quarta-feira, junho 07, 2017

As duas revelações (parte 1)

Muitos cristãos se sentem temerosos de buscar na Ciência apoio para sua fé, principalmente ao perceberem que a academia, predominantemente, defende uma visão de ciência baseada no naturalismo, que nega a necessidade do sobrenatural para explicar a natureza. Por outro lado, inúmeros acadêmicos que trabalham com ciência sentem-se indispostos a dar algum crédito a qualquer explicação sobre origens que não inclua somente causas e leis naturais, acreditando que isso seria apelar para magia e superstição. Para abordar esse dilema é necessário que primeiro tenhamos uma ideia bem definida do que é ciência e dos vários sentidos em que essa palavra tem sido usada. Ter essa consciência nos ajudará a decidir qual desses sentidos é mais útil para os que querem encontrar respostas da realidade objetiva. Isso para os que acreditam que existe uma realidade objetiva, que determina que as coisas funcionem de uma forma e não de outras, por exemplo: normalmente na superfície da Terra as coisas caem para baixo e não para cima.

Tendo-se em mente os vários sentidos em que a palavra “ciência” tem sido utilizada, podem-se avaliar melhor algumas questões que têm sido levantadas. Questões sobre mudança de paradigmas ou relacionadas à revisão de conceitos que dizem respeito à fragilidade de afirmações que precisam ser corrigidas de tempos em tempos, enfim, da mutabilidade da ciência e da possibilidade de se confiar nela.

Uma outra questão é se seria relevante para os cristãos entenderem algo do funcionamento da natureza. Se esse tipo de conhecimento seria útil na compreensão de Deus e de Sua forma de agir. E se, sim, como as Escrituras consideram essa questão: como algo opcional que pode reforçar ou não nossa fé ou como algo essencial, sem o qual alguma coisa ficaria faltando em nossa experiência.

Deparamo-nos, ainda, com outras interrogações:      

Seria verdade que durante a Idade Média Deus estava no centro do pensamento do mundo ocidental e que a Revolução Científica tirou Deus dessa posição?

Seria verdade que o descobrimento da Ciência ocorreu sob a óptica naturalista?

Qual foi o tipo de visão que permitiu a fantástica explosão de conhecimento e tecnologia que observamos hoje?

Foram os pioneiros da Ciência que motivaram os paradigmas acadêmicos da atualidade?

O que as evidências históricas nos dizem sobre essas questões?

O que podemos encontrar de evidências sobre Deus na natureza?

É disso que esta série de artigos se propõe a tratar.

Ciência, significados da palavra e confiabilidade

O sentido original de ciência (do latim scientia) é conhecimento ou conhecer.[1] Ao longo da história e em muitos contextos atuais ela tem sido usada com esse sentido. Outro sentido em que tem sido usada frequentemente, especialmente em contextos acadêmicos, escolares e de publicações especializadas, é o definido pelo protocolo que inclui observação, formulação de uma hipótese, experimentação, interpretação dos resultados e conclusão. Em sua forma básica, esse protocolo já era utilizado desde Aristóteles.[2, 3, 4, 5] De forma que, ainda incipiente, observação, formulação de uma hipótese, experimentação, interpretação dos resultados e conclusão é uma forma de
investigação que já era utilizada desde a Grécia Antiga e continua até nossos dias.

A definição da National Academy of Science (NAS) é a seguinte: “O uso de evidências para construir explicações e predições testáveis dos fenômenos naturais, bem como o conhecimento gerado por meio desse processo.”[6]

Pioneiros da Revolução Científica, como Galileu, Newton, Leonardo da Vinci e outros começaram a utilizar a palavra “ciência” com outro significado, à medida que divisavam um método de conhecer de forma inovadora e poderosa. A palavra original para essa nova ciência vem do grego μάθημα (transliterando, máthema) [7], e significa ciência, conhecimento, instrução. A diferença entre a ciência scientia e a ciência máthema é que a primeira é abrangente e inclui qualquer forma de conhecimento, desde a consciência que se tem de alguma coisa, como um sinônimo de estar ciente, até conhecimento adquirido por observação, experiência, indução, dedução e mesmo intuição; enquanto a segunda é mais específica e se refere à natureza do conhecimento objetivo.  

Embora alguns elementos da Matemática já fossem havia muito conhecidos, esses pioneiros utilizaram e/ou descobriram ferramentas matemáticas que lhes possibilitaram lidar com leis que regem fenômenos da natureza. Eles se deram conta de que é muito mais eficiente e seguro descobrir e utilizar métodos matemáticos do que simplesmente confiar na capacidade mental humana, ainda que auxiliada por sistematizações filosóficas.

Eis alguns exemplos de como eles pensavam:

“A [verdadeira] filosofia está escrita neste grandioso livro que está sempre aberto à nossa contemplação (refiro-me ao universo), mas que não pode ser entendido sem que primeiro aprenda-se a língua, e conheçam-se os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos, e outras figuras geométricas sem as quais é humanamente impossível entender sequer uma de suas palavras; sem estes [caracteres] fica-se a vagar por um escuro labirinto.”

“Deixando de lado as sugestões, falando abertamente e tratando a Ciência como um método de demonstração e raciocínio humanamente alcançável, sustento que quanto mais isso participa da perfeição, menor será o número de proposições que prometerá ensinar, e menos ainda provará conclusivamente. Consequentemente, quanto mais perfeita é [a metodologia], menos atrativa será e menos seguidores terá.” Galileu[8]

“Nenhuma investigação humana pode ser chamada de científica se não passar no teste das demonstrações matemáticas.” Leonardo da Vinci[9]

Newton, especialmente, conseguiu formular as leis da Mecânica descobrindo uma nova ferramenta matemática, o Cálculo. Essa nova ferramenta levou a investigações sobre calor, luz, eletricidade, magnetismo e átomos, que levaram ao desenvolvimento da Química, Biologia, Geologia, Medicina, Engenharias e tecnologias que alavancaram todas as áreas do conhecimento.[4]

Esse tipo de ciência que significou uma revolução do conhecimento e possibilitou o subsequente desenvolvimento tecnológico e a Era da Informática, pode ser entendido como um conjunto infinito de métodos matemáticos que podem ser utilizados em investigações em qualquer área.

Outros sentidos populares em que a palavra tem sido utilizada, inclusive por pesquisadores, incluem: áreas do conhecimento (Física, Química, Biologia, etc.), pesquisas realizadas, resultados de pesquisas, conclusões a partir de estudos, opiniões de cientistas, o consenso acadêmico baseado no naturalismo filosófico, o ambiente acadêmico, entre outros.

Tendo em vista todos os significados acima para a palavra “ciência”, podemos começar a entender por que se diz que os paradigmas dela mudam, por que ela pode errar ou por que, de tempos em tempos, conceitos têm que ser revisados. E, ainda, por que se acredita que paradigmas sociais determinam o que vai ser descoberto pela Ciência.

O conhecimento adquirido de forma mais qualitativa é mutável e passageiro, muda quando surgem novos dados. Isso diz respeito à consciência que seres humanos têm das coisas, ou intuições, induções e deduções que tiveram ou fizeram, ainda que de forma racional. As mudanças de paradigmas na sociedade podem mudar as crenças filosóficas predominantes na academia, podem mudar os tipos de estudos que acadêmicos se inclinam mais a fazer e mesmo as opiniões que eles terão sobre os resultados de pesquisas.

Se o sentido em que for usada a palavra “ciência” se referir ao protocolo composto pelas etapas observação, formulação de uma hipótese, experimentação, interpretação dos resultados e conclusão, apesar de ele tornar o estudo mais rigoroso e ser um grande avanço em relação ao uso do raciocínio puro desarmado, ainda será passível de erros, pois estará sendo utilizado por seres humanos falíveis, ainda que diminuindo a probabilidade de ocorrerem erros.

E quanto à Ciência, definida como conjunto infinito de métodos matemáticos? Para responder como paradigmas, opiniões, preconceitos ou erros acidentais podem afetar esse tipo de abordagem é necessário saber como ele funciona.

O mais surpreendente na utilização de métodos matemáticos não é nem o fato de que equações matemáticas podem descrever fenômenos físicos nos mínimos detalhes, mas “que matemáticos desenvolvam ramos abstratos da matemática sem nenhuma aplicação em mente; todavia, décadas ou algumas vezes séculos mais tarde, físicos descubram que aquelas teorias forneciam os fundamentos matemáticos necessários para os fenômenos físicos. [...] O matemático Bernhard Riemann, por exemplo, discutiu na década de 1850 novos tipos de geometria que se encontrariam em superfícies curvas como em uma esfera ou sela (ao invés da geometria plana que aprendemos na escola). Então, quando Einstein formulou sua teoria da Relatividade Geral (em 1915), as geometrias de Riemann acabaram por ser exatamente a ferramenta de que ele precisava!”[10]

Não há como paradigmas, opiniões ou preconceitos afetarem a forma como a Matemática funciona. Por exemplo, alguém pode querer encontrar um número real cujo quadrado seja negativo, mas isso não existe e não tem como alguém fazer com que pareça que encontrou um número assim usando regras da Matemática. Erros acidentais podem acontecer ao alguém esquecer de incluir algum parâmetro importante numa equação ou utilizar uma ferramenta que não é adequada ao problema que deseja abordar, mas esse tipo de erro é muito mais fácil de ser detectado por quem examinar o modelo. Por outro lado, nas outras abordagens popularmente chamadas de ciência é muito mais difícil de descobrir os erros devido à quantidade de premissas implícitas.

Os pioneiros da Ciência entenderam que as leis da natureza são relações matemáticas. Seria muito estranho acreditar que o ser humano inventou a Matemática e que, apesar de ser uma invenção, ela seria capaz de prever fenômenos e se ajustar tão perfeitamente à forma como a natureza funciona. Como seria possível que uma construção arbitrária do pensamento humano conseguisse prever em detalhes finos fenômenos jamais observados, como tem acontecido frequentemente em áreas que fazem uso intenso de métodos matemáticos? Seria isso a manifestação de habilidades humanas sobrenaturais ou seria o caso de que essas coisas simplesmente refletem padrões que podem ser detectados no mundo natural, padrões esses que fazem parte do que chamamos de Matemática? Acreditar que a Matemática seja uma invenção induz ao misticismo. O ser humano não inventou a natureza e não faz sentido ter inventado a Matemática, a não ser no que tange aos símbolos que a representam. A forma como a Matemática pode ser representada (linguagem) pode variar, mas os significados são os mesmos.

Alguns filósofos, matemáticos e cientistas têm diferido de opinião com respeito a isto: se a Matemática teria sido descoberta ou inventada. Aqueles que acreditam que a Matemática foi descoberta são chamados de platonistas, pois Platão acreditava assim. Nunca li Platão, não tenho a menor ideia do que ele pensava e, se ele acreditava assim, é um sinal de que ele também percebeu isso na natureza. Por outro lado, um grande número de matemáticos, cientistas e filósofos acredita que a Matemática foi inventada. Ao que parece, pelo menos em alguns casos, como o do matemático Barry Mazur, eles pensam que acreditar que a Matemática foi descoberta pode ter implicações indesejáveis: “Se adotarmos a opinião platonista de que a matemática foi descoberta, estaremos repentinamente em um território surpreendente, pois esta é uma posição completamente teísta.”[11]

Comparando essa ideia com a alternativa, teríamos duas opções: ou cremos que a Matemática é um invenção, crença essa que leva ao misticismo, ou cremos que ela existe independentemente de nós, o que leva ao teísmo.

Como veremos adiante, não é a Ciência que se opõe a Deus, mas linhas filosóficas (mesmo apoiando-se em alguns resultados de pesquisas) que costumam ser chamadas de ciência.

Ciência, depois da Revolução Científica, passou, então, a ser definida como esse conjunto infinito de métodos matemáticos que podem ser aprendidos e validados no estudo da natureza.


(Graça Lütz é bióloga e bioquímica)

Referências:
[1] Online etymology dictionary. http://www.etymonline.com/index.php?term=science
[2] History of the scientific method. https://explorable.com/history-of-the-scientific-method
[3] Stanford encyclopedia of philosophy; scientific method. http://plato.stanford.edu/entries/scientific-method/#HisRevAriMil
[4] WILLIAMS, L. P. History of science. https://global.britannica.com/science/history-of-science
[5] FARIA, C. Método científico. www.infoescola.com/ciencias/metodo-cientifico/
[6] BAILEY, D. H. What is science? http://www.sciencemeetsreligion.org/philosophy/what-is-science.php  1/1/2017
[7] ISIDRO PEREIRA, S. Dicionário grego-português e português-grego. Rua da Boavista, 591 - 4000 Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1969.
[8] GALILEI, G. Il saggiatore. 1624.
[9] MEYER, W. J. Concepts of mathematical modeling. Mineola, New York: Dover Publications Inc., 1984.
[10] LIVIO, M. Math: Discovered, invented, or both? http://www.pbs.org/wgbh/nova/blogs/physics/2015/04/great-math-mystery 13/4/2015
[11] MAZUR, B. Mathematical platonism and its opposites. http://www.math.harvard.edu/ mazur/papers/plato4.pdf 11/1/2008