Quando eu era adolescente, foi algo surpreendente (awfull, diria em inglês) estudar nas aulas de História sobre a antiga Grécia. Aprender sobre os filósofos e seu uso inteligente da lógica para responder as prementes questões humanas. Também me recordo de que na Grécia os “patrícios”, ou seja, as pessoas da nobreza grega, reuniam-se nas praças para decidir os gastos públicos e seu uso. Curioso era também o fato de que essas reuniões populares duravam cerca de duas a três horas, toda semana, visando a fazer política (que em grego quer dizer a arte de governar a polis = cidade). Qualquer cidadão podia levantar questões que ele considerasse importantes. Essas questões eram avaliadas e, a partir disso, analisadas as opiniões divergentes e tomadas as decisões recorrentes ali na praça mesmo. Isso era interessante para mim porque, em 1984, ainda estávamos sob o Regime Militar, caracterizado como uma ditadura; e efervesciam nas ruas brasileiras movimentos para a restauração da democracia.
Havia diferenças abismais entre as cidades gregas, sendo o caso mais emblemático o choque cultural Esparta-Atenas. Esparta prezava pela rigidez e disciplina, pelos valores militares; Atenas, pela liberdade e a vida intelectual, valores mais burgueses, diríamos hoje.
A democracia grega foi ameaçada pela desunião das próprias Cidades-Estado gregas; mas a ameaça da Pérsia uniu os gregos, que conseguiram impedir que essa outra potência os dominasse. Tudo isso seria ficção, não fossem os 300 de Esparta que morreram nas Termópilas, impedindo a vitória inimiga. Depois, apesar de conquistados por Alexandre, o Grande, conseguiram manter seu modo democrático de ser. Os romanos os dominaram, mas copiaram-lhes as leis e a partir delas criaram o Direito Romano, que permanece até hoje como base das muitas leis das democracias ocidentais.
Se a guerra e mesmo a dominação estrangeira não destruíram a democracia grega, antes lhe deram novas dimensões, o discurso falacioso “pan-europeu” que subjaz ao pensamento da União Europeia está conseguindo. Esse discurso pan-europeu de união dos povos traz no fundo um laço opressor, mas o sofisma é apresentado de forma tão bela e sedutora que enganaria o mais sofisticado sofista da antiga Grécia.
Pensamento único. Na democracia grega, as grandes questões e grandes temas cívicos eram discutidos na praça pelos cidadãos comuns; nas democracias, isso é discutido nos parlamentos, congressos e senados representativos do povo, tendo a obrigação de refletir os anseios deste. Em democracias mais avançadas como os Estados Unidos, muitas decisões são decididas na câmara de um estado (pressuposto de uma república), ou de um município, e às vezes de um condado (algo tipo “associação de bairro” brasileira), sendo vedada a interferência federal. Contra tudo isso a União Europeia decide os destinos econômicos e sociais dos países membros a partir de decisões dos burocratas que só têm como objetivo impor uma legislação única, atropelando qualquer decisão dos parlamentos dos países membros. Essa imposição é algo tipo o pensamento único comum às ditaduras.
Fim das fronteiras e da autoridade do estado democrático e promoção do racismo. A União Europeia prega a quebra de fronteiras e imigração; ou seja, tira dos países o direito de controlar seu próprio território. Assim, países europeus como a Itália, que têm vínculos com países da África; ou a Alemanha, com vínculos com a Turquia, são forçados a bloquear a imigração de forma discriminatória, por causa do bloco.
Fim de qualquer fiscalização referente à fazenda pública. Quebra também o direito desses países de controlar o comércio dentro do seu território, o que pode ser muito bom para alguns grandes conglomerados comerciais, mas péssimo para as economias mais fracas. As exigências para usar a moeda europeia, o euro, levaram os políticos de vários países membros a maquiar a forma como estão usando a máquina pública. A Pan-Europa está tirando dos países os vários mecanismos de auditorias internas que uma democracia promove. Como os políticos europeus estão prestando contas ao parlamento europeu, não aos seus povos, não dá para imaginar o caos – políticos prestando contas a outros políticos sem nenhuma interferência de uma CGU (Controladoria Geral da União), Polícia Federal ou Ministério Público. Ontem políticos espertalhões da Grécia sumiram com os recursos recebidos da UE; hoje os políticos, por meio do parlamento, submeteram o país à UE contra a imensa maioria da sua população (segundo alguns analistas, mais de 80%); enquanto os soldados gregos de outrora fecharam as Termópilas defendendo a democracia, agora batem na população revoltada que sofre desemprego crônico, sofrerão mais calamidades por causa dos cortes em gastos sociais e registra um aumento de 40% nos casos de suicídios.
Mark Weisbrot, diretor do Centro para Pesquisa Econômica e Política dos Estados Unidos, chega a dizer que, “se nossos dirigentes [os norte-americanos] fossem suficientemente idiotas para praticar cortes claros nas despesas públicas e aumentar os impostos em plena recessão, seriam substituídos. [...] A revista The Economist prevê desde já o fracasso do novo pacote, porque ‘vai apertar demais os gregos, com novos impostos, cortes de gastos e um apressado esquema de privatização. E quase certamente condenará a Grécia à recessão, a conflitos e a um eventual calote da dívida” (Clovis Rossi, Folha de S. Paulo, 2/7/2011, “Como levar um país ao suicídio”).
Contra o papel representativo do estado democrático. Além desses poréns contra a União Europeia, existe o mais básico de todos. Todas as vezes que se votou buscando a aprovação da União Europeia, os votos foram feitos pelos parlamentos dos países, desconsiderando, na maioria das vezes, a opinião popular. Mas, quase sempre, quando alguns países tiveram que abrir o voto em forma de plebiscitos, como ocorreu na Inglaterra e Holanda, a população foi refratária a isso. O caso mais emblemático foi o plebiscito da França, em 2005. Apesar de os políticos de esquerda e direita, os grandes intelectuais e os grandes meios de comunicação do país apoiarem e discursarem a favor da União Europeia, a imensa maioria da população disse um ressonante não. O fiasco popular se repetiu na Irlanda, em 2008, quando os irlandeses recusaram o Tratado de Lisboa.
Por isso, à medida que o tempo passa e a União Europeia coleciona fracassos e fracassos típicos de uma ditadura manipuladora, continua-se a usar um belo discurso de união dos povos para ajudar os políticos dos países-membros a fugir de suas responsabilidades de Estado e não enfrentar os sérios problemas que têm de segurança, empregabilidade, educação, meio-ambiente e, especialmente, gestão da fazenda pública, combate à corrupção e transparência.
É de se perguntar: Não seria a hora de as decisões serem feitas nas praças das cidades de forma transparente, como na antiga polis grega; ou como na congregação dos anciãos da congregação da polis judaica (que infelizmente durou pouco tempo); ou como nas tribos indígenas, em que todos são ouvidos dando-se prioridade aos mais velhos; ou como no princípio republicano norte-americano que delega muitas das decisões vitais não à Federação, mas aos estados, cidades e condados menores?
Não é a hora de os governantes buscarem soluções reais para os desafios de uma boa governança, colocando-se lado a lado com a população, buscando realmente promover o bem-estar público? Não é melhor a autodeterminação dos povos e a promoção de relações amistosas entre eles, sem imposições ditatoriais pesando-lhes sobre a cabeça?
O premiê inglês Winston Churchill, que lutou contra o projeto de governo único de Hitler e Mussolini, disse: “Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.” Trocar a democracia e seus sofisticados (embora imperfeitos) mecanismos de autocrítica e aperfeiçoamento por um governo único, simplório, autoritário, sem fiscalização alguma, sem participação popular, é escolher outra forma de governo em que reina a anarquia, a fraude, o acobertamento da corrupção e irresponsabilidade ocultas sob a capa da união de povos dominados e domesticados numa jaula de opressão.
(Sílvio Motta Costa é professor da rede pública, em Campinas, SP)
Leia também: "Economista exige saída da Alemanha do euro face à 'chantagem da Grécia'" e "Daniel 2: zona do euro enfrenta 'crise de sobrevivência'"