Em
se tratando de desentendimentos públicos, poucos já puderam se vangloriar de
ter antagonistas que batem tão pesado. De um lado está Richard Dawkins, o
célebre biólogo que fez uma segunda carreira demonstrando seu épico desdém pela
religião. Do outro está o físico teórico Peter Higgs, que em 2012 se tornou
figura corriqueira nas apostas para um futuro Prêmio Nobel, depois que
cientistas do Cern, em Genebra, demonstraram que estava correta sua teoria
sobre como as partículas fundamentais obtêm sua massa. A discussão deles gira
em torno de nada menos que a coexistência entre religião e ciência. Higgs
decidiu-se por coroar seu notável 2012 com mais um estrondo, ao criticar a
abordagem “fundamentalista” adotada por Dawkins no trato com os crentes
religiosos.
“O
que Dawkins faz muitas vezes é concentrar seu ataque nos fundamentalistas. Mas
há muitos crentes que simplesmente não são fundamentalistas”, declarou Higgs em
entrevista a Pablo Jáuregui, do jornal espanhol El Mundo. “O fundamentalismo é outro problema. Quer dizer, Dawkins de certa forma é ele mesmo quase um
fundamentalista, de outra espécie.”
Ele
concordou com algumas das ideias de Dawkins sobre as consequências infelizes
que resultaram de crença religiosa [mal entendida e mal aplicada], mas estava descontente
com a abordagem do biólogo evolucionista ao lidar com os crentes, e se disse de
acordo com aqueles que consideraram tal abordagem “embaraçosa”.
Dawkins,
autor do best-seller Deus, Um Delírio, já foi muitas vezes acusado de
adotar posições fundamentalistas. Em um texto publicado em 2007 no seu site,
intitulado “Como vocês ousam me chamar de fundamentalista?”, Dawkins escreveu: “Não,
por favor, não confundam paixão, que pode mudar de ideia, com fundamentalismo,
que nunca irá [mudar]. Paixão por paixão, um cristão evangélico e eu podemos
estar equiparados. Mas não somos igualmente fundamentalistas. O verdadeiro
cientista, por mais apaixonadamente que possa ‘acreditar’, na evolução, por
exemplo, sabe exatamente o que o faria mudar de ideia: provas! O
fundamentalista sabe que nada o fará mudar de ideia.”
As
críticas não levaram o biólogo a abrandar sua posição sobre a religião. Em uma
recente entrevista à Al Jazira, ele insinuou que ser criado no catolicismo é
pior para uma criança do que sofrer abusos físicos de um padre. Respondendo a
uma pergunta direta do entrevistador Mehdi Hassan, Dawkins relatou a história
de uma mulher dos EUA que lhe escrevera contando o abuso que ela sofrera quando
criança nas mãos de um padre, e a angústia mental por ouvir que uma amiga sua,
uma menina protestante, arderia no inferno. [Dawkins sempre se vale de exemplos
extremos e negativos para julgar toda a religião. Esquece-se convenientemente
que o ateísmo tem telhado de vidro.]
“Ela
me contou que, desses dois abusos, superou o abuso físico, que foi nojento, mas
ela superou. Já o abuso mental de falarem a ela sobre o inferno, esse ela levou
anos para superar”, disse Dawkins. “Dizer a crianças assim que elas realmente
acreditam que as pessoas que pecam vão para o inferno e assam para sempre, que
sua pele cresce de novo quando você a arranca, me parece intuitivamente
inteiramente razoável que isso seja uma forma pior de abuso infantil, que vai
causar mais pesadelos, porque elas realmente acreditam.” [Ah, se Dawkins
soubesse que o inferno não existe...]
Dawkins
não respondeu a um pedido para comentar diretamente a acusação de “fundamentalista”
feita por Higgs. [Ele está acostumado a correr do
debate com “peixes grandes”.]
Na
entrevista ao El Mundo, Higgs
argumentou que, embora não seja um crente, considera que ciência e religião não
são incompatíveis. “O crescimento da nossa compreensão do mundo por meio da
ciência enfraquece parte da motivação que torna as pessoas crentes. Mas isso
não é a mesma coisa que dizer que elas são incompatíveis. Só acho que algumas
das razões tradicionais para a crença, que remontam a milhares de anos, ficam
bastante prejudicadas.”
“Mas
isso não encerra com a coisa toda. Qualquer um que seja um crente convencido,
mas não dogmático, pode continuar tendo a sua crença. Isso significa que eu
acho que você precisa ser bem mais cuidadoso a respeito de todo o debate entre
ciência e religião do que algumas pessoas foram no passado.”
Ele
disse que muitos cientistas na sua área possuem crenças religiosas. “Eu por
acaso não sou um deles, mas talvez seja
mais uma questão da minha origem familiar do que haver alguma dificuldade
fundamental em conciliar as duas coisas.” [...]
Muitos
cientistas acreditam que a descoberta [do bóson] coloca Higgs como franco
favorito para um futuro Prêmio Nobel. [...]