segunda-feira, junho 19, 2017

As duas revelações (parte 4): o naturalismo e o niilismo

O problema da razão humana dissociada da ideia de Deus pôde ser apreciado, em pequena escala, durante a Revolução Francesa: seus ideais foram Liberdade, Igualdade, Fraternidade. A religião cristã tornou-se ilegal durante o período de descristianização[1] e foi instituído um culto à Razão, que teve até uma cerimônia realizada na Catedral de Notre Dame, em Paris, 1793.[2] A situação culminou no Reinado de Terror, durante o qual uma onda de execuções se seguiu contra qualquer suspeito de ser inimigo da Revolução. Milhares morreram em prisões ou sem julgamento.[3] Após isso, a religião foi restabelecida na França.

O filósofo grego Tales é considerado o pai do naturalismo. Ele acreditava que o cosmos era composto por modificações infinitas de uma única substância: a água. Nos séculos 17 e 18, os filósofos buscaram desmistificar as fontes de poder e hierarquia. “Com a gradual divulgação da visão de mundo naturalista por amplos setores da classe intelectual europeia no século 19, movimentos de reforma humanitária foram inaugurados, os quais entendiam a doença, a guerra, a fome, o crime, a insanidade, a escravidão, a desigualdade da mulher e a pobreza como patologias remediáveis causadas naturalmente, não como expressões do ‘pecado original’ ou o reflexo de uma hierarquia social inalterável.”[4]

Em 1859, Darwin publicou a Origem das Espécies, e forneceu à Biologia uma visão naturalista da origem dos seres vivos. As ideias de Darwin são baseadas em observações e deduções extraídas da natureza; não podem, contudo, ser entendidas como sendo Ciência no sentido em que a palavra foi usada por seus pioneiros. Contudo, suas conclusões “ajudaram a dar origem a uma nova escola de filosofia americana, conhecida como naturalismo, que emergiu como uma alternativa à filosofia tradicional, fundamentando o pensamento filosófico totalmente na natureza”.[4]

A sociedade pós-moderna é o resultado da filosofia preponderante de seu tempo. Acredita-se que as mentes pensantes que mais influenciaram nossa época foram Darwin, Marx, Nietzsche e Freud, cada um em sua respectiva área. Darwin estabeleceu a seleção natural, a luta pela sobrevivência e a vitória do mais forte. Marx colocou todas as crenças e valores subordinados aos modos de produção e descartou a religião como “ópio do povo”. Freud colocou toda motivação humana centralizada na libido reprimida. Nietzsche anunciou a morte de Deus e a falta de sentido em uma moralidade absoluta, mas previu que essa falta de valores redundaria em niilismo (do latim nihil, nada).[5]

Nietzsche acreditava que o cuidado dos doentes e sofredores por religiosos faria com que a raça europeia degenerasse. “Eles se esforçam por preservar e manter vivo o que quer que possa ser preservado; de fato, quanto às religiões para sofredores, elas assumem a estes por princípio; estão sempre a favor daqueles que sofrem tanto na vida quanto de uma doença, e se afanam por tratar todas as outras experiências da vida como falsas e impossíveis. Conquanto possamos estimar altamente essa indulgência e esse cuidado preservador (na medida que se aplicando a outros, tem sido aplicada, e se aplica também ao mais intensamente e usualmente sofredores tipos de homem), as até agora supremas religiões – para dar uma apreciação geral delas – estão entre as principais causas que têm mantido o tipo do ‘homem’ em um mais baixo nível – elas têm preservado muito o que deveria ter perecido. Deve-se agradecer a elas por inestimáveis serviços; e quem é suficientemente rico em gratidão para não se sentir pobre na contemplação de tudo o que os ‘homens espirituais’ do Cristianismo têm feito pela Europa até aqui! Mas quando eles têm dado conforto aos sofredores, coragem ao oprimido e desesperado, esteio e apoio ao desamparado, e quando eles atraem da sociedade para conventos e penitenciárias espirituais os de coração partido e maltratados: o que mais eles fazem a fim de trabalhar sistematicamente dessa forma, e com uma boa consciência, para a preservação de todos os doentes e sofredores, que significa, de fato e em verdade, trabalhar para a deterioração da raça europeia?”[6]

Ao longo do século 20, o otimismo anterior dos filósofos com relação aos resultados de uma sociedade fundada sobre a razão humana e o naturalismo deram lugar ao pessimismo e a uma visão catastrófica do futuro. Basta que comparemos com os filmes contemporâneos os primeiros filmes e as séries de ficção científica, como, por exemplo, Star Trek, em que o ser humano supera todas as desigualdades, guerras e fome, e a humanidade próspera e, evoluída, parte em busca de novas civilizações. Já os filmes mais recentes exploram realidades pós-apocalípticas, sociedades em que não existem sentimentos, liberdade, privacidade, etc. O mundo que seria regulado pela razão, igualdade, liberdade e fraternidade viveu duas grandes guerras e experimentou os horrores do Nazismo, que cria poder desenvolver uma raça superior (acreditava basear-se na evolução darwiniana). Testemunhou, também, o efeito da ameaça nuclear, e, atualmente, uma das epidemias que destrói mais vidas é a onda crescente de suicídios.

Nietzsche tinha razão quando previu a sociedade desfazendo-se no vazio devido à ausência de valores morais absolutos. É possível construir valores morais relativos na ausência de Deus, e valores relativos dependem da sociedade em que se vive. Só que esses valores, como a sociedade humana, são mutáveis e circunstanciais, e não podem ser mais fortes que os impulsos humanos sem Deus. O resultado é o mundo atual: ecologicamente falido, violento, economicamente instável e repleto de medo e loucura.

(Continua…)

(Graça Lütz é bióloga e bioquímica)

Referências: 
[1] KALTHOFF, M. Faith and terror: Religion in the french revolution. http://scholar.colorado.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2091&context=honr theses 1 4 2015
[4] PRADO, I. Ionian enchantment: A brief history of scientific naturalism. http://www.naturalism.org/worldview-naturalism/history-of-naturalism 6 2006
[5] HORN, P. Twentieth-century perspectives on culture. https://www.eolss.net/Sample-Chapters/C04/E6-23-05.pdf
[6] NIETZSCHE, F. Beyond good and evil. http://www.gutenberg.org/cache/epub/4363/pg4363.txt 7 12 2009