. (ed.), Inerrancy,
Zondervan, Grand Rapids, Michigan, 1980, p. 147.
[4] Cosner, L., “The use of
Genesis in the New Testament”, Creation
33(2):16-19, 2011,creation.com/nt; Sarfati, J., “Genesis: Bible authors
believed it to be history”, Creation
28(2):21-23, 2006, creation.com/gen-hist
[5] Arnold, B.T., Encountering the Book of Genesis, Baker,
Grand Rapids, Michigan, 1998, p. 23.
[6] Gênesis
é escrito como história, não poesia. Veja as entrevistas com o especialista nos
escritos do Antigo Testamento Dr. Robert McCabe, Creation 32(3):16-19, 2010; e o especialista em hebraico Dr. Ting
Wang, Creation 27(4):48-51, 2005,creation.com/wang
[7] Goldsworthy, G., Preaching the Whole Bible as Christian
Scripture, IVP, Leicester, 2000, p. 24.
[8] Veja particularmente
Hugh Ross (Creation and Time,
NavPress, Colorado Springs, 1994, p. 16-24; (com Gleason Archer) The Day-Age Response; em: D. G.
Hagopian, D.G., (editor), The Genesis
Debate, Crux Press, Mission Viejo, California, 2001, p. 68-70), Don Stoner
(A New Look at an Old Earth, Harvest
House, Eugene, Oregon, 1997, p. 117-119), e Roger Forster e Paul Marston (Reason, Science and Faith, Monarch,
Crowborough, East Sussex, 1999, p. 188-240).
[9] Kulikovsky, A.S., “Creation
and Genesis: a historical survey”, Creation
Research Society Quarterly 43(4):206-219, 2007.
[10] Veja a lista de
idades já calculadas para a criação, por Batten, D., “Old-earth or young-earth
belief; which belief is the recent aberration?” Creation 24(1):24-27, 2001,creation.com/old-young
[11] Hall, D.W., “The
evolution of mythology: classic creation survives as the fittest among its
critics and revisers”; em: Pipa, J.A. e Hall, D.W. (eds.), Did God Create in Six Days? Southern Presbyterian
Press, Taylors, SC, 1999, p. 276.
[12] A
outra pessoa que deu origem a esse conto popular foi Antoine-Jean Letronne
(1787-1848), um acadêmico antirreligião que publicou On the Cosmological Ideas of the Church Fathers (1834). Veja Jeffrey Burton Russell, Inventing the Flat Earth, Praeger, London, 1997, p. 49-51, 58-59.
[13] Russell, ref. 12, p.
40-41, 52-54.
[14] Russell, J.B., “The
Myth of the Flat Earth”, texto não publicado, apresentado na American
Scientific Affiliation Conference, Westmont College, 4 de Agosto, 1997; http://www.veritas-ucsb.org. Alguns anos antes, ele ressaltou que
esse relato foi listado entre os cinco maiores mitos históricos, por meio da
Historical Society of Britain.
[15] Schirrmacher, T., “The
Galileo Affair: History or Heroic Hagiography?” Journal of Creation 14(1):91-100, 2000.
[16] Sarfati, J., “Galileo
Quadricentennial; myth vs fact”, Creation
31(3):49-51, 2009, creation.com/gal-400
[17] Ramm,
ref. 2, p. 36. Forster e Marston (Reason
and Faith, 293) concordam que é impreciso usar o caso de Galileu como um exemplo
de ciência versus religião.
[18] Schirrmacher,
ref. 12, p. 92.
[19]
Certamente, a grande maioria dos cientistas naquele tempo rejeitava o sistema
copernicano. Veja Barber, B., “Resistance
of scientists to scientific discovery”, Science
134:596-602, 1961; Custance, A.C., Science
and Faith: The Doorway Papers VIII, Grand Rapids, Michigan, 1984, p. 157.
[20] Schirrmacher, ref.
15; Drake, S. (editor e tradutor), Discoveries
and Opinions of Galileo, Doubleday, New York, 1957.
[21] de Santillana, G., The Crime of Galileo, University of
Chicago Press, Chicago, 1955, p. xii
[22] Grigg, R., “The
Galileo ‘twist’”, Creation
19(4):30–32, 1997, creation.com/gal-twist