terça-feira, agosto 16, 2016

Que história é essa de Terra plana? (parte 1)

200 refutações à ideia mirabolante
A ideia de que a Terra seria plana tem ganhado mais e mais adeptos nos últimos anos. Ao contrário do que muitos imaginam, a argumentação em favor dessa visão não é de todo absurda e pode até ser bem convincente para quem não conhece os detalhes técnicos do que é apresentado em defesa da tese. Hoje em dia, mais e mais informações falsas são divulgadas na internet. Quando essas falsidades são suficientemente semelhantes a coisas reais, conseguem enganar a muitos, inclusive pessoas inteligentes que não conseguem arranjar tempo para examinar todos os detalhes. Por isso é importante ir além do “parece razoável” e pesquisar fontes e fatos. No caso da Terra plana, obter conhecimentos básicos de Física, especialmente sobre campos gravitacionais, é essencial, mesmo que esses conhecimentos sejam apenas qualitativos.

Nossa intenção é reunir aqui no blog Criacionismo argumentos em favor da Terra plana e conferir a validade de cada um deles, facilitando a vida do leitor que investiga esse assunto. Existe um vídeo no YouTube que apresenta 200 argumentos nesse sentido. Na verdade, não são 200, pois os mesmos argumentos são usados mais de uma vez em casos diferentes e demonstrando a mesma falta de conhecimentos básicos da física do cotidiano. Neste artigo, escrito pelo físico Eduardo Lütz, examinaremos os primeiros dez argumentos. Aguarde os próximos posts.

1. Horizonte sempre perfeitamente reto na horizontal 360 graus ao redor do observador independentemente da altitude. Todas as imagens amadoras de balões, drones, aviões e foguetes mostram isso até mais de 200 milhas de altura.

Falso: as câmeras normalmente usadas nesses dispositivos amadores geralmente possuem um efeito “olho de peixe”, que distorce a imagem de tal maneira que não é possível saber se a superfície da Terra é côncava, plana ou convexa. Faça você mesmo o seguinte teste na próxima vez que andar de avião. Segure uma cordinha, um fio de linha ou algo semelhante contra a janela. Deixe o fio bem esticado e alinhe as extremidades ao horizonte, em ambos os extremos da janela. Observe o que você vê no centro: o horizonte um pouquinho acima do fio. Isso mostra que a superfície da Terra é convexa, não plana. Como a Terra é muito grande, a altitude do avião é pequena e a janela é também pequena, esse efeito é igualmente pequeno, porém observável.

2. Você nunca tem que olhar para baixo para ver o horizonte. Está sempre ao nível dos olhos do observador.

Falso: mesmo se a Terra fosse plana, isso não seria verdade, a menos que se tratasse de um plano infinito. Se a Terra tivesse uma superfície plana, mas finita, a uma altitude suficiente notaríamos que o horizonte está mais abaixo. Em altitudes relativamente baixas (poucos km) em relação ao tamanho da Terra, seria praticamente impossível notar isso sem instrumentos precisos.

3. A física natural da água mantém o nível de sua superfície. Se a Terra fosse uma bola girando, inclinando-se e cambaleando no espaço vazio, então superfícies de água realmente planas ao longo de grandes extensões não existiriam. Como a Terra é plana [sic], então as superfícies planas de água fazem sentido.

Falso: esse argumento não leva em conta os efeitos inerciais, nem o formato do campo gravitacional, nem a velocidade dos movimentos comparada com o tempo de resposta da água. A força gravitacional que atua sobre qualquer objeto aponta no sentido em que uma grandeza chamada de potencial gravitacional é menor (levando-se em conta o sinal, inclusive). O princípio por trás desse nivelamento da água é que, para que o líquido esteja em equilíbrio, todos os pontos da superfície precisam estar com um mesmo potencial gravitacional. Quando não há esse equilíbrio, a água escoa.

Se a Terra fosse um disco plano, o formato do potencial gravitacional faria com que o oceano parecesse uma grande bolha. Nesse caso também não teríamos superfícies planas de água. Note-se que, em extensões pequenas comparadas ao tamanho da Terra, essas superfícies parecem planas, mas a rigor são todas curvas, tanto na hipótese da Terra plana quanto no cenário da Terra esférica. Outro ponto importante é que a Terra se move por inércia, o que não causa os efeitos de aceleração que o senso comum esperaria. Em outras palavras, o movimento da Terra afeta o movimento da água de forma bem mais discreta, via efeitos de maré e similares, criando correntes marítimas, por exemplo. E existe algum movimento da água em função da posição da combinação das posições do Sol e da Lua em relação à Terra de tal maneira que tais movimentos da água não fariam sentido se a Terra fosse plana e estática.

4. Rios correm para o mar encontrando o caminho mais fácil. Se a Terra fosse redonda, o Mississipi, por exemplo, precisaria subir umas 11 milhas antes de descer até o oceano.

Falso: expressões como “subir” ou “descer” só possuem sentido em relação ao potencial gravitacional. Subir significa ir para um lugar com maior potencial gravitacional. Descer é o oposto. A água percorre seu caminho buscando pontos em que o potencial gravitacional é menor, pois é para lá que a força da gravidade a impulsiona. No caso da Terra esférica, o campo gravitacional é esférico também, de maneira que não existe esse suposto fenômeno de a água subir em relação ao campo gravitacional ao longo do leito de um rio. Por outro lado, se a Terra fosse plana, o formato do campo gravitacional seria bem diferente, de forma que o solo só pareceria plano no centro. À medida que nos afastássemos do centro, sentiríamos como se estivéssemos subindo uma cadeia de montanhas que cercam um vale. Todo o resto da Terra pareceria inclinado. Cada ponto da Terra teria declividade tanto maior quanto mais longe do centro estivesse. Todos os rios iriam para esse centro. A rigor, a Terra não é perfeitamente esférica nem o é seu campo gravitacional, mas para uma discussão geral, essa é uma boa aproximação.

5. Um trecho do Nilo flui por 1.000 mi com uma descida de apenas uns 30 cm. Se a Terra fosse esférica, partes desse trecho seriam de subida e parte seriam de descida.

Falso: é uma repetição do argumento anterior e sofre do mesmo problema.

6. Curvatura da água: 8 polegadas por milha vezes o quadrado da distância. Um canal parado de 6 milhas deveria ter uma diferença de altura de 6 pés em cada ponto em relação ao centro. Nenhum dos testes feitos indicou curvatura alguma.

Esse argumento não é válido enquanto não forem especificados os detalhes dos testes feitos para detectar a curvatura. A fórmula mencionada está errada, embora exista uma verdadeira para esse fim. Existe uma infinidade de testes inválidos que podem ser feitos. Por exemplo, os testes não podem ser feitos com medidas de altitude, pois estas funcionam em relação ao potencial gravitacional, que acompanha aproximadamente a curvatura da Terra, se a Terra é esférica, e por isso nada indicariam.

Existe ainda o problema de que a distribuição de material nas vizinhanças geológicas do local observado tem alguma influência no formato local do campo gravitacional. Esse efeito tende a ser pequeno, mas pode ser importante, dependendo do tamanho do lago, canal, etc., e da geologia da região. Quando esse efeito é pequeno o suficiente para ser desconsiderado, medidas cuidadosas com laser podem resolver o problema. Precisaríamos de mais dados sobre o local e especialmente sobre detalhes técnicos dos testes que supostamente teriam indicado que a superfície do canal é plana.

7. Engenheiros não precisam levar em conta a curvatura da Terra em seus projetos de pontes, túneis e trilhos de trem.

Argumento falso baseado em verdade distorcida: pontes e trilhos são feitos em partes. Não é necessário levar em conta a curvatura da Terra na ponte como um todo ou ao longo de todo o trajeto de trilhos de trem. Túneis também são escavados aos poucos, mantendo a altitude em relação aos pontos anteriores. Isso nivela o túnel em relação ao potencial gravitacional, aproximadamente esférico. Um exemplo é Mt McDonald Tunnel, com 14.723 m de comprimento e 7,87 m de altura. Se os defensores da Terra plana estivessem certos, esse túnel realmente seria uma linha reta e seria possível ver uma extremidade a partir da outra. Porém, posicionando-se em uma entrada do túnel não é possível ver a outra extremidade. Quando um trem se aproxima, a certa altura ele parece subir saindo do solo, apesar de o túnel ser todo horizontal em relação ao campo gravitacional. Isso mostra na prática a curvatura da Terra.

8. Canal de Suez, com 160 km, foi cavado horizontalmente sem levar em conta a curvatura da Terra, e consegue conectar oceanos sendo plano.

Argumento falso: é o mesmo caso dos itens 4 e 7. Não é preciso levar em conta a curvatura da Terra ao cavar canais, construir pontes, túneis e trilhos. Basta manter a horizontal. O resultado final acompanhará naturalmente a curvatura da Terra em função do formato do potencial gravitacional.

9. O engenheiro W. Winkler afirma que jamais precisou levar em conta a curvatura da Terra.

Caso particular do item 7. Como vimos, não é um argumento válido contra a esfericidade da Terra.

10. London and Northwestern Railway forma uma linha reta de 180 milhas entre Londres e Liverpool. O ponto mais alto dessa linha fica a 240 pés de altura. Se a Terra não fosse plana, o trilho chegaria a 5.400 pés de altura acima de Londres e Liverpool.

Falso: trata-se do mesmo problema do item 7. A altura é medida por instrumentos em relação à superfície equipotencial do campo gravitacional ao nível do mar. As pessoas que usam os instrumentos não precisam saber disso - e geralmente não sabem. Em termos mais fáceis de entender, é como se existisse uma superfície esférica que toca a superfície do mar e todas as alturas são medidas em relação a ela, pois é a gravidade que diz que lado é “para baixo” ou “para cima” e em que regiões diferentes objetos possuem o mesmo potencial, isto é, a mesma altura. Ao viajarmos mantendo sempre a mesma altitude, estamos acompanhando a curvatura do campo gravitacional, que é a mesma da Terra.

[Continua.]