sábado, maio 03, 2008

O Cristo de Crossan

Aproveitando o ensejo das comemorações católicas da Semana Santa, que relembraram a morte e ressurreição de Jesus, a revista Galileu dedicou sua capa à pergunta intrigante: “Por que Cristo teve que morrer?”,[1] e chamou atenção ao livro A Última Semana, do historiador norte-americano e ex-monge John Dominic Crossan.[2] Segundo ele, a Semana Santa “foi um cortejo antiimperialista, mas pacífico”. E ressalta: “Creio que a morte de Jesus nada teve a ver com expiação de pecados.” Diante disso, nossa pergunta é: Crossan está certo?

Segundo Crossan e Borg,[3] na semana da crucifixão, Jesus foi a Jerusalém para desafiar pacificamente a dominação romana na Judéia. Em entrevista ao programa de TV Fantástico, Crossan resumiu o ponto de vista da obra[4] dizendo que, ao entrar em Jerusalém montando um burro, Jesus compôs uma caricatura de Pilatos. O líder romano, em um cavalo; Cristo, em um burro. Segundo o autor, não foi Jesus quem entrou triunfalmente, mas os romanos, e Cristo queria fazer uma “piada” sobre eles.

Na seqüência de Seu “protesto pacifista”, Jesus teria realizado um ato simbólico ao confeccionar uma espécie de chicote para expulsar os vendedores do Templo. Na entrevista, o autor compara o gesto às atuais manifestações pacifistas, que se utilizam de símbolos. A partir da “rebeldia” de Cristo, tanto autoridades romanas quanto judaicas procuraram aprisioná-Lo, mas não o fizeram logo, por temerem uma multidão simpática a Ele. Judas, então, surgiu como o elemento que possibilitou aos romanos prender Jesus sem que o povo percebesse, defende o livro.

** REFLEXÃO

Avaliemos separadamente a interpretação dos dois eventos: a entrada em Jerusalém e a expulsão dos vendedores do Templo. Não há dúvida de que a entrada em Jerusalém foi uma atitude desafiadora. Crossan e Borg não foram originais em dizer isso. Já havia uma ordem de que Jesus fosse preso, quando encontrado (João 11:48; 57), porém, em “audácia”,[5] Ele foi a Jerusalém de forma pública. Mas a quem desafiava? Aos romanos? Segundo os Evangelhos, não (inclusive no evangelho de Marcos, em que o argumento de Crossan se baseia). Na verdade, a entrada desafiou os líderes e sacerdotes judeus.

Durante os três anos anteriores, Jesus evitou a divulgação de Sua identidade messiânica e milagres certamente para evitar uma oposição exagerada dos líderes judeus (Mateus 16:20; Marcos 5:43; 7:36; 8:30). Porém, ao entrar publicamente em Jerusalém, Cristo assumiu uma atitude oposta, visando chamar a atenção do povo. Aquele ato O levaria à morte; Ele sabia disso e, mesmo assim, prosseguiu. Dias antes, chegou a advertir Seus discípulos de que iria para Jerusalém, seria preso, humilhado e morto pelos líderes judaicos (Mateus 26:1; Marcos 10:33 e 34).

Cristo desafiava os líderes religiosos não somente por chegar publicamente, mas por cavalgar um jumentinho, numa clara referência e intenção de cumprir a profecia de Zacarias 9:9: “Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha de Jerusalém: eis que vem o teu Rei, justo e salvador, humilde, montado em jumento, num jumentinho, cria de jumenta.” O ato de Jesus despia-se de qualquer significado político. Vir sobre um jumentinho, em primeiro lugar, caracterizava o cumprimento de uma profecia feita quatro séculos antes. O louvor da multidão a Cristo como “Filho de Davi”, outra forma de chamá-Lo de Messias, alarmou seriamente as autoridades judias, que viram Sua liderança ameaçada (Mateus 21:15; João 12:19).

Vale lembrar que a Bíblia não enfatiza a humildade de Jesus pelo fato de cavalgar um jumento, pois o animal era meio de transporte comum desde o tempo dos patriarcas. Abraão viajava em jumentos (Gênesis 22:3, 5), assim como Moisés foi ao Egito (Êxodo 4:20); figuras proeminentes, profetas e membros da nobreza israelita viajaram normalmente em jumentos (Juízes 10:4; 2 Samuel 17:23). A humildade da cena não estava tanto no jumento, mas em Jesus, que não ostentava qualquer pompa real. Porém, a entrada foi “triunfal” por caracterizar a Jesus como o Messias, porém humilde, diferente das expectativas da época. Segundo Zacarias, o Salvador viria daquela forma.

Nos evangelhos, incluindo-se Marcos, não há qualquer menção de que a entrada tenha ofendido os romanos. Se assim fosse, certamente Jesus teria sido preso não na sexta-feira, mas cinco dias antes, naquele domingo. Eram as autoridades judaicas que temiam a oposição do povo, não os romanos (a Fortaleza Antônia, com milhares de legionários em prontidão ao lado do Templo, era um bom argumento para isso).

Ademais, quando Jesus foi a julgamento, Pilatos, Herodes, nem mesmo os acusadores de Cristo mencionaram a entrada pública como fator de condenação. Se a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém fosse uma “piada”, seria “sem graça”, porque ninguém a “entendeu” (na forma proposta por Crossan), nem mesmo os romanos. Logo, a interpretação de A Última Semana é questionável e sem fundamentação.

** VENDEDORES FUGINDO

Se a entrada triunfal de Cristo não possuía qualquer intenção de atacar a dominação romana, muito menos a expulsão dos vendedores do Templo. Segundo os Evangelhos, havia dois fortes motivos. Em primeiro lugar, a expulsão do Templo ocorreu por causa da importância do edifício e dos sacrifícios que aconteciam nele. A gritaria dos cambistas e o comércio corrupto de animais para o serviço sacrifical[6] ofendiam a santidade daquele lugar que deveria ser chamado de “casa de oração para todos os povos” (Isaías 55:6 e 7).

A segunda razão para Jesus agir daquela maneira estava em quem Ele declarou ser – “Antes que Abraão existisse, Eu sou” (João 8:58). Para o Cristo messiânico e pré-existente da Bíblia, o comércio, a corrupção, os animais e a gritaria insultavam não apenas os recintos sagrados, mas o próprio Deus. Logo, Jesus não quis destronar os líderes judaicos, porém, os afrontou mais uma vez, por protestar contra a exploração e irreverência no Templo permitidas por eles e a eles favorável.

Crossan também afirmou que a intenção de utilizar um chicote constituía-se um ato simbólico. Porém, aquela era a segunda expulsão do Templo, e o chicote só foi mencionado na primeira.[7] Por outro lado, atos simbólicos e protestos pacifistas normalmente não expulsam pessoas – ainda mais no Templo, onde soldados particulares montavam guarda. No entanto, aquele “protesto pacifista” expulsou uma multidão de vendedores. Nem mesmo um chicote seria capaz de convencer dezenas de vendedores a deixar suas bancas serem viradas por Jesus. O argumento para a expulsão deve ter sido algo maior do que um simples chicote.

Percebe-se que as idéias de Crossan, embora exóticas, carecem de consistência. Não são amparadas nos Evangelhos. Não possuem apoio suficiente nas literaturas judaica e romana da época. Mas, por serem diferentes, ganharam espaço na mídia, que oferece destaque para qualquer versão excêntrica ou nova de Cristo. Nas bibliotecas, A Última Semana deveria ser colocado junto a livros de ficção ou de romance. É fruto da imaginação de seus autores e se baseia em fatos que a História não confirma. Como em outros casos, foi escrita por mais pessoas que tentam fazer fama e dinheiro às custas de Jesus Cristo. Mas a fama é passageira.

(Diogo Cavalcanti é teólogo, jornalista e editor associado na Casa Publicadora Brasileira)

Notas:

1. É válido destacar o mérito da Galileu em abordar esse tema. A reportagem se propôs a expor as principais tentativas de explicação da morte de Cristo ao longo da História, aproveitando a polêmica de Crossan. Outro ponto louvável (e mais importante) da matéria foi não ter sido dogmática sobre o assunto, não procurando impor ao leitor uma interpretação como sendo final, nem mesmo a de Dominic Crossan.

2. Na reportagem, o sobrenome “Dominick” foi grafado incorretamente. Há uma breve biografia de John Dominic Crossan disponível na Wikipedia

3. Na reportagem, não se mencionou que A Última Semana foi escrito em co-autoria com Marcus J. Borg.

4. Confira a reportagem do Fantástico em vídeo.

5. Morrris, Leon. Lucas – Introdução e Comentário (São Paulo: Mundo Cristão e Vida Nova), 1983, 1ª ed., p. 260.

6. “O que disse e fez nessa momentosa ocasião foi uma cortante denúncia do modo como os adoradores vindos de fora estavam sendo explorados pelas excessivas taxas cambiais e pelo preço exorbitante dos animais necessários para o sacrifício. Mas também estava, com efeito, pondo em julgamento o sistema sacrificial como então era praticado. Tinha sido tão comercializado, e passara a ser considerado como um fim em si mesmo...” (Tasker, R.V.G. Mateus – Introdução e Comentário [São Paulo: Mundo Cristão e Vida Nova], 1985, 1ª ed., p. 157).

7. Jesus expulsou vendedores e cambistas do Templo em duas ocasiões; a primeira, relatada em João 2:15, e a segunda, em Mateus 21:12. Porém, apenas o evangelho de João referencia o uso do “chicote”.