terça-feira, junho 25, 2013

Prostituição e direito à saúde

Quase não pude acreditar no post de Pedro Serrano publicado no site da Carta Capital (aqui), a respeito da decisão do ministro da Saúde, Alexandre Padilha. O ministro teria retirado a campanha “Dia Internacional das Prostitutas” devido à pressão dos evangélicos, segundo Serrano. E o articulista afirma que Padilha errou. Não foi Padilha quem errou, mas o articulista, de forma que minha defesa da decisão de Padilha é mais indireta, pela refutação dos absurdos publicados pela revista. Por que Padilha errou? Segundo Serrano, porque, em primeiro lugar, “não é preciso gastar muito esforço de argumento para afirmar que o Brasil é um país laico”, e ainda porque “questões de saúde pública devem ser tratadas por critérios exclusivamente técnico-científicos. Aspectos de moralidade religiosa não devem interferir em decisões administrativas neste tema”.

Eu diria que “não é preciso gastar muito esforço de argumento” para recusar essa afirmação. Serrano parece não distinguir entre “laicidade” e “laicismo” ou secularismo. Laicidade é o reconhecimento de que o Estado não é confessional, e por isso não pode promover uma religião. Podemos tratar a laicidade como uma categoria política, nesse sentido. Que o Estado se exima de promover qualquer projeto espiritual.

Mas o secularismo não é meramente um conceito político; é um projeto cultural muito mais amplo do que a política, e que entra em choque com as religiões tradicionais exatamente porque oferece uma alternativa espiritual (não é isso o que Alain de Botton vem tentando dizer?). Se não fosse uma alternativa, não entraria em choque. Se entra em choque, é concorrência. É do mesmo tipo.

O Estado que promove ativamente a secularização não é laico; é secularista. O Estado Soviético não era laico; era secularista, e suprimia ativamente não apenas a religião, mas outras expressões morais na sociedade. Pelo bem comum é essencial que os religiosos o protejam de elementos radicais que desejam abusar da política para fazer engenharia social e reeducar a consciência moral da sociedade. Se os secularistas querem promover sua agenda, que construam suas próprias igrejas, como os positivistas franceses no século 19.

Serrano também quer nos fazer acreditar que decisões sobre saúde pública são decisões exclusivamente técnicas, sem fundo moral, o que é um absurdo sob qualquer ângulo; tudo o que concerne ao ser humano tem uma dimensão moral. Se isso vale para tudo em tecnologia, vale ainda mais para o campo da saúde.

A ciência e a técnica não são intrinsecamente más; tornam-se instrumentos perversos em mãos perversas, quando são autonomizadas e em seguida se tornam veículos de uma ideologia desumanizadora e objetificante. Foi uma ideologia desse tipo que articulou os melhores avanços científicos e técnicos da época com a única finalidade de matar gente, na Alemanha Nazista. O fedor dessa compreensão da técnica é sempre o mesmo: a “saúde pública” amoral. Mas não se engane: por trás da desculpa tecnicista sempre há outra coisa. Será que o articulista sabe que outra coisa é essa?

O mais triste é ver essas pobres mulheres usadas uma segunda vez: primeiro, sexualmente, e agora ideologicamente, em uma das mais torpes expressões do secularismo de esquerda.

Nossos padrões morais deverão ser reformados e nossa consciência moral deve ser reeducada por campanhas estatais “laicas”, com base em orientações científicas positivistas e pragmáticas, para garantir que as pessoas se sintam bem, não importa o que fizerem. Uma perfeita distopia Orwelliana – agora na versão hipermoderna.

Com alguma boa vontade, poderíamos supor que ele não é contra a necessidade de considerar a dimensão moral do humano na construção de políticas públicas; ele apenas recusa a moralidade religiosa. Mas nem isso o salvaria. Pois ele é cuidadoso o suficiente para afirmar que “os especialistas” “[...] apontam diversas pesquisas científicas que demonstram que não é possível combater de forma plenamente eficaz o contágio da aids sem a valorização da autoestima das parcelas mais vulneráveis da população”.

Ou seja, a razão por que devemos dizer que as prostitutas são “felizes” é que precisamos aumentar sua autoestima. E precisamos aumentá-la a qualquer custo por razões “científicas”. Mas dizer que alguém pode ser feliz, normal e bem ajustado praticando a prostituição, e equiparando a prática com outras formas de trabalho sadio e honesto é fazer um julgamento moral; é afirmar a neutralidade moral desse comportamento (já que ele em nada corrompe a vontade e a consciência de si no indivíduo), com o único propósito de torná-lo coerente com o interesse “científico”. Ou melhor: é submeter a moralidade à religião do bem-estar sensorial e da afetividade amoral, sob as bênçãos sacerdotais da ciência. É claro que nesse momento o Estado já não é mais meramente “laico”. Nem a ciência, que virou serva da nova religião civil brasileira.

Portanto, segundo o senhor Serrano, nossos padrões morais deverão ser reformados e nossa consciência moral deve ser reeducada por campanhas estatais “laicas”, com base em orientações científicas positivistas e pragmáticas, para garantir que as pessoas se sintam bem, não importa o que fizerem. Uma perfeita distopia Orweliana – agora na versão hipermoderna.

Para Serrano “é um direito das prostitutas contarem com campanhas de prevenção da aids dirigidas especialmente a elas, pois em razão do exercício de suas atividades lícitas estão mais sujeitas que a média da população à exposição ao vírus”. Mas aqui o articulista infelizmente obscureceu o assunto. Pois ninguém negou a essas prostitutas o direito de exercer suas atividades legalmente lícitas, nem de contarem com campanhas de prevenção. O problema não está em termos uma campanha, mas na forma dessa campanha em particular.

O que se nega é que além de terem o direito à “esfera pessoal de liberdade”, os trabalhadores do sexo tenham o direito de receber aprovação moral pelo que fazem. A campanha comunica, implicitamente, que a prática da prostituição é moralmente aceitável. Mas do fato de uma atividade ser legalmente lícita não se infere jamais que essa atividade seja moralmente lícita.

Além disso, o comportamento de risco baseado em uma permissão legal não pode gerar um direito especial. Expressões de liberdade individual que sejam perigosas e ainda moralmente duvidosas não podem ser recompensadas transferindo-se seu ônus para toda a sociedade (já que temos que aceitar o fato e pagar impostos para as campanhas e os tratamentos de saúde). Na mente de Serrano, parece ser correto tratar toda a sociedade como corresponsável por um comportamento que é justificado sobre a base da autonomia individual. Isso só não seria absurdo se toda a sociedade fosse a favor; acontece que ela não é.

Aqui vale o insight de Charles Taylor sobre a atomização da sociedade: precisamos de certo tipo de civilização para produzir o indivíduo autônomo, e toda extensão das liberdades individuais que produza uma contradição com a sociedade e as instituições que tornaram possível a formação desse indivíduo é irracional (veja mais AQUI).

Serrano não poderia perder a oportunidade de alfinetar os fariseus, hipócritas: “A realidade é que muitos homens, inclusive pais de família e até evangélicos, usam dos serviços de prostitutas e como tal funcionam como vetores de transmissão do vírus.”

Isso é verdade, sem dúvida nenhuma. Mas o que se segue logicamente, daqui? Ora, vamos ver: “Pobres batedores de carteira. São presos e tornam-se, na cadeia, criminosos ainda piores, enquanto os grandes ladrões, e especialmente os mensaleiros do PT, estão soltos. Somos todos hipócritas, já que até a polícia se utiliza os seus serviços. Então... soltemos os infratores!” O argumento de Serrano, além de irracional, é um golpe baixo; alegar que estamos todos na lama, e que por isso deveríamos amá-la. Mas do fato de que muitos evangélicos traem seu discurso público utilizando os serviços de trabalhadores do sexo e que sejam vetores de doenças não se infere que a prostituição deva ser considerada aceitável e protegida pelo Estado como uma forma legítima de alcançar a felicidade (é o que a campanha diz, nas entrelinhas).

Seguem-se as invectivas moralistas-seculares de Serrano: defendendo “direitos fundamentais e humanos” depois de demonstrar clara incompreensão sobre a relação entre ciência e moralidade, o jornalista tenta passar de forma sub-reptícia certa paixão moral pela justiça e pelo bem do homem. Não nego que esses sentimentos sejam reais no autor; é que duvido que ele tenha uma base racional para afirmar tais direitos, depois de cuspir toda a sua desinformação atacando o “moralismo religioso” que foi, historicamente, a própria base para a ideia de direitos humanos.

Isto é moralismo: paixão moral sem fundamento racional. Isso é extremamente perigoso, mesmo que venha travestido de um discurso sobre direitos humanos. Trata-se de um arrazoado legalista, que usa uma norma socialmente aceita e inquestionável como trampolim para justificar o vício moral, e apela à letra da lei para produzir uma impressão de valores elevados, mas com intenções absolutamente inferiores. Exatamente o que Jesus atacava nos Fariseus. E assim configura-se essa situação ridícula, de secularistas atacando os manipuladores da religião sem perceber que estão fundando um novo farisaísmo. O farisaísmo do politicamente correto.

No final do texto o articulista afirma que, graças ao STF nossos direitos fundamentais não são “letra morta”; do contrário, “em temas importantes da vida cotidiana estaríamos sujeitos a interpretações medievais da Bíblia e não a valores humanos universais e laicos, traduzidos em direitos, como posto em nossa Constituição”.

Isso é o que C. S. Lewis descreveu como “chauvinismo cronológico”: desprezar ideias só porque são... antigas ou “medievais”! Essa é uma das formas mais comuns de preconceito moderno, e uma das marcas infalíveis de incultura histórica. O que faz o articulista se parecer com o tipo que não conhece nem as interpretações medievais da Bíblia, nem as modernas, e provavelmente confunde as modernas com as pós-modernas.

O fato, no entanto, é que a crítica moral não apenas da prostituição, mas da cultura Queer e de toda a constituição do eros hipermoderno não é meramente resultado de uma leitura medieval da Bíblia; é fruto de uma leitura crítica do presente. Mas eu perguntaria ao articulista: Qual é a sua base racional para acreditar que do mero fato de uma transformação progressiva da sexualidade se depreende um “melhoramento” ou uma “evolução positiva” ou um “progresso”? Por favor, conte-nos de onde saiu esse mito.

Tudo o que se pode dizer, aqui, é que articulistas e jornalistas que desejem interpretar o cristianismo deveriam ler mais a Bíblia e quem sabe comprar uns livros de história e teologia. Na forma em que está, esse discurso pode arrancar vivas entre pares secularistas, mas entre cristãos informados não passa de um círculo minúsculo de argumentos sem sentido.

(Guilherme de Carvalho, Ultimato)