Deu na Folha Ilustrada de ontem (13/05): “Eu já sabia que o assunto não era pacífico. Mas insisti. Na última coluna, desci na cave do criminoso austríaco que, durante 24 anos, seqüestrou, violou e engravidou a própria filha. E uma parte dos leitores se recusou a descer comigo. Pior: alguns escreveram para esta Folha, indignados com o cronista. Não gostaram do tom cômico da prosa e das meditações pessoais sobre o mal. O tom cômico é inevitável, meus amores. Uma coisa é violar a filha. Outra é seqüestrá-la durante 24 anos. Tudo isso é tragédia. Ou, como dizem os ingleses, ‘no laughing matter’. Mas juntar duas tragédias num crime só, peço desculpas, é furar os limites do imaginável. Quando tal acontece, a nossa racionalidade é jogada em território virgem e absurdo. E isso é comédia.
“Aliás, o próprio criminoso tem contribuído para a farsa. Nos últimos dias, os jornais europeus relataram as declarações de Josef Fritzl na cadeia. São declarações que procuram justificar os seus atos. E que me fazem rebolar de riso. Segundo Fritzl, a filha andava com ‘más companhias’. Fumava. Bebia. Provavelmente namorava. Seqüestrá-la e violá-la durante 24 anos foi uma forma de a afastar das drogas, dos rapazes e das discotecas. Haverá alguém que duvide da eficácia do método?
“Claro que, confrontados com a terapia, talvez seja possível dizer que 24 anos em cativeiro são um exagero. O próprio Fritzl admite que sim. Mas a culpa não é dele, acrescenta em novas declarações. A culpa é dos nazistas, afirma ainda, que incutiram nele uma educação de disciplina e intolerância. Não sei se os nazistas tinham por hábito seqüestrar e violar as próprias filhas. Mas percebo a idéia.
“Como conclusão, Fritzl tem queixas do jornalismo e da forma como é retratado pela mídia. ‘Não sou um monstro’, diz ele. Discordo. Ele é um monstro, sim. Mas um monstro da comédia.
“E chegamos ao problema do mal. Por que motivo uma parte generosa dos leitores não tolera a palavra ‘mal’ para explicar o caso? Questão de civilização, creio. A estrutura intelectual do Ocidente, na qual vivemos e pensamos, assenta na idéia otimista de que o mal nasce da ignorância. Ou, inversamente, só o conhecimento permite uma vida virtuosa, como diria Platão pela boca de Sócrates. Quando os seres humanos se aproximam da luz da razão, a ignorância deixará de ter lugar nas suas condutas. Porque o mal é fruto da ignorância.
“O Iluminismo continental do século 18 acabaria por retomar e aprofundar essa ‘philosophia perennis’: pelo exercício da razão, seria possível regenerar as iniqüidades que afligem a condição humana e, por arrastamento, regenerar os próprios seres humanos. E as grandes ‘teologias políticas’ que saíram desse caldo apontaram na mesma direção.
“O mal nasce da pobreza, material ou cultural; pela redistribuição eqüitativa dos recursos, materiais ou educacionais, o mal será vencido e a humanidade poderá marchar rumo ao supremo bem. E, se a redistribuição eqüitativa dos recursos não resolve os problemas, então o mal é fruto da doença ou da loucura. Estamos na presença da ‘medicalização do mal’, uma constante nos sistemas jurídicos das democracias liberais.
“É essa ‘medicalização do mal’ que tem crescentemente substituído a idéia terrível (e antiiluminista, e antiotimista, e anticivilizacional) de que o mal é sobretudo uma forma de estar no mundo. Não é fruto da ignorância, da escassez, da doença. É uma qualidade intrínseca da nossa humanidade. E, ao ser uma qualidade intrínseca, é também tocada por uma sombra de mistério: exatamente como as restantes qualidades humanas – o amor, a compaixão, o sacrifício – que nenhum tratado filosófico, médico ou psicanalítico será alguma vez capaz de explicar inteiramente.
“Os seres humanos são capazes de tudo; de matar, torturar ou humilhar com pleno conhecimento das suas ações. Eles são, como no poema de William Ernest Henley, curiosamente citado pelo bombista Timothy McVeigh minutos antes de ser executado, ‘senhores do seu destino’ e ‘capitães da sua sorte’.
“Mas o lado redentor é que eles também são capazes do oposto: de amar e de ser amados; de dar alento a quem precisa; e de condenar, sem fugas ou desculpas, condutas objetivamente desumanas.
“Os leitores não devem temer palavras. Devem temer atos. Porque são atos que nenhum sistema ou terapia será capaz de erradicar da nossa frágil e complexa condição.”
(João Pereira Coutinho)
Colaboração: Débora Carvalho de Oliveira
Nota: Algumas semanas atrás, o tema do “mal” foi capa da revista Veja. Articulistas estarrecidos com os últimos atos de crueldade, como o perpetrado pelo casal Nardoni contra a pequena Isabella, multiplicaram palavras em torno do assunto, tentando compreender que força é essa que transforma o ser humano em monstro. Ao contrário do que muitos pensam, o mal não é fruto da ignorância. Não é aplicando um verniz cultural sobre as pessoas que as tornaremos melhores cidadãs, melhores pais e mães, melhores vizinhos ou motoristas pacientes. Não, esse não é o caminho. Se fosse assim, pessoas cultas não cometeriam crimes e atos de crueldade. Hitler gostava de música clássica e lia bastante...
Quer um verdadeiro e chocante retrato da natureza humana? Está lá em Isaías 1:5 e 6: “Toda cabeça está doente, e todo o coração, enfermo. Desde a planta do pé até à cabeça, não há nele coisa sã, senão feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e outras não espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo.” O pecado, segundo a Bíblia, teve origem com o pior sentimento que pode tomar conta de uma criatura: o orgulho. Lúcifer não se contentou com sua exaltada posição de líder dos anjos e, segundo Ezequiel 28:13-19 e Isaías 14:12-14, achou-se no direito de assumir a posição de Deus. Depois de perder seu lugar nas cortes celestiais, Lúcifer (agora conhecido como Satanás, ou inimigo) transferiu sua rebelião para este planeta e envolveu os primeiros seres humanos em sua artimanha, inoculando neles o “vírus” do orgulho e da auto-suficiência – a raiz de todos os males. A partir daí, Adão e Eva conheceram o mal e essa praga, por meio deles, se alastrou por toda a humanidade. E ainda hoje, no “iluminado” século 21, o mal choca muitas pessoas devido à sua capacidade destrutiva.
Para vencer esse vírus, somente usando “medicamento” bastante potente. Quando se tem uma infecção, de nada adianta tratar unicamente os sintomas. Deve-se atacar a causa do problema. Da mesma forma, o tal “verniz cultural” vai apenas maquiar a situação. Deixado a si mesmo, o ser humano tenderá a chafurdar na lama do pecado, porque o problema vem de dentro, do coração, da natureza humana em si. A única maneira de deter o avanço dessa doença é render nossa vontade ao Criador, permitindo que Ele opere em nós de dentro para fora. Se a nascente (o coração, segundo Jesus) estiver purificada, as águas que brotarão dali serão puras e cristalinas.
O mal tem solução (e esta um dia será definitiva), mas precisamos do remédio certo – Jesus.[MB]