sexta-feira, maio 02, 2008

A vida em suspensão

De onde vem a ordem que vemos no Universo? Contrariamente ao que pensa o senso comum "científico", sabemos pouco mais do que sabia Aristóteles. "Descobertas revolucionárias" se amontoam. O debate se dá hoje, como antes, ao redor da questão: como o acaso pode organizar o pó atômico e "fazer" o olho ver? Como demonstrar empiricamente esse processo ancestral?

Os gregos usaram a palavra "lógos" para descrever a perceptível "racionalidade nos elementos". Os cristãos disseram que esse lógos era Cristo. Outras culturas supõem ritmos harmônicos que estabelecem continuamente essa ordem.

A pergunta pela origem eficiente das coisas (Aristóteles) implica uma outra, essencial: a origem define o destino? Origem e sentido da vida sempre se reuniram na contemplação do lógos eficiente (a ordem).

A controvérsia que opõe o darwinismo ao criacionismo (que não significa mulheres de saia e cabelos compridos nem homens autoritários com a Bíblia na mão) -ou teoria do "design inteligente", herdeira direta da união entre o "primeiro motor" aristotélico e o Deus de Abraão- não é apenas uma querela sobre como a poeira cósmica começou a pensar, mas uma discussão acerca do sentido profundo da vida.

O darwinismo nasce em meio ao naturalismo do século 19 (e seu positivismo e pânico malthusianos) e avança em direção à cosmologia e à psicologia. Na sua face cosmológica, o darwinismo ortodoxo é a forma mais séria de ateísmo que existe. Freud, Marx, Feuerbach e Nietzsche se batem contra as representações históricas de Deus, e só uma filosofia fraca leva esse ateísmo a sério.

Atacar Deus "a sério" é enfrentar a herança aristotélica. É "derreter" o designer imaterial, "mostrando" como a mistura de pó, acaso e repetição inercial, ao longo de uma infinidade de tempo, foi capaz de atingir o ato de pensar.

O darwinismo é a teoria da auto-suficiência da matéria.

A agressão sistemática sobre genes que têm resistido ancestralmente ao ambiente (adaptar-se é função dessa relação) e que, portanto, só podem se reproduzir a partir do que "sobrou" deles (essa é a tese do acúmulo de design cego) é a chave para a seleção natural, que produz, assim, uma ordem adaptada "sem querer".

Essa é a cegueira, não há intencionalidade no processo. Em nós, o sonambulismo dos elementos naturais foi rompido. Somos "mais sofisticados" do que nossa origem, afirmação anti-religiosa por excelência. Os criacionistas afirmam (o óbvio) que falta muito em termos empíricos para saltar da biologia à astrofísica ou ao lógos molecular e, daí, à alma racional.

E mais: a única "prova definitiva" da teoria da adaptação é seu produto, ou seja, os adaptados, que são, por sua vez, definidos como tal pela teoria que depende deles para se sustentar racionalmente. Qualquer cético reconhece a circularidade do argumento.

Como tudo que é sério, isso vai além do que a ciência pode saber. Provar que Deus não existe é impossível. A teologia "científica" pode chegar, talvez, até um Darwin "profeta".

O impacto continuará sendo - como sempre é - no cotidiano existencial das pessoas que procuram, em meio ao ruído das "novidades científicas", alguma luz para sua temida banalidade cósmica.

(Luiz Felipe Pondé leciona na pós-graduação em ciências da religião e no departamento de teologia da Pontifícia Universidade Católica-SP e na Fundação Armando Álvares Penteado. Texto publicado na Folha de S. Paulo)