“Os Dez
Mandamentos”, “O Princípe do Egito”, e agora, “Êxodo: Deuses e Reis”. Enquanto
os dois primeiros filmes foram lançados em épocas em que o ceticismo contra o
relato bíblico ainda era confinado às universidades e a poucos segmentos da
sociedade, a mais recente versão da história bíblica do Êxodo surge como mais um
ingrediente no debate envolvendo religião, violência, mitologia e antagonismo
bíblico. O texto abaixo não é a minha reflexão sobre o filme. Ainda não pude
assísti-lo por, justamente, estar estudando história egípcia e de outros povos
do Antigo Oriente para meus exames finais do mestrado. O que você lerá a seguir
é uma reação à matéria de capa da revista Superinteressante
deste mês sobre o principal evento da nação israelita, como registrado nas
páginas sagradas. Antes de mais
nada, devo parabenizar o autor da matéria pela maneira clara e descontraída com
que descreveu a história do Antigo Oriente. Apesar de não concordar com muitas
das opiniões dele sobre o Antigo Testamento, como será demonstrado abaixo, isso
não tira o mérito de Alexandre Versignassi pelo seu texto. Porém, apresento
aqui dois problemas metodológicos do articulista. Primeiro, em linhas gerais,
ele traduziu para um português bem claro a chamada “hermenêutica da dúvida”,
que sempre trata o texto bíblico “culpado, até ser provado inocente”. Isso
porque muitos acadêmicos confundiram leitura crítica com leitura cética. Lidar
com um texto antigo com o ceticismo do século 21 não é a melhor abordagem
metodológica. E não estou falando do sobrenatural. Estou falando de uma
reconstrução histórica do ambiente que o relato bíblico supostamente descreve. Por
que não lidar com o texto antigo desta forma: “Inocente, até ser provado
culpado”?
Em segundo lugar,
o autor cita dois acadêmicos para falar sobre Israel no Antigo Testamento, Richard
Freedman e Israel Finkelstein. Isso é para lá de tendencioso. Seria o mesmo que
pedir para os líderes do Hamas e do Hezbollah opinarem sobre Israel e EUA. Não há
como esperar uma visão equilibrada sobre o Êxodo e o surgimento da nação
Israelita da parte deles. Não estou desqualificando o trabalho dos dois, o que
estou dizendo é que existem opiniões diferentes e que deveriam também ser
ouvidas e contrastadas.
Um deles é meu
professor, James K. Hoffmeier, egiptólogo formado pela Universidade de Toronto,
no Canadá. Dois dos seus livros lidam diretamente sobre o assunto: Israel in Egypt (1996) e Ancient Israel in Sinai (2005), ambos
publicados pela Oxford University Press. Além de professor de Antigo
Testamento, Hoffmeier leciona Egípcio Antigo há mais de 30 anos, o que lhe
permite falar naturalmente sobre condições políticas, econômicas e militares do
período do Reino Novo do Egito (Dinastias 18-20), a época em que a Bíblia situa
o Êxodo.
Outro acadêmico
que deu inúmeras contribuições para o estudo do Antigo Oriente e Antigo Testamento
é Kenneth Kitchen, egiptólogo aposentado da Universidade de Liverpool, na
Inglaterra. Seu domínio em mais de 15 línguas do Antigo Oriente lhe permite
falar como ninguém sobre o dia a dia das cortes, dos templos e fortes militares
durante a Idade do Bronze e do Ferro. Ele, inclusive, aprendeu português com a
única finalidade de publicar o texto dos monumentos (estelas) de Ramsés II que
estão no Museu do Rio de Janeiro, já que ele é uma respeitada autoridade no
período Ramessida. E imagine só: tanto Kitchen como Hoffmeier são cristãos
evangélicos! Eles não usam as publicações para converter pessoas ao
cristianismo, mas, sim, para apresentar uma visão equilibrada sobre o mundo do
Antigo Oriente e as páginas do relato bíblico.
Num debate
intelectual, cristãos geralmente são chamados de preguiçosos. Fica aqui uma
simples comparação: em seu livro E a
Bíblia não Tinha Razão, Israel Finkelstein gastou 24 páginas para falar
sobre o Êxodo, com onze sugestões de leitura sobre o assunto no fim do livro. Numa
obra com a mesma temática, Kitchen escreveu 72 páginas e com um total de 145
notas de rodapé. Quantos leram as páginas de Finkelstein? Quantos leram o que
Kitchen escreveu? Não tenho números exatos, mas sem dúvida a sede por
informações rápidas e condensadas da nossa geração prefereriria o que
Finkestein escreveu, e o pior, não se daria ao trabalho de ler opiniões
contrárias.
A ausência de
evidências diretamente relacionadas com Moisés, os israelitas e o Êxodo bíblico
é a avenida principal para o ceticismo - ingênuo, eu diria - de muitos
historiadores, curiosos no assunto, e até mesmo teólogos bíblicos,
principalmente aqueles que gastam mais tempo estudando teorias literárias sem
fundamento e esquecem de olhar o mundo ao redor do Antigo Testamento. Existem
pelo menos três motivos pelos quais não disposmos de tais evidências:
Primeiro, o contexto
geográfico de Êxodo 1–14 é a região do Delta do Nilo, uma região que por milênios
tem acumulado lama das inundações anuais do Nilo. Estruturas de tijolos de
barro tinham duração limitada e eram repetidamente substituidas por outras, devido
a essas inundações. Afirmar que “nenhuma evidência dos israelitas no Egito
jamais foi encontrada” é muitas ingênuidade, e esperar por essas evidências é
perda de tempo. Até mesmo estruturas de pedra dificilmente foram preservadas na
região.
Segundo, a
situação se torna mais drástica quando se pensa em papiros. Na lama, 99% dos
papiros desaparecem para sempre. Apenas um pouco dos papiros da região oriental
do delta foi recuperada no deserto próximo a Mênfis.
Terceiro, faraós
não registravam suas derrotas. Eles jamais deixariam um monumento ou registro nas
paredes de um templo relatando a rebelião de um grupo de escravos que resultou
na perda de carruagens e soldados, como na história bíblica do Êxodo. Os textos
egípcios sobre a batalha de Qadesh, por exemplo, apresentam Ramsés II como o
grande vitorioso. Já a versão hitita da mesma batalha tem o rei Muwatali como
vencedor.
Portanto, para
“confirmar” a história bíblica, é inútil esperar evidências que não estão lá no
Delta. Se, como cavalos, limitarmos nossas viseiras para o pouco que a
arqueologia pode trazer à luz, então não há nada a ser dito sobre o Êxodo. Há
necessidade de uma abordagem mais contextual, tanto do relato bíblico como do
ambiente histórico que ele supostamente descreve.
Dito isso,
apresento abaixo algumas considerações sobre a matéria da Super:
“Os israelistas nao foram escravos e nunca migraram para o
Egito”: o
chamado Segundo Período Intermediário da história Egípcia (Ca. 1650-1550 a.C.)
encaixa-se bem nas descrições da história de José, no fim do livro de Gênesis,
e do primeiro capítulo de Êxodo. Os hekau
khasut, também conhecidos como Hyksos, estavam dominando a região do Delta
do Nilo. Eles eram de origem siro-palestina. Anterior a esse período, temos o
famoso painel de Beni Hassan, que descreve um semita chamado Absha (ou Ibsha)
chegando ao Egito com seu grupo de 37 pessoas e entregando seu “visto” em um
dos pontos de imigração. Sendo assim, imaginar um grupo de aproximadamente 70
pessoas, a família de Jacó, entrando no Egito na mesma época, não é nenhum
problema do ponto de vista histórico. Também dispomos de ilustrações de
trabalho escravo no período da 18ª
dinastia, exatamente o período em que o poder voltou para as mãos dos egípcios
que reinavam a partir de Tebas, com uma política fortemente anti-hyksos, porque
não antissemita. Numa das pinturas da tumba de Rekhmire, um vizir (i.e.
primeiro ministro), é possível ver prisioneiros de guerra semitas e núbios
fazendo tijolos. Em suma, não precisamos de uma fé extraordinária para imaginar
grupos de semitas indo para o Egito e, depois de um tempo, se depararem com uma
mudança radical nas políticas internas e enfrentar trabalho escravo.
Foto 1 - Mural de
Beni Hassan: semitas entram no Egito
O número dos israelitas: somos informados de que o número de
israelitas que saíram do Egito era de 600 mil homens, sem contar mulheres e
crianças (Êx 12:27). Como o articulista calculou, adicionando uma esposa e uma
criança para cada homem, temos quase dois milhões de pessoas. E aqui temos um
grande problema. Há informações detalhadas sobre o exército egípico no período
do Reino Novo. Era um total de aproximadamente 25 mil soldados, de acordo com
Anthony Spalinger, uma das principais autoridades no assunto. A população
egípcia era de aproximadamente dois a três milhões de pessoas. Se os
israelistas fossem uma nação tão grande assim, eles não precisariam de um
Moisés ou de Deus para libertá-los. Eles poderiam sair a hora que bem
entendessem! Em lugar de descartar a informação bíblica, seria bom tentar
entendê-la melhor. O que significa a palavra “mil” (heb. ‘eleph)? Ela pode significar unidade de mil pessoas, unidade
militar ou pelotão, líder de um grupo, clã e tribo. Em algumas passagens do
Antigo Testamento em que ela é utilizada, o significado “mil” não parece ser
uma boa opção. Por exemplo, 2 Reis 13:7 menciona 50 cavalheiros, 10 carruagens
e 100 mil soldados! Esse é um número discrepante, comparado com os dois anteriores.
Em 1 Reis 20:29, 30, vinte e sete “mil” soldados foram mortos porque uma parede
caiu sobre eles! Essa deveria ser uma parede enorme.
Kitchen, Hoffmeier
e outros acadêmicos sugerem que ‘eleph,
no contexto das passagens do Êxodo, deve ser entendido como um “pelotão” ou
“líder militar”; e de acordo com a correspondência diplomática do faraó
Akhenaten e reis de Canaã e Síria, as chamadas cartas de Amarna, um pelotão
tinha nove soldados. Seiscentos líderes de pelotões ou unidades militares com nove
soldados cada um são 5.400 homens.
Atribuindo uma
esposa e alguns filhos para cada um, temos aproximadamente 20 a 22 mil israelitas
saindo do Egito. Sendo que a população de Canaã durante a Idade do Ferro (Ca.
1150 a.C.) era de 50 a 70 mil, esse número de israelitas se encaixa muito bem
com o que se conhece por meio de estudos arqueológicos em Israel. Apenas a
título de ilustração, a maior cidade de Canaã naquela época (13º século a.C.),
Hazor, não era maior do que um quilômetro quadrado. As outras cidades que os
israelitas conquistaram eram bem menores do que ela. Uma população de dois
milhões de israelitas certamente deixaria um rastro muito claro e impossível de
não ser notado em escavações feitas em Israel.
Note que não se
trata de acreditar ou desacreditar o relato bíblico, mas, sim, de entendê-lo
corretamente à luz de sua língua original e do seu contexto histórico.
Origens de Israel: esse é um dos tópicos mais discutidos em simpósios
e fóruns bíblicos ao redor do mundo. Não temos espaço para discutir o assunto
em um parágrafro, mas basta dizer que existem basicamente três teorias para a
origem de Israel em Canaã: (1) o modelo bíblico da “conquista”, como numa
leitura equivocada e exagerada do livro de Josué; (2) tribos nômades entrando
naquele território pela região da Transjordânia, a região à direita do rio
Jordão; e (3) Israel nunca saiu da “Terra Prometida”, eles se originaram e se
desenvolveram lá. Uma quarta teoria tem sido defendida por Finkelstein,
afirmando que os israelitas eram pastores cananeus que sempre viveram ali na
região.
Se Israel se
originou em Canaã, como o articulista sugere, e não de uma saída em massa do
Antigo Egito, por que diversos elementos da religião israelita tinham um curioso
reflexo da religião egípcia? O tabernáculo no deserto (Êx 25–40), por exemplo,
segue o mesmo modelo da tenda de Ramsés II em suas campanhas militares, e os
utensílios desse tabernáculo portátil, a arca da aliança, o candelabro, o altar
de incenso, as cortinas, entre outros, têm uma clara influência egípcia.
Se Israel se
originou em Canaã, por que a vemos proibição do porco na dieta israelita (Lev.
11), algo facilmente verificável em restos arqueológicos, enquanto os filisteus
tinham carne suína como parte fundamental de sua dieta? Porcos eram
considerados impuros no Antigo Egito, e até mesmo chamados de bw, abominar, detestar, ou bwt, abominação. Existem elementos na
cultura e na religião israelita que não são explicados pela teoria de
Finkelstein apresentada na Super.
Yahweh e
as origens do monoteísmo: vemos
traços de monoteísmo no Antigo Egito muito antes do polêmico faraó Akhenaten.
No chamado “Hino a Atum” (Ca. 1500/1400 a.C.), Amun-Re é exaltado como criador
de outros deuses e da humanidade. O conteúdo do hino parece ser mais antigo,
tendo sido preservado em uma estátua produzida entre as 13ª e 17ª dinastias (Ca. 1790–1540
a.C.), muito próximo da época dos patriarcas. Por falar neles, Abraão, Isaque e
Jacó usam os nomes divinos El e Yahweh de maneira intercambiável. Afirmar
que o nome El é reflexo de
influências pagãs na religião israelita pode ser uma conclusão apressada, já
que nas narrativas patriarcais existe ausência de qualquer adoração a Ba’al, um deus que também fazia parte do
mesmo panteão de que El era o líder.
Quanto a Yahweh (ou Javé) ser uma
divindade vinda de Midiã, realmente existem diversos poemas antigos no Antigo
Testamento que parecem sugerir isso (Juízes 5; Habacuque 3, etc.), e o fato de
Moisés ter passado boa parte de sua vida adulta ali parece favorecer a ideia de
que o libertador israelita tenha aderido ao culto a Yahweh ali. O tópico é controverso, mas por que não considerar esses
textos como uma descrição poética da marcha militar de Yahweh e dos israelitas saindo do Egito e passando por Midiã rumo a
Canaã? Por que eles precisariam necessariamente ser uma declaração da origem do
culto a Yahweh?
“Êxodo” na época da invasão dos “povos do mar”: a sugestão apresentada por Versignassi
que o “Êxodo” na verdade foi a fuga de poucos escravos cananeus numa época onde
o exército egípcio estava ocupado demais tentando proteger as fronteiras do
império é interessante, mas requer uma grande ginástica histórica. Ramsés III
lutou contra os “povos do mar”, entre eles os conhecidos filisteus, em 1180
a.C., logo no começo do seu reinado. Alguns anos antes, o faraó Merneptah
deixou registrado um documento comemorativo (estela) de suas campanhas em Canaã,
no qual ele menciona pela primeira vez um grupo étnico que ele chama de
“Israel” e que vivia ali por volta de 1207 a.C. Nesse documento, Israel é descrito
como um grupo nômade vivendo em Canaã, e essa é exatamente a informação que
temos de Israel no livro de Juízes. Um povo sem rei e sem uma capital; apenas
um centro religioso onde o tabernáculo estava localizado, Siló. Mas em vez de
de se manter com esse cenário bem fundamentado, o articulista está pressupondo
a teoria de Finkelstein de que os israelitas se originaram em Canaã, uma teoria
que está longe de ser unanimidade nos círculos arqueólogicos.
Foto 2: Estela do
faraó Merneptah
Abertura do “Mar Vermelho”: “Mar Vermelho” é uma tradução baseada na
versão grega do Antigo Testamento, a Septuaginta (LXX). O texto hebraico de
Êxodo simplesmente traz “mar de juncos” (heb. yam suph), região também conhecida em textos egípcios do Reino Novo
como pa tufy, como sugerido pelo
arqueólogo austriáco Manfed Bietak. Se reunirmos as coordenadas geográficas e
os nomes dos lugares (topografia) mencionados em Êxodo 12:37 e 14:1-9 e
compararmos com a documentação egípcia obtida nas inscrições de Seti I, pai de
Ramsés II, no Templo de Karnak, em Luxor, podemos localizar com segurança o
“mar vermelho”. Tradicionalmente pensa-se que este seria o Golfo de Suez, entre
o Egito e a Península do Sinai. Na verdade, trata-se dos lagos el-Ballah, que
não existem mais desde que o canal de Suez foi feito no século 19. Estudos
naquela região em 1995 revelaram um porto no qual barcos ficavam estacionados. Ele
tinha aproximadamente 15 km de extensão e uma profundidade de três metros. Seria
perfeitamente possível comparar tamanha quantidade de água com um muro à
esquerda e à direita dos israelitas (Êx 14:22).
Foto 3 - A proposta
rota do Êxodo está marcada em vermelho. O “Mar Vermelho” são os lagos El-Ballah,
no lado direito do mapa
Esse é o principal
aspecto sobrenatural da história e é aqui que os céticos se apegam para
desmentir todo o relato do Êxodo. Essa é outra discussão. Bastaria dizer por
agora que ninguém no Antigo Oriente colocava uma roupagem histórica num mito
para lê-lo como uma história real. Se você compartilha de uma visão de mundo
onde Deus é real e Ele é o Criador, eventos miraculosos não são um problema,
afinal é Ele quem governa toda a Sua criação.
Hoffmeier
apresentou recentemente duas palestras sobre a geografia do Êxodo e as diversas
teorias que circulam na internet. Uma delas foi com o geólogo Stephen Moshier.
Você pode ter acesso a elas aqui e aqui. Vale a pena também ler um artigo publicado há alguns anos neste blog pelo Dr.
Rodrigo Silva (confira).
Levitas: a teoria de que os levitas foram o único grupo que esteve no
Egito não é nova. Desde muito cedo, acadêmicos reconheceram a presença de nomes
egípicios entre alguns membros dessa tribo. Se esse é o argumento, deveríamos
incluir a tribo de Naftali, já que um dos seus líderes se chamava Ahira, uma combinação das palavras
“amigo” e “Rá”, em hebraico e egípcio, respectivamente (Nm 1:15; 2:29; 7:78;
8:3; 10:27). Também deveríamos incluir a tribo de Judá, já que Hur, que ajudou
Moisés a manter seus braços erguidos numa batalha contra os amalequitas, muito
provavelmente é o nomedo deus egípcio Hórus (hr). Recentemente, outro acadêmico, Richard Hess, fez um estudo dos
nomes daqueles que saíram do Egito e a conclusão dele é a de que são nomes de
várias etnias (egípcios, semitas, hititas e hurritas), no mesmo período do
Êxodo, fortalecendo o relato bíblico que afirma que um “misto de gente” saiu do
Egito com os israelitas. (Êx 12:38).
Leis do Pentateuco: a opinião quase generalizada de biblistas
treinados única e exclusivamente em hebraico, e treinamento amador nas línguas
do Antigo Oriente, é que o Pentateuco foi escrito na época do rei Josias, rei
de Jerusalém, no sétimo século a.C., e não na época de Moisés. Mas os mesmos biblistas
parecem se esquecer de que códigos eram comuns no Antigo Oriente, entre eles os
textos sumerianos das leis de Ur-Nammu (2100 a.C.), Lipit-Ishtar (1930 a.C.), e
o famoso código de Hamurabi (1780 a.C.), escrito em acadiano. A estrutura do
livro de Deuteronômio, por exemplo, é idêntica à de tratados entre um suzerano
e seus vassalos do século 13 a.C., muito comuns no Antigo Oriente, na época de
Moisés e dos israelitas que saíram do Egito, não na época do rei Josias.
Colocar a produção do Pentateuco na época desse rei é o mesmo que ignorar a
vasta literatura do Antigo Oriente, disponível para ser comparada.
Escravidão: escrevi sobre escravidão no Antigo Testamento em resposta a
outra matéria do mesmo autor (confira aqui). Se você assitiu ao recente filme
“12 anos de escravidão”, deve se lembrar de uma cena em que o dono de uma
fazenda começa o dia de trabalho lendo um trecho de Êxodo 21 para seus escravos
negros. É inegável que muitas atrocidades foram cometidas em nome do cristianismo,
apesar de seu Fundador jamais sancioná-las. Mas a pergunta é: O texto bíblico estava
realmente autorizando essas práticas? No caso da escravidão, aí vão alguns
breves comentários à luz de Êxodo 21:1-11: (a) por escravidão, entenda servidão.
O trabalho de seis anos era para pagar dívidas; (b) o texto aparentemente
sugere que a escravidão separava famílias, já que após o período de trabalho o
homem deixaria a esposa e os filhos, caso houvesse começado solteiro seus seis
anos de trabalho. Em outra passagem em que a mesma lei é repetida, é-nos dito
que mulheres também estavam sujeitas ao mesmo período de trabalho (Dt 15:12). Ou
seja, a mudança no status matrimonial
não anulava o contrato de trabalho de seis anos. A esposa, que também seria escrava,
teria que cumprir o período de servidão.
Essa foi a
primeira lei que Deus deu aos israelitas após o pronunciamento dos Dez
Mandamentos (Êx 20). Se você ler atentamente esse texto (Êx 21:1-11), vai notar
a constante repetição de um verbo: “sair”. Esse é o mesmo verbo utilizado para
falar da “saída” (Êxodo) dos israelitas. Em outras palavras, o Legislador de
Israel, Yahweh, estava dizendo: vocês
tiveram um êxodo como escravos, agora
seus servos também devem ter um.
Conclusão
Quando convocado a
deixar os israelitas saírem do Egito, faraó respondeu prepotentemente: “Quem é
o Senhor para eu Lhe ouça a voz e deixe ir a Israel? Não conheço o Senhor, nem
tampouco deixarei ir a Israel” (Êx 5:2). Sendo assim, Yahweh fez questão de se revelar a ele mostrando a impotência da
religião egípcia. Diversos textos egípcios falam do “braço forte” de faraó, mas
ironicamente o Deus hebreu usa essa expressão para falar do Seu poder. Por meio
de um simples cajado de pastor Ele fez Seus grandes atos na terra do Egito, não
com os cetros carregados de simbolismo e poderes mágicos usados pelo faraó.
Nessa guerra entre Deus e um rei com complexo de divindade, faraó finalmente
descobriu quem era Yahweh.
Numa era marcada
pela mesma arrogância faraônica diante da existência de Deus, a história da libertação
dos israelitas do Egito é um constante lembrete para nossa geração do perigo da
exaltação do poder e da capacidade humanos. Ao invés de “Deuses e Reis”, a
história bíblica é entre um Deus e um rei arrogante. Verseginassi diz ser grato
aos israelitas pelas grandes histórias e pelos filmes. Creio que a história do
Êxodo nos oferece algo mais importante para sermos gratos. Ela nos lembra da
inutilidade do orgulho humano diante de um Ser mais poderoso.
(Luiz Gustavo Assis é teólogo e mestrando em
Arqueologia Bíblica e do Oriente Médio na Trinity International University, nos
EUA; texto produzido com exclusividade para o blog www.criacionismo.com.br)