domingo, maio 04, 2008

Superinteressante mata a razão

Nietzsche já havia tentado e não deu certo. Agora querem que Darwin seja o assassino de Deus. Mas Darwin está morto faz tempo, e sua teoria já passou por algumas reformas e segue longe de ser unanimidade entre os cientistas. Embora poucos darwinistas admitam isso, como fez John Maynard Smith, ao descrever a controvérsia entre dois expoentes evolucionistas (Dawkins e Gould): “Por causa da excelência de seus ensaios, [Gould] tornou-se conhecido entre não-biólogos como o mais destacado teórico da evolução. Em contraste, os biólogos evolucionistas com quem discuti seu trabalho tendem a vê-lo como um homem cujas idéias são tão confusas que quase não vale a pena ocupar-se delas, mas alguém que não se deve criticar em público por ao menos estar do nosso lado contra os criacionistas” (New York Review of Books, novembro de 1995).

“Estar do nosso lado contra os criacionistas.” Isso é linguagem de guerra! E parece que a Caras do mundo da divulgação científica, a Superinteressante, vestiu de vez o uniforme de combate – mas a guerra dela parece ser apenas contra a religião teísta bíblica (haja vista que na mesma edição de junho, que traz como chamada principal de capa “Darwin, o homem que matou Deus”, à página 102, tece comentários elogiosos a respeito de um livro sobre o monge budista Dalai Lama. Aliás, elogios ao Budismo nas páginas de Super não são de hoje...).

Contradições à parte, acho curioso o fato de alguns darwinistas dizerem que sua teoria científica nada tem que ver com a origem do Universo ou mesmo da vida. Não é o que a Caras, digo, Super, diz. Logo no subtítulo da matéria “Evolução da Evolução”, afirma que “uma idéia simples resolveu o mais complexo dos mistérios: o sentido da vida. Agora cientistas usam Darwin para desvendar mistérios maiores: da mente à origem do Universo”. É impressionante como a “Supercaras” resolve as coisas assim, de modo tão simples e descarado. Papel aceita tudo. Até a morte de Deus.

Gente com a cabeça no lugar e não tão dada a sensasionalismos e malabarismos verbais pensa diferente. É o caso de José P. S. Lemos e Jaime F. Villas da Rocha, do Departamento de Astrofísica do Observatório Nacional (CNPq), para quem “a vida ainda não foi compreendida por nenhuma teoria científica. Mesmo seres vivos mais simples, como as bactérias, possuem alto grau de complexidade e organização”.

Pois é. Só para lembrar (e comparar), Richard Dawkins, no seu O Relojoeiro Cego, diz que a mensagem encontrada apenas no núcleo de uma pequena ameba é maior do que os 30 volumes combinados da Enciclopédia Britânica. E a ameba inteira tem tanta informação em seu DNA quanto mil conjuntos completos da mesma enciclopédia. De onde veio tanta informação? A Super "resolve" num passe de mágica: “A teoria da evolução deixou claro que todas as formas de vida que já pisaram na Terra são filhas da mesma tataravó”, que para a revista é “uma simples molécula”. Mas deixa de dizer que a probabilidade de se obter ao acaso uma molécula de proteína (que tem cerca de cem aminoácidos) seria semelhante a um homem de olhos vendados encontrar um grão de areia específico na areia do deserto do Saara por três vezes consecutivas. E para obter vida, seriam necessárias pelo menos 200 dessas “simples” moléculas juntas!

Mas a credulidade de Super, numa atitude capaz de corar os darwinistas mais pés no chão, vai mais longe: “A teoria de Darwin pode ter desvendado o segredo dos buracos negros. E mostrado não só que deve haver vida fora da Terra mas em universos paralelos também.” Uau! Que teoria, hein! Acho que nem Darwin conhecia a tremenda versatilidade de suas idéias.

O discurso mágico e reducionista da Super perpassa todo o texto e é especialmente visto nos infográficos (que, como sempre, roubam a cena. Note isto: “Há uns 4 bilhões de anos... moléculas de carbono aprenderam a fazer cópias de si mesmas. Cerca de 100 milhões de anos depois surgiam moléculas com uma armadura de proteína... Vida simples [como se isso existisse]... É a explosão de vida [e ninguém toca no assunto da ausência de fósseis ancestrais dos pluricelulares que surgem explosivamente no Cambriano]... a natureza começa a fazer experiências [olha a entidade inteligente natureza aí...].” E por aí vai. Super afirma, mas não explica. Haja fé! Tentam matar Deus, mas multiplicam a necessidade de fé.

Neste parágrafo, a linguagem a la Caras fica mais explícita e não ajuda o leitor (apenas tenta empurrar-lhe goela abaixo as crenças dos autores da matéria e dos editores: “Planeta Terra, 4 bilhões de anos atrás. Um mundo adolescente, infestado por vulcões, meteoritos e tempestades violentas. No mar desse inferno, moléculas de carbono encontraram um porto seguro. E começaram a se juntar, formando cadeias cada vez mais longas e complexas. Uma hora, como quem não quer nada, apareceu um estranho nesse ninho. Um acidente da natureza. Era uma molécula capaz de se replicar, de sugar matéria orgânica do ambiente e usar como matéria-prima para produzir cópias dela mesma. Motivo? Nenhum: ela fazia réplicas por fazer e pronto. Vai entender... [desculpe, não entendo mesmo]. Essa aparição foi algo tão improvável quanto se esta revista (que também é feita de cadeias de carbono) comesse seus dedos agora e, a partir dos átomos da sua carne, pele e ossos, construísse uma cópia dela mesma. Improvável, mas foi exatamente o que aconteceu naquele dia. E não havia nada ali para conter o apetite da monstruosa molécula.”

Sempre tenho que ouvir e ler céticos dizendo e escrevendo: “Cadê as provas empíricas da existência de seu Deus?” Como se o sobrenatural pudesse ser provado empiricamente... Mas o darwinismo (lamento leitores darwinistas, mas a Super associa darwinismo à origem da vida) se propõe científico. Então, pergunto: Cadê as evidências empíricas dessa ladainha toda?

Curiosamente, a matéria que se propõe matar Deus (mas parece mais assassinar a razão), utiliza palavreado próprio do argumento do design inteligente para demonstrar o contrário: que as complexidades surgiram e foram crescendo espontaneamente. Note: “[Os multicelulares] ficaram cada vez mais complexos: suas células passaram a assumir funções distintas para operar sua máquina de sobrevivência.” Máquina?! Ah, ta... Máquinas surgem por aí...

Bem, que esse tipo de texto naturalista tente desconstruir a fé (como a Super vem fazendo com a fé bíblica - e praticamente só a bíblica, repito - já há alguns anos), isso é normal. Mas, usando o argumento da sobrevivência, a matéria acaba por desconstruir outros valores que dão sentido à vida. Veja isto: “Aquele objetivo irracional continua intacto: tudo o que os genes querem é fazer cópias de si mesmos. Foi para isso que eles criaram nosso corpo e nossa mente. E agora nos comandam lá de dentro, por controle remoto, para que trabalhemos em nome de sua preservação. A razão da existência? Lutar para que os genes façam cópias deles mesmos do melhor jeito possível.”

Você percebe as conseqüências desse pensamento? É o vale-tudo em ação. É o tipo de idéia que torna os objetivos de Hitler não-reprováveis, afinal, é a lei do “gene egoísta” em ação. Leia este texto extraído do Mein Kampf: “Se a natureza não deseja que os indivíduos mais fracos se casem com os mais fortes, ela deseja muito menos que uma raça superior se mescle com uma inferior porque, nesses casos, todos os seus esforços para estabelecer um estágio de existência evolucionária superior, realizados durante centenas de milhares de anos, poderiam ter-se mostrado totalmente inúteis. Mas tal preservação anda ao lado da inexorável lei de que é o mais forte e o melhor que deve triunfar e que eles têm o direito de perdurar. Quem deseja viver precisa lutar. Aquele que não deseja lutar neste mundo, onde a luta permanente é a lei da vida, não tem o direito de existir.”

Se Super está certa, o ditador nazista também estava certo ou, no mínimo, foi remotamente controlado pelos genes...

Tem mais: “Do ponto de vista da psicologia evolucionista”, prossegue a matéria, “não faz sentido dizer que a cultura molda o nosso comportamento. Ela afirma que sua mente foi forjada ao longo de toda a evolução. E que você vem ao mundo com todos os ‘softwares’ instalados no ‘hardware’ da sua cabeça. Seus desejos, sua personalidade e tudo o mais dependem desses programas mentais. ... Nossa mente não passa de uma ferramenta da Idade da Pedra tentando se virar num mundo que não existe mais.”

Depois a Superinteressante gasta vários parágrafos para tentar provar que tudo o que conta na vida é o sexo e a violência, e deixa a gente pensando se a comunidade carcerária é realmente culpada pelos crimes de que é acusada.

O sexo é reduzido a uma experiência de passar adiante genes por parte de dois “funcionários especializados”. “Um teria a função de tentar pôr seus genes em qualquer máquina de sobrevivência que cruzasse seu caminho [e viva o maníaco do parque!]. O outro selecionaria entre esses primeiros quais têm os melhores genes para compartilhar e cuidaria da cria que os dois tivessem juntos [aqui prefiro não dar nomes às 'vacas']. Em outras palavras, o mundo se dividia entre machos e fêmeas [e no dia que alguém me explicar a origem do sexo da maneira darwiniana, eu tiro o chapéu].”

Para os puladores de cerca compulsivos, um novo argumento: “O desejo de variedade sexual nos homens é insaciável. Quanto maior for o número de mulheres com quem um homem tiver relações, mas filhos ele terá (pelo menos é o que ‘pensam’ os genes).” Já pensou o cara chegando em casa de madrugada, mancha de batom no colarinho, a mulher o encara com olhar fulminante e ele solta com o maior cinismo: “Querida, foram os genes. Eu sou apenas a máquina de sobrevivência deles, que me usam para se reproduzir [palavras da Super]” Depois a Bíblia é que é machista...

Mas a coisa piora: “Às vezes a violência é, sim, o melhor jeito de conseguir alguma coisa. Então não há mistério para a psicologia evolucionista: como a violência funcionou ao longo da história, está impregnada em nossos genes.” Tô dizendo: não é culpa do Fernadinho Beira-Mar...

Amor fraterno, então, é outra piada. “O que o neodarwinismo diz é: você não ‘ama’ seus filhos e irmãos. São seus genes que vêem neles maneiras de se perpetuar.”

Quando cheguei a essa altura do texto, fiquei frustrado de ter gasto R$ 9,95 com essa revista (já que não a assino há muito tempo) e ter jogado fora meu tempo precioso (sem falar que eu já podia estar dormindo, se não tivesse que escrever este comentário, a pedido de alguns leitores).

Super quer que Darwin mate Deus, mas quem mata o bom senso, a razão e a nossa paciência é ela.

Michelson Borges

P.S.: Pelo menos há algo de bom nessa matéria da Superinteressante: ela deixa claro que Darwinismo é sinônimo de ateísmo e materialismo puro, deixando contrariados aqueles que advogam o evolucionismo teísta, como Francis Collins.