A revista Superinteressante do mês passado uniu na matéria de capa (mais uma vez) dois temas que vendem muito: vida de Jesus e mistério. Como já ocorreu em situações semelhantes nessa publicação, a matéria peca pela parcialidade das fontes: via de regra, a Super recorre a teólogos liberais e a arqueólogos agnósticos e/ou ateus. Na matéria “Os anos ocultos de Jesus”, a fonte principal é John Dominique Crossan, co-fundador do controverso Jesus Seminar. Logo de cara, Crossan, com o tom polêmico de sempre, “informa” aos repórteres da Super que “os autores de Mateus e Lucas [!], que se basearam em Marcos, parecem ter ficado constrangidos com a baixa formação de Jesus. E deram um jeito de melhorar a coisa. Mateus (13:55) diz que o pai de Jesus é que era tekton [“pedreiro”, não necessariamente “carpinteiro”, segundo a matéria]. E Lucas omitiu todo o versículo”. Assim, somos “informados” categoricamente pela revista sobre o “fato” de Jesus ter sido pedreiro e não carpinteiro, conforme a Bíblia. Bem, aí está o tom que perpassa a matéria.
A reportagem de um ângulo só também nos avisa de que Jesus teria sido discípulo de João Batista, muito embora reconheça que “os evangelhos não falam de João como mestre de Jesus”. E precisam? Pra que Bíblia, se temos a Superinteressante para nos dizer o que realmente aconteceu e nos ajudar a fazer a verdadeira interpretação dos ensinos escriturísticos?
Que evidências a revista apresenta para sustentar essa suposta relação discípulo-mestre entre Jesus e João? Ei-las: “Tal como João Batista, Jesus via o mundo dividido entre forças do bem e do mal. E anunciava que Deus logo interviria para acabar com o sofrimento e inaugurar uma era de bondade. Em suma: tanto um como o outro eram o que os pesquisadores chamam de ‘profetas apocalípticos’. E se os Evangelhos jogam tanta luz sobre João Batista (Lucas fala inclusive sobre o nascimento do profeta, assim como faz com Jesus), a possibilidade de que a relação deles tenha sido mais profunda é real.”
Não ocorre aos autores do texto que Jesus e João foram ambos enviados de Deus e que, portanto, tinham mesmo uma mesma mensagem para dar ao mundo? Se João recebe destaque em Lucas, isso se deve ao fato de ter sido ele um profeta de destaque justamente por ter servido de arauto do Messias. E se a pregação deles fosse diferente, aí a Super afirmaria que Jesus contradisse João, como já sugeriu que Paulo teria feito em relação à mensagem de Jesus.
Além de considerar a ressurreição e os milagres de Jesus “mitologia cristã” (embora haja boas evidências para a ressurreição) e logo em seguida afirmar o que inicialmente supôs (ou seja, que Jesus seria filho de pedreiro), Super menciona pelo menos uma diferença entre a mensagem de João e a de Jesus: como João anunciou a vinda do reino e acabou morrendo, Jesus teria ficado tão “abalado” com a não intervenção divina nesse caso que teria mudado sua visão/definição de reino. “João Batista havia imaginado uma intervenção unilateral de Deus. Jesus imaginou uma cooperação bilateral: as pessoas deveriam agir em combinação com Deus para que o novo reino chegasse”, diz Crossan.
Nada a ver! Jesus pregou a respeito do reino da graça e do reino da glória; um presente entre os humanos (no coração deles) e outro que ainda virá. Crossan bagunça tudo! Seria essa compreensão equivocada resultante dos resquícios teológicos de seu tempo de religioso (sevita) católico, misturada a sua visão cética adotada depois? Sei lá. Melhor pensar assim do que imaginar que Crossan estaria agindo com desonestidade intelectual abraçada e aplaudida pela Super. Ler os evangelhos com a mente aberta, sem preconceitos, não dói, pessoal! Ah, e jornalistas também podem ler a Bíblia por si mesmos, sem depender da interpretação desse ou daquele estudioso.
Confesso que, daqui em diante, tive que fazer muito esforço para ler o restante do artigo, afinal, para que perder tempo com ficção travestida de reportagem? Mas fui adiante e confirmei minha suspeita de enviesamento ideológico quando li outra declaração, desta vez do famoso agnóstico Bart D. Ehrman, autor o livro Quem Foi Jesus? Quem Jesus Não Foi?: “Não há nenhum relato, em qualquer fonte antiga, sobre o rei Herodes massacrar crianças em Belém, ou em seus arredores, ou em qualquer outro lugar”, diz ele. Ok. Então é assim que funciona: quando a Bíblia não diz nada, eles inventam; quando diz alguma coisa, não aceitam. Difícil, né?
A matéria ainda lança suspeitas sobre a autoria dos evangelhos, cita outra liberal – Karen Armstrong – para defender a tese de que os autores (mesmo João e Mateus) não teriam sido testemunhas oculares, e termina afirmando que mesmo “os anos considerados como os mais conhecidos da vida de Jesus também são cheios de episódios misteriosos”. [Leia também “Bíblia teria autores falsos?”]
Ah, sim, mais um detalhe: Jesus pode não ter sido exatamente crucificado, mas “arvorificado”. É a teoria (controversa, é verdade, mas e daí) do arqueólogo Joe Zias, da Universidade Hebraica de Jerusalém.
O artigo termina assim (consegui chegar ao último parágrafo): “Só no século 2, quase 100 anos após a morte de Jesus, começam a aparecer relatos sobre ele no centro do Império. Um deles é uma carta do político romano Plínio ao imperador Trajano. Plínio cita pessoas conhecidas como ‘cristãs’ que veneravam ‘Cristo como Deus’. Outra fonte é o historiador romano Tácito, que menciona os ‘cristãos (...), conhecidos assim por causa de Cristo (...), executado pelo procurador Pôncio Pilatos’. Suetônio, que escreveu pouco depois de Tácito, informa sobre uma perseguição de cristãos, ‘gente que havia abraçado uma nova e perniciosa superstição’. Uma ‘superstição’ cuja mensagem convenceria cada vez mais gente, a ponto de, no século 4, o imperador romano em pessoa (Constantino, no caso) converter-se a ela. E o resto é história. Uma história que chega ao seu segundo milênio. Com 2 bilhões de seguidores.”
Ainda bem que historiadores romanos (e um judeu: a revista se esqueceu de Josefo) citam Jesus em seus escritos, caso contrário, Superinteressante diria que Jesus nem sequer teria existido.
Tenho certeza de que, com essa matéria com sabor de teoria da conspiração, a edição de julho da Super deve ter vendido bastante, afinal, sempre há os incautos que dão crédito a esse tipo de conteúdo – especialmente o público preferencial da revista: adolescentes que ainda mal tiveram tempo de formar uma visão crítica da mídia e sequer leram bons livros de apologética cristã que respondem satisfatoriamente as questões levantadas pelo artigo. Com todo o respeito aos adolescentes.
Michelson Borges
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