domingo, junho 23, 2013

Entrando na fornalha ardente

É um antigo provérbio popular, / Mas a verdade ‘inda perdura: / “Em todo cálice de felicidade, / No fundo – inexorável, inexplicável / Jaz latente uma gota de amargura.”
           
Se a tempestade ruge ao teu redor, / Ameaçando toda a tua estrutura, / Não temas – Todo cálice de felicidade / Traz no fundo – invisível, imperceptível / Borbulhante, uma gota de amargura.

Se em meio à glória e ao triunfo, / Há uma dor que te tortura, / Não lamentes – Heróis e mártires / Ergueram a taça da vitória, Tendo no fundo, insondável, implacável, / Uma gota de amargura.

Mas quando um dia, a luta aqui findar, / E após a escura noite o Sol raiar. / E a angústia, da Terra, extinta for.

Jamais vestígios de tristeza ou dor. / Deposta a cruz que nos tortura, / Nos portais da eternidade, / O cálice de felicidade / Receberás das mãos do Rei, sem jamais, gota alguma de amargura.
           
Não é difícil concluir que o belo poema acima, cujos versos nos tocam pela profunda sensibilidade, trata de um tema universal: o sofrimento e a insistente dor humana. Sofrer não é poético; a poesia, porém, por ser também universal, foi a melhor forma que encontrei para iniciar uma conversa sobre algo difícil e misterioso, que nenhuma teoria explica. As linhas do poema, entretanto, ultrapassam o sofrimento em si para falar de um assunto muito mais elevado e importante: Deus em face do choro de todos nós.

Na experiência do sofrer, apresenta-se diante do ser humano a oportunidade de refletir acerca do bem e do mal, de pensar sobre realidades nunca dantes imaginadas e de decidir de que lado ficará no grande conflito da vida. O sofrimento, no entanto, torna-se a pedra de tropeço para muitos que questionam o caráter de Deus. John Stott, conhecido teólogo, afirmou: “O fato do sofrimento indubitavelmente tem sido o maior desafio à fé cristã em todas as gerações. Sua distribuição e grau parecem ser inteiramente ao acaso e, portanto, injustos. Os espíritos sensíveis perguntam se o sofrimento pode, de algum modo, reconciliar-se com a justiça e o amor de Deus.” Deixando de lado a teologia e a filosofia do sofrimento e adentrando corajosamente na fornalha ardente deste mundo, vamos, então, à luz da fé e da revelação, suportar o calor de um assunto sobre o qual, pela própria natureza, muitos evitam conversar, exceto os sofredores mais sensíveis.

Para falar de dores (físicas, psicológicas ou morais) precisa-se recorrer à Bíblia, pois em nenhum outro livro o tema é abordado com tanta honestidade. Já na infância do mundo, no contexto de uma batalha de grandes proporções, notamos uma espécie de profecia sobre a universalidade da dor, em que sofrimento e salvação aparecem mesclados (Gn 3:15-19). Na Palavra de Deus, o homem de fé alimenta suas esperanças e certezas, sabendo que “as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada” (Rm 8:18). Escolhemos também a Bíblia, em detrimento de outra literatura, porque toda a Escritura, como uma revelação de Deus (assim cremos), contém capítulos dedicados ao assunto da dor humana, não teorizada, e sim vivenciada tanto por crentes quanto por descrentes. Das várias passagens, no entanto, centraremos nossa atenção naquela que inspirou o título deste texto: a história dos três jovens hebreus que enfrentaram o fogo consumidor de uma fornalha. Pela riqueza de detalhes, a narrativa sagrada, localizada no terceiro capítulo do livro de Daniel, foi o “fragmento do sofrimento” separado para uma reflexão. 

Três jovens, cativos do reino de Judá e moradores da corte de Nabucodonosor, por não obedecerem à ordem real de se prostrar perante um ídolo, foram injustamente lançados na direção do “inferno”: o grande forno de chamas preparado para quem desafiasse um autoritário decreto. Daniel, amigo dos rapazes, não se encontrava presente. Onde estava? Os motivos que retiraram o profeta desse evento não são revelados. Possivelmente, por alguma razão, ele havia se ausentado de Babilônia ou estava impossibilitado de comparecer ao local da assembleia.

Mas por que Sadraque, Mesaque e Abede-Nego estavam no campo de Dura? Porventura foram atrás do sofrimento? Numa atitude masoquista buscaram a dor para si mesmos? Não! Não seriam tão tolos assim. Os jovens hebreus faziam parte da lista de homens inteligentes e importantes da corte, convocados por Nabucodonosor para uma “reunião” (Dn 3:2, 12). Sabiam eles desse encontro idolátrico, mesclado talvez com negócios? Provavelmente. Entretanto, após a convocação, numa ação corajosa enfrentaram a terrível “imagem” do sofrimento e o chamado da dor. Eles agiram diferentemente da maioria das pessoas que convoca a dor sobre si por não desejar viver dentro dos padrões da vontade de Deus.

Na história da fornalha ardente, o primeiro ponto a considerar é a causa do sofrimento. Sobre isso, a Bíblia traz a resposta real e direta. Estabelecendo um paralelo entre a situação dos hebreus e a do patriarca Jó, discernimos a causa do mal a desabar sem aviso sobre eles: a vontade perversa de um ser maligno que obteve consentimento divino para executar seus planos sombrios. Satanás, “o monstro metafísico”, autor do pecado e do caos reinante no mundo, é o agente responsável pelo sofrimento. No caso de Jó, ele esteve envolvido diretamente (Jó 1:6-19; 2:7); com os jovens hebreus, ele moveu instrumentos humanos na obra do mal: os astrólogos da corte (Dn 3:8).

Assim, identificar a causa ou o autor do sofrimento nos ajuda a compreender tanto o caráter de Deus (na maioria das vezes nublado por nossas lágrimas) quanto o de seu arqui-inimigo. Portanto, quando em nossas dúvidas perguntamos: “Senhor, não semeaste Tu no Teu campo boa semente? Como então está cheio de joio?”, atentemos para a resposta: “Um inimigo é quem fez isso” (Mt 13:28). Sim, um inimigo lançou a semente da dor e do mal no campo do mundo. Tal semente gerou “ervas daninhas” que se espalharam pela face da Terra e entraram no jardim de todos nós. Por esse motivo, o sofrimento é uma experiência universal. Cada ser humano deve estar ciente disso, como esteve Davi ao declarar que “o inimigo persegue a minha alma, abate-me até o chão; faz-me habitar na escuridão” (Sl 143:3). Certamente, Deus não é o autor do sofrimento, embora Ele administre por Suas mãos misericordiosas e justas as tragédias individuais e coletivas da humanidade. A dor procede de “Babilônia”, da cidade da confusão (Dn 3:1), e não de “Jerusalém”.

Naturalmente corremos atrás de explicações para o sofrimento. Frequentes são as perguntas. “Por quê?”, “O que foi que eu fiz para merecer isso?” De fato, “a dor é o ponto de interrogação transformado em um anzol no coração humano”. Almejamos uma resposta convincente, muitas vezes inexistente. Há motivos para a escassez ou mesmo ausência de explicações. Tudo que se explica se justifica. Como Deus não quer justificar o sofrimento, Ele deixa as explicações de lado, preferindo postar-Se ao lado de cada sofredor para compartilhar do fogo da fornalha, tal qual aconteceu na experiência dos três hebreus. Mas o silêncio divino não significa falta de respostas. O crente “sabe que, frente ao mal, toda explicação humana é irrisória, e que aqui e agora somente se impõem a resistência, a fraternidade e a esperança. Para ele, crer, ainda que não resolva o problema do mal, representa uma superação do problema enquanto espera sua solução definitiva”.

Nos piores momentos da vida o importante é buscar sentir o abraço divino, manifestado no senso da presença do Espírito Santo – o Consolador. Ele vem para aplicar o bálsamo aliviador sobre as “queimaduras” e as chagas ardentes causadas pelo diabo. Nessas horas, nas palavras da escritora cristã Ellen White, só “precisamos saber acerca de um braço todo-poderoso que nos manterá, e de um Amigo infinito que tem piedade de nós. Necessitamos de nos agarrar à mão aquecida pelo amor, confiar em um coração cheio de ternura”. Isso é melhor do que qualquer explicação. Isso representa a resposta de Deus a partir de nossa resposta diante da dor.

Empurrados para dentro da fornalha

Para entrar no reino de Deus, importa passar por muitas tribulações (At 14:22) derivadas, em última instância, do resultado de se viver em um mundo caído, alienado do Criador. Por isso, o apóstolo Pedro escreveu: “Amados, não estranheis a ardente prova que vem sobre vós para vos tentar, como se coisa estranha vos acontecesse. Mas alegrai-vos...” (1Pd 4:12, 13). Alegrar-se no sofrimento? Como?! Que recomendação aparentemente cruel e insana! – diriam muitos. Na dor, procuramos chorar, não sorrir. Porventura, adoramos um Deus sádico que nos manda sentir “prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições e nas angústias”? (2Co 12:10).

O evangelho, aos olhos do homem natural, constitui uma loucura. No entanto, para o homem de fé, por mais estranho que pareça, até mesmo o sofrimento pode redundar numa espécie de gozo espiritual, por causa do motivo (o amor a Cristo) e do resultado produzido (a glória de Deus). Logo, a dor, que em si mesma não traz nenhuma virtude ou felicidade, tem na vida do cristão uma motivação e um resultado transcendentais. Ela só pode ser aceita e compreendida no contexto do conflito cósmico entre o bem e o mal. A experiência sofredora dos três hebreus nos expõe essa realidade.

Ninguém, em sã consciência, busca voluntariamente sofrer. Naturalmente fugimos da dor porque não fomos criados para ela. Até mesmo Cristo que, em amor, decidiu sofrer pela humanidade, chegou a suplicar ao Pai: “Não deixe Eu beber o terrível cálice, caso exista outro meio de salvar o ser humano!” Sadraque, Mesaque e Abede-Nego não buscaram voluntariamente entrar na fornalha. Foram coagidos por uma imposição injusta e maldosa. A causa estava na recusa em trair a consciência diante de uma ordem “legal”, mas de consequências espirituais danosas. Movidos pelo princípio “mais importa obedecer a Deus do que aos homens” (At 5:29), destemidamente eles transgrediram o mandado da mais alta autoridade da Terra, suportando “alegremente” os resultados. Foram para o seu calvário, a prova de fogo.

Num momento de causar medo a qualquer pessoa, esses homens, cheios de confiança diante das ameaças de Nabucodonosor, “zombaram” do castigo imposto. Por conseguinte, despertaram a ira do rei, sendo conduzidos em direção da morte certa. Já na porta da fornalha, antes de passarem pelas chamas devoradoras, eles compreenderam coisas misteriosas e sublimes sobre o sofrimento e Deus, lições que o Senhor registrou em Sua Palavra para o nosso benefício, “pois tudo que outrora foi escrito, para o nosso ensino foi escrito, para que pela paciência e consolação das Escrituras tenhamos esperança” (Rm 15:4).

Primeira lição: O sofrimento um dia chega e, talvez, inesperadamente. Enfrente-o com fé e dê uma resposta positiva a ele.

“Quem é o Deus que vos poderá livrar das minhas mãos?” (Dn 3:15, última parte) é o desafio a cada pessoa. Não adianta fugir da dor, ela sempre nos alcança em algum momento da existência, pois “toda a criação geme” (Rm 8:22). O decreto do sofrimento é imposto sobre os “povos, nações e homens de todas as línguas” (Dn 3:4).

O sofrimento convoca todo ser humano. Algumas vezes podemos pressentir sua chegada; outras, não. Inesperadamente, ele talvez apareça sem nenhum aviso (Ec 9:12). Como lhe responderemos? Com medo consumidor, desespero, desânimo insistente, reclamações, dúvidas cruéis, revolta? Realmente, esse arsenal poderoso ameaça qualquer um. Quando ouviram a “música do sofrimento” anunciando a chegada dele, todos se prostraram com timidez e medo (Dn 3:7), exceto três pessoas corajosas. Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, humanos como nós, elevaram-se acima das ameaças e, erguidos, reagiram dando uma resposta ousada, cheia de fé e resignação (Dn 3:16-18). O que disseram?

Segunda lição: Abandone-se nas mãos de Deus, deixe com Ele as consequências e não faça cobranças arrogantes.

“Se formos lançados na fornalha de fogo ardente, o nosso Deus, a quem nós servimos, pode livrar-nos dela [...]. Se não...”

Os hebreus injustiçados em momento algum duvidaram do poder de Deus. Aceitaram, contudo, o resultado, qualquer que fosse: livramento ou morte. Para eles, o importante era ser fiel à consciência e preservar seus princípios espirituais. Provou-se aqui o efeito prático e positivo da fé. Muitos de nós, quando afligidos, chegamos a reclamar para Deus uma solução. Se ela não chega, abandonamos a confiança e desistimos dEle. Diversas teologias populares andam ensinando por aí que Deus tem a obrigação de salvar o cristão e lhe dar prosperidade. “Pare de sofrer!” é o slogan enganoso de certos credos e filosofias de autoajuda. Os jovens cativos, porém, sabiam que “no mundo tereis aflições” (Jo 16:33). Conscientes disso, aceitaram o enfrentamento com bom ânimo. Semelhantemente, mesmo sentindo indícios de medo, dúvida e apreensão (afinal, somos humanos e Deus conhece nossa estrutura), lancemos sobre o Senhor toda a ansiedade, confiando na promessa de que Ele cuidará de nós. As mãos dos hebreus estavam amarradas, não podendo eles, humanamente, fazer nada para se livrar. Na maior parte dos casos, quando nossas mãos são impotentes para nos salvar, só mesmo Deus é capaz de agir em nosso favor.

Terceira lição: O sofrimento pode se intensificar, mas a atitude de fé, ainda assim, traz resistência.

“Então Nabucodonosor [...] ordenou que se acendesse a fornalha sete vezes mais do que se costumava” (Dn 3:19).

Imediatamente, após a resposta dos hebreus ao rei, foi dada a ordem para aumentar o calor da fornalha. É algo a se pensar. Frequentemente, quando reagimos ao sofrimento, este também pode se contrapor a nós e aumentar “sete vezes” (ou mais) a sua ira. “As bruxas andam soltas”, é a frase na boca de vários sofredores. Acontece de eventos drásticos virem em rápida sucessão sobre a vida de alguém, intensificando a dor até o limite da resistência humana. Não foi assim com o paciente Jó: uma tragédia após outra? Todavia, mesmo em níveis extremos, quando estamos fortemente atados pelas cordas, sem condições de fazer nada, nossa fé no cuidado de Deus é capaz de crescer e superar o calor da fornalha, dando-nos coragem e refrigério. Nas palavras do apóstolo Paulo, “em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos” (2Co 4:8, 9).

Quarta lição: O sofrimento atinge o ser por inteiro e, rapidamente, afeta aquilo que nos é mais precioso.

“Então estes homens foram atados com os seus mantos, suas túnicas, seus turbantes e suas vestes, e foram lançados na fornalha de fogo ardente. Porque a palavra do rei era urgente...” (Dn 3:21, 22).

Quando entramos na fornalha, aquilo que nos pertence vai conosco. Todas as coisas a nos envolver também são vitimadas. A avalanche da dor ameaça nossa proteção e todos os nossos tesouros; atinge as defesas, deixando-nos vulneráveis. Procura afetar nossa cobertura protetora e mexer com o caráter (vestes). Jó perdeu propriedades, servos, esposa e filhos. Seu próprio corpo foi afetado. Ficou “nu”, restando-lhe apenas o bem mais caro: a vida. Mas quem decide se perderemos algo, mesmo a vida, é Deus. Ele diz: “Não temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mt 10:28). O corpo morto será devolvido gloriosamente na ressurreição; a alma (o caráter) destruída permanecerá morta para sempre, levando consigo o corpo. No caso dos três rapazes, o sofrimento veio também para arrebatar deles as coisas mais próximas, até chegar ao seu próprio corpo; a situação, entretanto, foi outra. Cumpriu-se neles, literalmente, a promessa: “Quando passares pelo fogo, não te queimarás, nem a chama arderá em ti. Pois Eu sou o Senhor teu Deus, o Santo de Israel, o teu Salvador” (Is 43:2, 3). Salvando o homem da fornalha, Deus promete deixar intacta a vestidura do seu caráter, a única coisa que o fogo do sofrimento não pode destruir.

Quinta lição: O sofrimento, quando suportado com fé, liberta o homem de suas amarras.

Ao serem empurrados, atados, para o interior da fornalha, o milagre aconteceu. O fogo perdeu seu poder consumidor sobre os jovens. O rei e a multidão expectantes ajuntaram-se em espanto, a fim de verificar a salvação provida. “Nem um só cabelo de suas cabeças se tinha queimado, nem os seus mantos se mudaram, nem cheiro de fogo passara sobre eles” (Dn 3:27). Não sofreram dano. Só uma coisa foi queimada: as cordas que os prendiam.

Talvez, passando pela crise e pela dor, seja intenção divina nos libertar de algumas amarras. Quais são elas? A experiência de cada um identificará. “Farei passar esta terceira parte pelo fogo, e a purificarei, como se purifica a prata, e a provarei, como se prova o ouro. Ela invocará o Meu nome, e Eu a ouvirei; direi: É Meu povo, e ela dirá: O Senhor é meu Deus” (Zc 13:9).

A disciplina de Deus visa ao aperfeiçoamento de nosso caráter, muitas vezes aprisionado pelas cordas do pecado. Quando, sob a correção do Senhor, é permitido que entremos na fornalha, o fogo preparado para destruir por inteiro consome apenas a escória, deixando o ser humano totalmente livre do seu mal. O “ouro provado no fogo” apresenta-se sem impurezas e o ser humano sai da fornalha “mais raro do que o ouro puro” (Is 13:12).

Sexta lição: Unidos no sofrimento.

“Estes três homens, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, caíram atados dentro da fornalha sobremaneira acesa” (Dn 3:23).

Há, ainda, uma importante lição a aprender dessa história: a fraternidade na hora da dor. Não por acaso, supomos, os jovens cativos formaram um trio dentro do fogo, acompanhados de uma quarta Pessoa. Os números na Bíblia vão além de uma quantidade exata. Expressam realidades simbólicas de alto valor espiritual e teológico. Três é o número da unidade e da Trindade. Os três jovens, numa atitude fraterna e solidária, deram-se as mãos no momento da angústia. Unidos encorajaram uns aos outros, alimentando-se mutuamente de fé e confiança em Deus. Honrando tal “reunião”, o quarto Homem, que tomou o lugar de Daniel, cumpriu Sua promessa de que, em qualquer circunstância, “onde estiverem dois ou três reunidos em Meu nome, ali estarei Eu no meio deles” (Mt 18:20). E ali Se manifestou o Profeta celestial a anunciar o livramento. A própria Trindade Se fez representar na pessoa de um de Seus membros para mostrar que a humanidade unida entre si e com Deus é capaz de superar a dor. Aqui o número quatro atinge um valor de totalidade e plenitude. E totalidade plena só pode ser achada na Divindade. Por isso, no olhar do rei pagão, o quarto membro da fornalha era “semelhante a um filho dos deuses” (Dn 3:25). Ou Deus.

O “tempo de angústia” chega para cada ser humano. Alguns entram sozinhos na fornalha; outros vão em grupos, mas todos querem alguém por perto para consolar. O calor que uns suportam, às vezes, é aumentado “sete vezes mais”, tornando as dores excruciantes. Nessa hora da crise, cada pessoa corre em busca de ajuda. Precisa de ombros, mãos e olhar compassivo; necessita do ser inteiro de seu próximo, não só de lágrimas. Chorar com os que choram é um mandamento tão sagrado quanto amar; é uma das formas de amar. Mas chorar, nesse contexto, não significa somente derramar lágrimas diante da dor alheia e depois ir embora: é sofrer com os que sofrem, sentindo compassivamente suas agonias, prestando ajuda e doando-se sempre que necessário. Chorar com os sofredores é colocar-se no lugar deles. Os jovens hebreus foram juntos para o meio do fogo. No momento do sofrimento de alguém, sejamos solidários, dando o consolo humano e indicando o “quarto consolo”, o divino, cientes de que somente este tem poder de livrar.

Sétima lição: O sofrimento não dura para sempre.

“Então Sadraque, Mesaque e Abede-Nego saíram do meio do fogo” (Dn 3:26).

Embora este mundo seja um vale de lágrimas (ou de chamas), sairemos um dia dele. A dor pode ser breve ou longa, mas terá seu fim. Cabe-nos aguardar em esperança e fé o cumprimento da promessa de que “não haverá mais pranto, nem clamor, nem dor” (Ap 21:4). Essa promessa não se limita à vida futura. Mesmo agora, numa existência atribulada, o amor de Deus tem a capacidade de anular o poder do fogo e nos convocar a sair da fornalha, pois “no Seu favor está a vida; o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã” (Sl 30:5). Na escuridão do sofrimento existe uma pausa e a promessa de um feliz e radiante amanhecer. Assim como Deus nos lembra do repouso semanal (Êx 20:8-11), Ele também nos recorda de que “resta um repouso para o povo de Deus” (Hb 4:9) com o cessar do sofrimento. A sétima lição, portanto, é a promessa de que descansaremos da dor.

A mais importante lição

“Então o rei Nabucodonosor se espantou, e se levantou depressa, e disse aos seus conselheiros: Não lançamos nós três homens atados dentro do fogo? Responderam ao rei: É verdade, ó rei. Disse ele: Eu, porém, vejo quatro homens soltos, que andam passeando dentro do fogo, sem nenhum dano, e o aspecto do quarto é semelhante ao filho dos deuses” (Dn 3:24, 25).

Diante de uma tragédia, perguntamos quase sem exceção: “Onde estava Deus?” Onde Ele estava quando aqueles aviões, carregados de terroristas, causaram a morte de milhares de pessoas no Onze de Setembro? Por onde andava Deus quando ondas gigantes devastaram quilômetros de terras na Ásia, provocando uma catástrofe destruidora e ceifando inúmeras vidas? O que o Senhor fazia no momento em que uma garotinha inocente era atirada do alto de uma janela por alguém tão cruel? Por que aquele rapaz, ainda jovem, perdeu drasticamente a vida? “Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? Em que mundo, em que estrela Tu Te escondes?”, indagava angustiosamente o poeta. O próprio Cristo chegou a questionar: “Deus Meu, Deus Meu, por que Me desamparaste?” (Mt 27:46). São clamores ansiosos por uma resposta. Diante da confusão emocional que o sofrimento causa em nossa mente, não adianta responder à dor com argumentos bem elaborados. A única resposta se encontra na presença do “Deus conosco”.

Recorro ao alto dos Céus, a Quem me fez, /             Com o hálito de Seus lábios sem dolo, / Para estar quieto em face do consolo, / Com suficiente fé, plena honradez. / Setas de dor me acintam vez após vez, / E pedras pendem dentro do miolo; / Quero crer sempre, mas me sinto tolo / Se a inédita dor vem nítida à tez.
                       
Interdita o temor que me acalora / Para eu dar graças pelo que me trazes: / Das entranhas tiro o óleo que unja as frases, / E então, sustido após todas as fases, / Tocado por Teu zelo, naquela hora / Te adorarei mais que hoje a alma Te adora!

O Senhor está no meio do fogo. Anda conosco em todas as tragédias e participa de nossas angústias.

O quarto Homem: um Deus sofredor

“Em toda a angústia deles foi Ele angustiado” (Is 63:9).

Onde está Deus, então, pergunta-se mais uma vez? Respondemos de novo: Está ao nosso lado na fornalha, sofrendo também, porque só um Deus sofredor pode nos ajudar (Is 53, 2Co 5:19). Se compreendermos, pela fé, tal sublime e profunda revelação, seremos capazes de passear com Ele entre as chamas poderosas, sem gritos, sem desespero, sem angustiosos porquês. À maneira de Deus receberemos o livramento, imediato ou não.

Qualquer história menciona seu(s) personagem(ns) principal(is). No episódio da fornalha, o foco é a quarta Pessoa – o Protagonista Sofredor, e não os três jovens provados. Por esse fato, nossa visão precisa estar fixa em outro ponto; não nos aspectos secundários da dor. Evitemos olhar detidamente para os elementos terríveis da fornalha: as amarras que nos prendem, as assustadoras chamas consumidoras, a multidão que desampara ou os carrascos cruéis que nos forçam a entrar no fogo. Tampouco concentremos a atenção em nós mesmos, numa atitude de autocomiseração. Tudo isso confunde o homem e o arrasta para o desespero. De igual modo, desviemos um pouco a vista dos consoladores humanos, pois somos chamados a contemplar o Personagem central da história do sofrimento, Jesus (Hb 12:2). Os detalhes devem ser desconsiderados para que o “quarto Homem” seja notado, tal como foi pelo próprio Nabucodonosor. E notar Jesus não é somente vê-Lo como o Deus protetor; é percebê-Lo também como Deus sofredor; não é só enxergá-Lo “semelhante ao filho dos deuses”. Ele deve ser visto, também, como “Filho do homem”.

Os três judeus representam a humanidade sofredora, mas o outro Humano é Deus que foi “empurrado” para dentro da fornalha, sem ninguém para livrá-Lo. Paradoxo sublime! A fornalha erigida pelo ser humano obrigou-O a passar pelo “fogo”, conforme narra a Bíblia em suas páginas. E passando pelas labaredas, o Senhor acumulou sobre Si as dores humanas e as divinas, suportando um peso inimaginável.

Os antigos serviços sacrificais e a cruz constituíam “uma revelação, aos nossos sentidos embotados, da dor que o pecado, desde o seu início, acarretou ao coração de Deus”. E ainda hoje, “cada desvio do que é justo, cada ação de crueldade, cada fracasso da natureza humana para atingir o seu ideal, traz-Lhe pesar”. Fazem-No experimentar outra vez o ardor do sofrimento. Acerca do sofrimento de Deus em Cristo, significativa é esta declaração de Ellen G. White: “O homem não foi feito um portador do pecado, e jamais conhecerá o horror da maldição do pecado sofrido pelo Salvador. Dor alguma pode suportar qualquer comparação com a dor dAquele sobre quem caiu a ira de Deus como força esmagadora. A natureza humana não pode resistir senão a uma limitada porção de prova e experiência. O finito só pode suportar a medida finita, e a natureza sucumbe; a natureza humana de Cristo, porém, possuía maior capacidade para o sofrimento, pois o humano existia na natureza divina, e criava uma capacidade de sofrimento para suportar aquilo que era resultado de um mundo perdido”.

Em Jesus, o “madeiro verde” e resistente (Lucas 23:31) que o fogo não consumiu, o “semelhante ao filho dos deuses” nas palavras do impressionado Nabucodonosor, acha-se o exemplo vivo de fortaleza e a esperança humana do triunfo definitivo sobre o sofrimento. O Homem de dores padeceu como ninguém (Is 53), mas garantiu a vitória final. A própria fornalha ardente pode ser entendida como uma predição sobre o Calvário. Ali também estavam prefigurados Seus sofrimentos e Sua vitória a acontecerem séculos depois no Gólgota. Participando da natureza divina, mediante a ligação com a Videira, nós, os ramos, seremos igualmente capazes de permanecer resistentes na hora da extrema provação. 

Outra fornalha

Hananias (“o Senhor tem sido misericordioso”), Misael (nome derivado de Miguel: “Quem é igual a Deus?”) e Azarias (“O Senhor ajudou”), nomes verdadeiros dos três jovens, alterados por Nabucodonosor para nomes de divindades pagãs, lembram o caráter bondoso e o poder de Deus ao preservá-los das chamas. Por sofrerem perseguição por causa da justiça, esses homens se tornaram bem-aventurados no fim de sua prova. Os novos nomes com os quais os vencedores serão batizados darão semelhante testemunho a todo o Universo. No fim, tal como se deu na experiência da fornalha ardente, o desfecho redundará na glória de Deus e na honra de Seus filhos, “pois não há outro Deus que possa livrar como Esse” (Dn 3:29).

Os carrascos que os levaram para a agonia sucumbiram ante o poder da altíssima temperatura. Da mesma forma, Satanás que nos empurra para o fogo, ele mesmo, no devido tempo e junto com todos os seus algozes, perecerá nas chamas eternas (Ap 20:14). A causa do sofrimento terá seu fim com a aproximação da “outra fornalha”. Assim, quando a promessa divina se cumprir e todo o vestígio do mal desaparecer por completo, a fornalha da Terra será acesa momentos antes de a eternidade começar; desta vez pelo próprio Deus. O mundo virará uma grande fogueira e para dentro dela serão lançados o mal, a morte e o sofrimento, os quais perecerão com seu autor, o ente do mal. Nesse desfecho cósmico, um cântico de livramento será entoado pelos que “vieram da grande tribulação” (Ap 7:14).

Do sofrimento passaremos para a eterna adoração Àquele que experimentou na carne as dores da humanidade, mas que trouxe, por fim, a redenção. Nesse instante de triunfo, o fogo do sofrimento é apagado e a fornalha transformada num mundo seguro e protetor. O epílogo traduz alegria e a palavra final é salvação. Toda criatura proclama, num único coro universal, e sem gota alguma de amargura, que “Deus é amor”. Mas enquanto a libertação eterna do sofrimento não chega e o homem não entoa o “cântico de Moisés e do Cordeiro” nas ruas de ouro da Nova Jerusalém, é possível cantar aqui, “na velha Jerusalém”, outro cântico, o da resistência na graça: a música cuja melodia está dividida entre a tragicidade insistente deste mundo e a esperançosa alegria sem fim do outro. Assim, em relação “às aflições do tempo presente”, o homem de fé aprende mais uma lição. Ele pode entrar na fornalha e sair dela cantando:

Por Teu amor, eu pude entender / Que minha dor me ajuda a procurar Você. / A Tua graça me basta, não preciso de mais nada; / Os espinhos já não causam pavor. / Eu agradeço por me fazer / Depender de Ti, Senhor.

(Frank Mangabeira, membro da Igreja Adventista do Bairro Siqueira Campos, Aracaju, SE; servidor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe)