Para que qualquer pesquisa científica faça sentido são necessários alguns pressupostos filosóficos. O primeiro deles é que existe uma realidade externa que pode ser observada pelos sentidos ou por instrumentos. O segundo é que essa realidade é ordenada e que essa ordem é uniforme no tempo e no espaço. A negação do primeiro pressuposto seria afirmar que tudo o que observamos é de certa forma ilusório ou que a realidade externa depende do ser observador sendo diferente para cada um. Uma negação do segundo pressuposto seria afirmar que a realidade externa é caótica. Nesse caso, seria inútil falar sobre leis naturais, tais como: a lei da gravitação, a primeira e segunda leis da termodinâmica ou as equações de Maxwell. Se a ordem da realidade externa não é uniforme no tempo e no espaço, não posso garantir que uma lei natural deduzida por experimentos aqui e agora terá validade em outro lugar ou em outro momento.
Ao afirmar que a única coisa que existe é o cosmos observável, que existe por si próprio, o naturalismo filosófico não sabe dizer por que esses pressupostos são válidos. A perplexidade sobre essa questão pode ser notada nas afirmações de Albert Einstein e Eugene Wigner: “Você pode estranhar que eu considere a possibilidade de compreender o mundo como um milagre ou um mistério eterno. Bem, a priori deve-se esperar um mundo caótico, que não possa ser apreendido pelo pensamento de nenhuma forma... O tipo de ordem criada, por exemplo, pela teoria da gravitação de Newton é algo bem diferente. Mesmo se os axiomas da teoria foram elaboradas por um ser humano, o sucesso de tal empresa pressupõe uma ordem no mundo objetivo em um alto grau, que não se tem direito de esperar a priori. Esse é o milagre que fica cada vez mais persuasivo com o crescente desenvolvimento do conhecimento” (Albert Einstein, Letters to Solovine, New York: Philosophical Library, 1987, p. 131).
“A enorme utilidade da matemática é algo à beira do misterioso... Não há uma explicação racional para isso... O milagre da adequação da linguagem da matemática para a formulação das leis da física é um dom maravilhoso que nem entendemos nem merecemos...” (Eugene Wigner, "The Unreasonable Effectiveness of Mathematics in the Physical Sciences". Communications on Pure and Applied Mathematics 13:1-14, 1960).
Uma visão de mundo teísta, dentro da qual criacionistas bíblicos estão inseridos, concorda com esses pressupostos considerando-os uma conseqüência da natureza da divindade descrita na Bíblia. Para a visão de mundo teísta a realidade fundamental é Deus. O mundo à nossa volta, o Cosmos, é criação de Deus. Uma criação realizada por uma divindade inteligente e ordenada vai apresentar evidências da ação da divindade. Uma dessas evidências é a possibilidade de modelar os fenômenos naturais por leis de natureza matemática. A própria existência de seres (humanos) com capacidade de investigar a natureza e discutir essas questões decorre de atributos concedidos a esses seres pelo Criador.
A aceitação dos dois pressupostos citados tanto pelos que adotam uma visão de mundo naturalista como pelos que se baseiam numa visão de mundo teísta de inspiração bíblica, permite que concordem com a maioria dos assuntos discutidos e estudados pela ciência.
Tensões e divergências surgem quando a ciência faz conjecturas sobre a origem de certas coisas, tais como: a origem do Universo, a história geológica da terra, a origem da vida, a origem da diversidade biológica e a origem do homem.
Essas áreas da ciência dependem muitas vezes de se fazer inferências a partir de dados observados. Como essas inferências não podem ser testadas com experimentos de laboratório, elas apresentam uma incerteza que deve ser reconhecida por qualquer pessoa que pratique ciência de forma séria. Outra coisa que deve ser reconhecida é que a inferência proposta pode depender da visão de mundo adotada. Além disso, a visão de mundo adotada pode introduzir tendências na própria forma de colher dados. Qualquer cientista faz sua coleta de dados baseado nas hipóteses que constrói antes de começar a trabalhar.
Vou citar um exemplo dessa situação tirado da paleontologia. A Formação Pisco, no Peru, contém muitos fósseis de baleia em depósitos de diatomita. As diatomáceas são organismos microscópicos que vivem próximos à superfície de lagos e oceanos. Nos oceanos modernos os esqueletos de sílica afundam e formam sedimentos de alguns centímetros por mil anos. Publicações sobre a Formação Pisco, baseadas em uma visão convencional da geologia, não questionaram como sedimentos que se acumulam tão lentamente poderiam ter preservado baleias inteiras sem que sua estrutura óssea se desintegrasse enquanto exposta. Raúl Esperante e Leonard Brand, paleontólogos que partilham de uma visão de mundo teísta bíblica, pesquisaram a Formação Pisco encontrando várias evidências de que a taxa de deposição de diatomita deve ter sido tão rápida que em poucas semanas ou meses pôde sepultar aquelas baleias. Os resultados da pesquisa foram apresentados na reunião anual da Geological Society of America e publicados:
• Esperante, Raúl, Brand, L. 2002. "Preservation of baleen whales in tuffaceous and diatomaceous deposits of the Pisco Fm, southern Peru". First International Palaeontological Congress (IPC2002), Geological Society of Australia, Abstracts Number 68, 51.
• Esperante, Raúl, Brand, L., Chadwick, A., Poma, A. 2002. "Taphonomy of fossil whales in the diatomaceous sediments of the Miocene/Pliocene Pisco Formation, Peru". In: "Current topics on taphonomy and fossilization", De Renzi, M., Pardo Alonso, M. V., Belinchón, M., Peñalver, E., Montoya, P., Márquez-Aliaga, A. (Editors), Valencia, Spain, pages 337-343.
• Esperante-Caamano, Raúl, Brand, L., Chadwick, A., DeLucchi, F. 2000. "Fossil whales of the Miocene/Pliocene Pisco Formation, Peru: stratigraphy, distribution, and taphonomy". Geological Society of America Annual Meeting, Reno, Nevada, Abstracts with Program 32(7): A499.
• Esperante-Caamano, Raúl, Brand, L., Chadwick, A., Poma, A. 1999. "Taphonomy of fossil whales in the Miocene/Pliocene Pisco Formation, western Peru". Geological Society of America Annual Meeting, Denver, Colorado, Abstracts with Program 31(7): A466.
A Dra. Elaine Kennedy e o Dr. Arthur Chadwick são outros pesquisadores que conheço na área da geologia que fazem pesquisa geológica de alta qualidade técnica, e que por vezes usam uma inspiração para suas hipóteses baseada na sua compreensão do texto bíblico. A história da ciência está cheia de exemplos de descobertas inspiradas em fontes de informação não científica. O fato de alguma pesquisa farmacêutica ser inspirada nas ervas usadas por um pagé não implica que os princípios ativos encontrados e testados por metodologia científica não sejam válidos.
O Dr. Leonard Brand defende que uma boa ciência inspirada na Bíblia pode ser feita desde que o pesquisador: esteja a par da obra e pensamento daqueles que têm uma visão de mundo diferente; sempre que possível, submeta seu trabalho destinado à publicação à revisão por outros profissionais da área; e haja um relacionamento amigável com aqueles que defendem uma visão de mundo diferente, contando até com a colaboração deles. (Leonard Brand, "Faith and science: Can they coexist?" College and University Dialogue 14(3):12-14, 2002 – Disponível on-line.)
Toda ciência parte de premissas cuja origem está além da simples observação da natureza. Não são apenas teístas bíblicos que usam pressupostos de origem filosófica para direcionar a pesquisa. Um exemplo disso pode ser visto no artigo “A receita da vida”, da revista Galileu de maio de 2003. Apesar do pouco sucesso concreto nas pesquisas para origem da vida e do reconhecimento de José Fernando Fontanari de que "o estudo da origem da vida difere marcadamente de outros problemas científicos porque tem como meta a reconstrução de um passado remoto do qual conhecemos muito pouco", e que "o melhor que se pode fazer é propor cenários que poderiam ter ocorrido", a busca continua inteiramente motivada pelo pressuposto do naturalismo filosófico de que a única forma para a vida ter se originado seria pela ação das leis naturais e do acaso.
O físico Paul Davies, reconhecendo que as leis naturais que conhecemos não são suficientes para explicar a origem da vida, afirma: “Um progresso real será realizado com respeito ao mistério da biogênese, eu creio, não através de uma química exótica, mas de algo conceitualmente novo” (The Fifth Miracle: The Search for the Origin of Life, New York: Simon & Schuster, 1999, p. 216). Em nenhum momento da discussão sobre a origem da vida é mencionado que a complexidade específica demonstrada por todos os seres vivos aponta para uma origem planejada por um agente inteligente. Essa possibilidade é excluída apenas com base em motivos filosóficos.
Se a ciência motivada pelo naturalismo filosófico pode falar em propor cenários que poderiam ter ocorrido e buscar dados para corroborar esses cenários, por que uma ciência motivada pelo teísmo bíblico não pode também propor cenários que poderiam ter ocorrido, baseados na premissa de que o Deus Criador fez revelações relativas à história da Terra contidas no texto bíblico?
(Prof. Dr. Urias Echterhoff Takatohi, Centro Universitário Adventista de São Paulo - UNASP)