sexta-feira, junho 30, 2017

As duas revelações (parte 6): evidências da criação da vida

Para mim, a maior evidência de que a vida na Terra foi criada e não surgiu espontaneamente a partir da operação das leis da física e da química é o próprio fato de que todas as tentativas para demonstrar isso enfrentam barreiras intransponíveis. Até o século 19, era comum a crença de que vida poderia surgir espontaneamente de matéria orgânica em decomposição. Na década de 1860, Louis Pasteur realizou experimentos que demonstraram a inviabilidade do surgimento de vida de forma espontânea a partir de matéria orgânica em decomposição. Em 1924, Oparin publica The Origin of Life (A Origem da Vida) propondo o surgimento da vida pela acumulação sucessiva de populações moleculares cada vez mais complexas em gotículas de um coacervado.[1] Em 1929, Haldane publica ideias semelhantes às de Oparin.

O físico Freeman Dyson, em seu Origins of Life, diz que a teoria de Oparin foi popular entre os cientistas por cerca de meio século, “não porque houvesse qualquer evidência para apoiá-la, mas, antes, porque ela parecia ser a única alternativa para o criacionismo bíblico.”[2]

Em 1953, Urey e Miller, tentando comprovar as hipóteses de Oparin e Haldane, realizam seu célebre experimento procurando simular as condições da Terra primitiva para obter compostos orgânicos. Eles conseguiram obter, entre outras coisas, pequenos aminoácidos, que são matéria-prima para a formação de proteínas (componente principal de seres vivos). Alguns dos problemas com esse experimento são as evidências que surgiram de que a atmosfera da Terra primitiva não poderia ser redutora como simulado ali, e o de que os compostos orgânicos produzidos precisavam ser retirados rapidamente do meio de reação para não serem destruídos pelas descargas elétricas que os criavam.[3, 4]

Até o final da década de 1960, os pesquisadores da origem da vida se defrontavam com o dilema: quem surgiu primeiro, proteínas ou ácidos nucleicos? Porque proteínas dependem de ácidos nucleicos (DNA e RNA) para sua formação e ácidos nucleicos dependem de proteínas enzimáticas para serem sintetizados e exercerem suas funções.

Na década de 1960, Carl Woese, Francis Crick e Leslie Orgel propuseram que a molécula de RNA, além de sua função informacional, poderia exercer uma função catalítica (como proteínas enzimáticas).[5] E na década de 1980, Sidney Altman e Thomas Cech, independentemente, confirmaram que RNAs podem atuar como catalisadores em reações químicas.[6]

O dilema de quem teria surgido primeiro, proteínas ou ácidos nucléicos, parecia solucionado. Gerald Joyce e Leslie Orgel estão entre os pesquisadores que propuseram um mundo primitivo de RNA em que essa molécula teria atuado como a fornecedora da informação genética ao mesmo tempo que realizando as reações catalíticas para sua própria formação.[7]

Outros pesquisadores propuseram uma origem da vida por meio de um metabolismo primitivo em que catalisadores metálicos possibilitariam o estabelecimento de um ciclo metabólico a partir de moléculas pequenas.[8]

Os desafios enfrentados pelo modelo de um mundo primitivo de RNA são descritos na revista Scientific American, de 12 de fevereiro de 2007, por Robert Shapiro.[8] A seguir, apresento um resumo de alguns desses desafios:

A molécula de RNA é formada por nucleotídeos. Um nucleotídeo é formado por um açúcar, um fosfato e uma base, sendo estes formados por 9 ou 10 átomos de carbono, átomos de nitrogênio, oxigênio e fósforo. As combinações possíveis que esses átomos poderiam formar espontaneamente na natureza são muitas e não existe uma razão para se acreditar que seriam preferencialmente as que formariam RNA. A síntese prebiótica (de substâncias da Terra primitiva) realizada em laboratório utiliza, normalmente, quilogramas de material inicial para obter miligramas do produto. Explicando: os reagentes necessários para cada etapa da formação de RNA obtidos nesse tipo de síntese são sempre em quantidades ínfimas. A despeito disso, eles são utilizados em grandes quantidades nas etapas de reação. Quem ou o que forneceria essas quantidades grandes na Terra primitiva?

Algumas das condições invocadas para tornar possível a síntese de RNA na Terra primitiva são: lagoa seca, lagos glaciais congelados, reservatórios de água fresca em flancos de montanha, correntes fluindo, praias, desertos secos, aquíferos vulcânicos e o oceano global inteiro (congelado ou aquecido, quando necessário). Em outras palavras, são necessárias condições extremas que precisam variar entre uma etapa das reações e outra, ou seja, mudanças bruscas que precisam acontecer muito rápido para que as moléculas não se percam no ambiente antes de a reação se realizar. A alternativa opcional para contornar esses problemas – a de uma molécula mais simples que a de RNA que a teria originado – enfrenta desafios ainda maiores. Por exemplo: unidades da molécula são combinadas ao acaso e não da maneira correta, são formados híbridos curtos da molécula desejada, formam-se cadeias terminadas ao invés de uma mais longa mantendo as funções de replicação e catalíticas.

A hipótese de uma origem da vida por meio de um metabolismo primitivo também enfrenta vários problemas. Um trabalho publicado em 26 de janeiro de 2010, na PNAS, conclui o seguinte a respeito de cenários de metabolismo primeiro na origem da vida: “A replicação da informação de compostos é tão imprecisa que os mais ajustados genomas de compostos não se mantêm pela seleção e, portanto, falta-lhes capacidade de evolução. [...] Concluímos que essa limitação fundamental de conjuntos de replicadores adverte contra teorias de origem da vida de metabolismo primeiro.”[9]

Devido às dificuldades encontradas para demonstrar praticamente a viabilidade desses modelos, pesquisadores buscaram um modelo alternativo. Esse novo modelo tenta produzir simultaneamente precursores dos três tipos de moléculas orgânicas essenciais na formação de uma célula: ribonucleotídeos (que compõem RNA), precursores de aminoácidos (que compõem as proteínas) e lipídios (componentes importantes da membrana celular). Os pesquisadores Sutherland e colaboradores publicaram seu trabalho na Nature Chemistry de 16 de março de 2015.[10]

Eles procuraram estabelecer uma rede de reações globais se desenvolvendo ao longo do tempo em correntes e poças separadas. Seriam formados ribonucleotídeos, precursores de aminoácidos e lipídios derivados de homologação redutora de cianeto de hidrogênio e alguns de seus derivados. Os passos fundamentais nas reações foram impulsionados por luz ultravioleta utilizando sulfeto de hidrogênio como redutor e podendo ser acelerados por Cu (I) e Cu (II).

Vários dos desafios que esse modelo enfrenta são tão monumentais quanto os dos modelos do mundo de RNA e metabolismo primeiro. Só para citar alguns: as diferentes etapas da rede de reações precisariam de um terreno inclinado para que pudessem ir ocorrendo em poças separadas, pois são diferentes as condições de que cada tipo de molécula precisa para se formar. Contudo, não seria suficiente uma poça para cada um dos três tipos, até porque existem etapas compartilhadas entre os tipos diferentes de moléculas a serem produzidos. Em alguns casos, seria necessário que diferentes etapas para a formação de cada um dos três tipos se realizassem em poças separadas também. Por exemplo, uma determinada etapa precisa de pH neutro, enquanto a etapa seguinte precisa de um pH alcalino. Outro problema: certa etapa precisa de radiação ultravioleta (UV), a etapa seguinte precisa se realizar no escuro e a próxima precisa de luz ultravioleta novamente. Esse tipo de problema é complicado de resolver, mesmo com diferentes poças se formando ao longo de um terreno inclinado. Cada etapa precisa ocorrer no momento certo com as condições certas e dependendo de fenômenos tais como chuva, UV e outros ocorrerem no momento certo. Isso tudo não apenas uma, mas repetidas vezes para que os componentes certos possam ser produzidos a taxas razoáveis e não serem perdidos no ambiente. As coincidências precisariam se repetir favoravelmente incontáveis vezes para que a rede de reações se estabelecesse.

Contudo, esses são apenas pequenos problemas perto de outros ainda maiores. Alguns exemplos: formação de isômeros (moléculas que têm os mesmos átomos na mesma quantidade, mas arranjados de forma diferente), destruição dos compostos formados pela luz ultravioleta, a necessidade de impacto de meteoritos ou atividade geotérmica periodicamente para formação de compostos necessários para o ciclo de reações, evaporação da água ocorrendo em uma etapa, chuva ocorrendo na próxima etapa no momento certo e na quantidade adequada, irradiação UV, seguida de reação no escuro, seguida de reação UV, chuvas ocorrendo no fim das etapas corretas para escoar os produtos pelo terreno, compostos convergindo em poças corretas, etc. Note-se que essas diferentes condições e coincidências precisariam ficar se repetindo vez após vez sempre nos momentos certos. Não pode chover sempre que precisar ocorrer evaporação, não pode ficar seco por muito tempo sem chover, não pode estar escuro quando se precisa de UV, mas também não pode haver UV por muito tempo. Em laboratório, sob condições controladas, isso é possível, mas não na natureza. Mesmo assim, algumas coisas no laboratório não correram tão bem, pois um dos aceleradores das reações, o Cu (II), só era obtido transitoriamente.

Quando Oparin ou Darwin imaginaram que poderia ocorrer uma evolução química das moléculas para a formação do primeiro ser vivo, ainda não se sabia que as moléculas orgânicas da vida são nanomáquinas e que a célula é uma imensa fábrica com linhas de montagem que funcionam sob condições muito precisas. Os pesquisadores, aparentemente, perceberam que essas nanomáquinas são muito interdependentes para funcionar separadamente e tentaram simular seu aparecimento simultâneo. O problema que eles enfrentam é maior do que alguém esperar que em uma praia com bastante areia, ventos, montanhas e minerais nas proximidades, dado tempo suficiente, se forme um computador com sistema operacional funcionando.

Outra questão sobre a origem dos seres vivos tem a ver com a crença generalizada de que todas as espécies evoluíram ao longo de milhões de anos. Darwin propôs que toda a diversidade de criaturas que encontramos hoje evoluiu por meio da seleção natural, ou seja, que pequenas modificações nos organismos que lhes conferissem alguma vantagem em termos de sobrevivência seriam mantidas e passadas para os descendentes. A Teoria Sintética da Evolução, ou Neodarwinismo, incluiu os conhecimentos de genética na teoria de Darwin. Assim, até há pouco se acreditava que a diversidade encontrada nas espécies ocorria lentamente ao longo de milhões de anos, pois um órgão bem desenvolvido, como uma asa, por exemplo, precisaria de milhares de pequenas modificações ao acaso até se tornar o que é hoje. Contudo, recentemente, diversos estudos têm trazido à luz evidências de que modificações adaptativas podem ocorrer muito rapidamente nos organismos, ativadas por mecanismos epigenéticos desencadeados por modificações no ambiente. Um exemplo são os estudos do casal Peter e Rosemary Grant acerca dos tentilhões na Ilha Dafne Maior (uma das ilhas de Galápagos) por 40 anos. Esses tentilhões foram estudados por Darwin e se acreditava que as diferenças entre eles evoluíram ao longo de milhões de anos. O casal Grant observou períodos de seca e de chuva nessa ilha concomitantemente com modificações nos bicos de tentilhões de acordo com a disponibilidade de alimentos depois dos períodos de seca ou chuva. Essas modificações ocorreram em intervalos de tempo tão curtos quanto dois anos.[11]

Ao que parece, nem sempre a seleção natural é o mecanismo primário de adaptação dos organismos.


(Graça Lütz é bióloga e bioquímica)

Referências: 
[2] DYSON, F. Origins of life. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1999/2000.
[3] TO THE UNIVERSE, W. The miller urey experiment. http://www.windows2universe.org/earth/Life/millerurey.html
[4] ZAHNLE, K., SCHAEFER, L., FEGLEY, B. Earth’s earliest atmospheres. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2944365/ 2 10 2010.
[5] The discovery of ribozymes. http://exploringorigins.org/ribozymes.html
[6] SCOTT, W. G., KLUG, A. Ribozymes: structure and mechanism in rna catalysis. https://ai2-s2-pdfs.s3.amazonaws.com/6853/3c931ec41d18d51b93327ad9ce02dee250e0.pdf 6 1996.
[7] ROBERTSON, M. P., JOYCE, G. F. The origins of the rna world. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3331698/ 5 2012.
[8] SHAPIRO, R. A simpler origin for life. https://www.scientificamerican.com/article/a-simpler-origin-for-life/ 12 2 2007.
[9] VASAS, V., SZATHMáRY, E., SANTOS, M. Lack of evolvability in self-sustaining autocatalytic networks constraints metabolism-first scenarios for the origin of life. http://www.pnas.org/content/107/4/1470.full 26 1 2010.
[10] PATEL, B., PERCIVALLE, C., RITSON, D., DUFFY, C., SUTHERLAND, J. Common origins of rna, protein and lipid precursors in a cyanosulfidic protometabolism. Nature Chemistry, v. 7, p. 301–307, 3 2015.
[11] SKINNER, M. K., GURERRERO-BOSAGNA, C., HAQUE, M. M., NILSSON, E. E., KOOP,

J. A., KNUTIE, S. A., CLAYTON, D. H. Epigenetics and the evolution of darwin’s finches. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4159007/ 6 8 2014.