O mundo está se secularizando |
Até
setembro do ano passado, Jonathan Sacks, 65 anos, foi o rabino-chefe da Commonwealth,
que congrega a Inglaterra e várias de suas antigas colônias. A aposentadoria
do cargo que ocupou por mais de vinte anos deu-se meses depois da renúncia do
papa Bento XVI ao pontificado. “A preocupação então foi com o Dalai-Lama”, diz
Sacks. A tirada é representativa do humor com que ele trata dos temas de sua
fé. Sua mensagem, porém, é séria e fundamentada: o rabino é também um filósofo,
com sólida formação acadêmica nas universidades de Cambridge e Oxford. Nesta
entrevista [publicada na íntegra na revista Veja
desta semana], ele fala do papel fundamental do judaísmo na civilização [entre
outros assuntos]:
Qual é a
relevância do judaísmo para a cultura moderna?
O
Ocidente nasceu do encontro de duas civilizações antigas: Atenas e Jerusalém.
O cristianismo herdou sua religião do judaísmo e sua filosofia da Grécia. O
judaísmo, portanto, entra na cultura ocidental pela via do cristianismo. Teve
um tremendo impacto, sobretudo, depois da Reforma, quando os cristãos começaram
a ler a Bíblia por conta própria. Foi isso que propiciou o nascimento
do mundo moderno na Europa. Os puritanos, que leram a Bíblia hebraica com
muito cuidado, fundaram os Estados Unidos. As fontes judaicas tiveram muito
impacto na Europa no século XVII e têm um impacto forte nos Estados Unidos
ainda hoje. Um exemplo foi o discurso inaugural do segundo mandato do
presidente Barack Obama (em janeiro de 2013).
Por quê?
A
expressão-chave do discurso, que Obama usou repetidas vezes, foi “nós, o povo”.
É a expressão que inicia o texto da Constituição dos Estados Unidos. Ela tem
raízes na Aliança de que a Bíblia fala, nos livros do Êxodo e do Deuteronômio:
a ideia de que somos todos coletivamente responsáveis uns pelos outros, e de
que essa responsabilidade não recai apenas sobre o chefe de Estado. Essa é uma
ideia especificamente judaica, que não se encontra, por exemplo, em Platão,
Aristóteles ou Hobbes. O judaísmo, então, teve uma grande importância para a
cultura ocidental. Os Estados Unidos mantêm esse legado, do qual a Europa está
se afastando.
Por que a Europa
estaria mais distante do judaísmo?
A
Europa hoje é muito secular. A cultura europeia está perdendo sua porção de
Jerusalém e se aproximando mais da herança grega. Práticas como aborto e
eutanásia eram comuns na Grécia antiga e agora estão de volta na Europa. A
ideia de que a vida é sagrada é, afinal, muito religiosa. Já nos Estados Unidos
há uma divisão: as elites litorâneas tendem a ser mais gregas, enquanto o
interior do país seria mais judaico.
O senhor diz que
Jerusalém é a cultura da esperança, e Atenas, a cultura da tragédia. Não há,
portanto, tragédia na Bíblia hebraica?
Não
existe “tragédia” em hebraico antigo. A palavra empregada hoje em Israel é
importada do grego. A tragédia está fundada na ideia grega de que existe um
destino, a Moira, e que aquilo que o Oráculo de Delfos predisser acontecerá,
não importa quanto você tente evitá-lo. Se o decreto foi baixado, tudo o que se
tentar para anulá-lo terminará em tragédia. No judaísmo, porém, dizemos que
arrependimento, oração e caridade revogam qualquer decreto.
O senhor é critico do
que vê como relativismo moral da Europa. Como define o relativismo?
É
a crença de que não existe ordem moral objetiva, de que a moralidade é o que
decidimos fazer dela. A Bíblia tem um modo de defini-la, na última
frase de Juízes: “Naqueles dias não havia rei em Israel; porém cada um fazia o
que parecia reto aos seus olhos.” É o abandono de um código compartilhado
de valores, que é o que liga uma pessoa à outra. Em uma sociedade moralmente
relativista, portanto, os relacionamentos não se sustentam: as pessoas não se
casam, ou, se chegam a se casar, a união não dura. Elas não têm um
relacionamento sólido com os filhos. Banqueiros e financistas não veem razão
para renunciar aos salários mais exorbitantes e trabalhar para o bem comum. A
sociedade, aos poucos, começa a se dissolver, e o primeiro sinal disso é a
dissolução da família. Na Inglaterra, hoje, 50% das crianças nascem fora do
casamento. Muitas estão em situação de desvantagem. As crianças pagam o preço
da nossa perda de um sentido de lealdade e responsabilidade.
A propósito, qual é a
posição judaica sobre o casamento [sic] entre pessoas do mesmo sexo?
Nossa
posição é muito parecida com a católica: a Bíblia proíbe o casamento
entre pessoas do mesmo sexo. Portanto, não podemos admiti-lo. Ao mesmo tempo,
reconheço que, tendo membros gays em nossa comunidade, preciso dar auxilio
pastoral a eles, mesmo quando casais. Eles me procuram sabendo dos limites das
minhas crenças, dizendo: “Sabemos que você não pode abençoar nosso casamento,
mas precisamos de sua ajuda.” Eu tento ajudar. Todos os anos, no dia internacional
da Memória do Holocausto, 27 de janeiro, lembro a todos que os homossexuais
também foram mandados para os campos de concentração. E importante recordar
esse fato.
Qual é sua posição
sobre o chamado “novo ateísmo” de autores como o biólogo Richard Dawkins e o
filósofo Sam Narris?
Conheci
ateus muito mais qualificados. (O filósofo) Bernard Williams, que
foi meu professor, era um ateu que sabia do que falava. Nenhum dos novos ateus
chega perto de um Russell, de um Hume, de um Nietzsche. Os ateus contemporâneos
são levados a sério, mas não são sérios.
No entanto, o senhor
participou de debates públicos com Dawkins. Isso não é levá-lo a sério?
Ele
é um cientista sério, mas não um ateu sério. Eu tenho formação em filosofia,
ele não. Tive dois debates com ele. Em um, Dawkins leu o texto de uma carta que
ele escreveu à filha quando ela tinha 10 anos. Dizia, entre outras coisas, que
ela não aceitasse nada sem provas. Deixei passar uns dez minutos na conversa e
perguntei: “Richard, você é um otimista?” Ele respondeu: “É claro que sim.” Devolvi:
“Mas, Richard, onde estão as provas para isso?” Muitas coisas em que
acreditamos sem base em provas não são triviais. Mas tratei Richard Dawkins
como um amigo. No judaísmo, estamos acostumados à discussão. Somos uma
religião de debatedores. Só porque discutimos não quer dizer que não possamos
ser amigos. [...]
A oração funciona até para
quem não acredita?
Sim.
A oração é a nossa conexão bluetooth com Deus. Funciona, pois Ele está sempre
pensando em nós, e nós, mesmo que inconscientemente, estamos sempre pensando
nEle. [...]