quinta-feira, abril 10, 2014

“Noé” é um show de cabala e gnosticismo

Noé cabalístico
Em “Noé”, a nova e épica produção cinematográfica de Darren Aronofsky, Adão e Eva são apresentados como seres luminescentes e descarnados, até o momento em que comem do fruto proibido. Essa versão não é a da Bíblia, é claro. E, em meio a muitas outras licenças imaginativas de Aronofsky, como os monstros gigantes de lava, essa imagem levou muitos críticos de cinema a coçar a cabeça. Evangélicos conservadores se queixaram de que o filme toma muitas liberdades com o texto do Gênesis. Grupos mais liberais concederam suas indulgências ao diretor: afinal de contas, não devemos esperar que um ateu professo tenha as mesmas ideias de um crente a respeito dos textos sagrados. O caso é que os dois grupos se perderam na avaliação. Aronofsky não tomou liberdade alguma com o texto bíblico. O filme simplesmente não foi baseado na Bíblia.

Aliás, em defesa do diretor, devemos reconhecer que o filme nem sequer foi anunciado como se fosse. “Noé” não é uma adaptação do Gênesis. O filme nunca foi anunciado como “Noé da Bíblia” ou como “A História Bíblica de Noé”. Os escombros da cristandade continuam quentes o suficiente em nossos dias para que, quando alguém diz que vai fazer “Noé”, todo o mundo já presuma que vai ser uma versão da história da Bíblia. Eu tenho certeza de que Aronofsky ficou muito feliz em deixar seu estúdio pressupor isso mesmo, porque se o estúdio soubesse o que ele realmente pretendia, nunca teria permitido que ele fizesse o filme. Aronofsky tinha outras coisas em mente.

Vamos voltar à versão luminescente dos nossos primeiros pais. Eu reconheci o “motif” instantaneamente: é uma visão típica da antiga religião gnóstica. Eis uma descrição, do século 2 d.C., de algo em que a seita dos chamados ofitas acreditava: “Adão e Eva, originalmente, possuíam corpos sutis, luminosos e, por assim dizer, espirituais. Mas, quando chegaram aqui, seus corpos se tornaram escuros, pesados e desidiosos” (descrito por Irineu de Lyon, em Contra Heresias, I, 30,9).

Ocorreu-me que uma tradição mística mais estreitamente relacionada com o judaísmo, chamada cabala (que a cantora Madonna popularizou há cerca de uma década), teria certamente conservado uma visão semelhante, já que ela é, essencialmente, uma forma de gnosticismo judaico. Eu sacudi o pó do meu exemplar da obra The Kabbalah, escrita no século 19 por Adolphe Franck, e confirmei rapidamente as minhas suspeitas: “Antes de serem seduzidos pela sutileza da serpente, Adão e Eva não apenas eram isentos da necessidade de um corpo, mas sequer tinham corpo; ou seja, eles não eram da Terra.”

Franck cita o Zohar, um dos textos sagrados da cabala: “Quando nosso pai Adão habitava o Jardim do Éden, ele vestia, como todos no Céu, uma roupa feita de luz superior. Quando foi expulso do Jardim do Éden e obrigado a submeter-se às necessidades deste mundo, o que aconteceu? Deus, dizem as Escrituras, fez para Adão e para a sua esposa túnicas de pele e os vestiu; antes disso, eles vestiam túnicas de luz, da luz mais alta que havia no Éden...” [Até aí, tudo bem. Ellen White também diz que Adão e Eva usavam “vestes de luz”, mas não que fossem espíritos ou coisa parecida. – MB]

Isso é uma coisa obscura, eu sei. Mas a curiosidade tomou conta de mim e eu fui a fundo. Descobri que o primeiro longa de Darren Aronofsky foi “Pi” (de 1998; não confundir com “Life of Pi”, que não tem nada a ver com isso). Quer saber qual era o assunto? Tem certeza? Cabala. Consegui chamar a sua atenção? Ótimo.

O universo do “Noé” de Aronofsky é completamente gnóstico: um universo com graus “superiores” e “inferiores”. O “espiritual” é bom, e muito, muito, muito elevado: é lá onde mora o deus inefável; e o “material” é ruim, e muito, muito, muito inferior: é aqui, onde os nossos espíritos estão presos em carne material. Isto vale não apenas para os filhos e filhas decaídos de Adão e Eva, mas também para os anjos caídos, descritos explicitamente como espíritos aprisionados em “corpos” materiais feitos de lava derretida resfriada.

O filme criou personagens muito bacanas, mas sua evocação gnóstica também é notória. Os gnósticos os chamam de arcontes, seres divinos ou angelicais de menor escalão, que ajudam “O Criador” na formação do universo visível. E a cabala tem um panteão todo próprio de seres angelicais que sobem e descem pela “escada do ser divino”. E anjos caídos nunca são totalmente caídos nesse tipo de misticismo. Para citar de novo o Zohar, um texto central da cabala: “Todas as coisas de que este mundo é composto, tanto o espírito quanto o corpo, voltarão ao princípio e à raiz de onde vieram.” Engraçado: é exatamente o que acontece com os monstros de lava de Aronofsky. Eles se redimem, mudam até de pele e voam de volta para os céus. Aliás, eu notei que, no filme, quando a família de Noé vai caminhando por uma terra desolada, Sem pergunta ao pai: “Esta é uma mina Zohar?” Pois é: o nome do texto sagrado da cabala.

O filme inteiro é, figurativamente, uma mina Zohar.

E, se havia alguma dúvida sobre os “Vigilantes”, Aronofsky dá nome a vários deles: Samyaza, Magog e Ramil. Todos são demônios conhecidos da tradição mística judaica, não só da cabala, mas também do Livro de Enoc.

O quê? Demônios redimidos? Adolphe Franck explica a cosmologia da cabala: “Nada é absolutamente mau; nada é maldito para sempre, nem mesmo o arcanjo do mal ou, como ele é chamado às vezes, a fera venenosa. Chegará um tempo em que até ele recuperará o seu nome e a sua natureza angelical.”

Sim, isso é estranho, mas, por outro lado, todo mundo no filme parece adorar “O Criador”, certo? E isso é um ponto a favor do filme, não é? Não.

Acontece que, quando os gnósticos falam do “Criador”, eles não estão falando de Deus. Aqui, em nosso mundo que colhe os frutos da cristandade, o termo “Criador” geralmente denota o Deus vivo e verdadeiro. Mas, no gnosticismo, o “Criador” do mundo material é um filho bastardo de uma divindade de baixo nível, ignorante, arrogante, ciumento, exclusivista, violento e rasteiro. Ele é o responsável pela criação do mundo “não espiritual”, de carne e matéria, e ele mesmo é tão ignorante do mundo espiritual que se imagina como o “único Deus” e exige obediência absoluta. Os gnósticos geralmente o chamam de “Javé”. Ou de outros nomes, como Ialdabaoth, por exemplo.

Este “Criador” tenta manter Adão e Eva longe do verdadeiro conhecimento do divino e, quando eles desobedecem, fica furioso e os escorraça do paraíso.

Em outras palavras, caso você tenha se perdido no enredo: a serpente estava certa o tempo todo. Esse “deus”, “O Criador”, a quem eles adoram, está retendo para si algo que a serpente poderia lhes proporcionar: nada menos que a própria divindade.

O universo do misticismo gnóstico tem uma desconcertante infinidade de variedades. Mas, em geral, elas têm em comum o fato de chamar a serpente de “Sophia” [Sabedoria, em grego] ou “Mãe”. A serpente representa o divino verdadeiro. As declarações do “Criador” é que são falsas. Então a serpente é um personagem importante no filme?

Vamos voltar ao filme. A ação começa quando Lamec está prestes a abençoar seu filho, Noé. Lamec, de modo muito estranho para um patriarca de uma família que segue a Deus, puxa uma relíquia sagrada, a pele da serpente do Jardim do Éden. Ele a enrola no braço e estende a mão para tocar no seu filho; neste momento, um bando de saqueadores interrompe a cerimônia. Lamec é morto e o “vilão” do filme, Tubal-Caim, rouba a pele da serpente. Noé, em resumo, não recebeu o suposto benefício que a pele da serpente lhe concederia.

A pele não se acende magicamente no braço de Tubal-Caim: aparentemente, ele também não fica “iluminado”. E é por isso que todo mundo no filme, incluindo o protagonista Noé e o antagonista Tubal-Caim, adora “O Criador”. Todos eles estão enganados.

Vou esclarecer uma coisa: muitos críticos manifestaram perplexidade ao ver que não há nenhum personagem “apreciável” no filme e que, de quebra, todos parecem adorar o mesmo Deus. Tubal-Caim e seu clã são maus e do mal, mas o próprio Noé também se mostra muito mau quando abandona a namorada de Ham e quase mata duas crianças recém-nascidas. Alguns acharam que essa passagem era uma espécie de profunda reflexão sobre o mal que existe em todos nós. Mas aqui vai outro trecho do Zohar, o texto sagrado da cabala: “Dois seres [Adão e Nachash, a serpente] tiveram relações com Eva [a segunda mulher] e ela concebeu de ambos e deu à luz dois filhos. Cada um seguiu um dos progenitores masculinos e seus espíritos se separaram, um para um lado, o outro para o outro, assim como, similarmente, seus caráteres. No lado de Caim estão os da espécie do mal; no de Abel, uma classe mais misericordiosa, mas não ainda totalmente benéfica: são vinho bom misturado com vinho ruim.” Soa familiar?

De qualquer forma, todo mundo está adorando a “divindade do mal”, que quer destruir a todos (na cabala, diga-se de passagem, acredita-se que muitos mundos já foram criados e destruídos). Tanto Tubal-Caim quanto Noé tem cenas idênticas, olhando para o céu e perguntando: “Por que não falas comigo?” “O Criador” abandonou a todos porque tem a intenção de matar a todos.

Noé tinha tido uma visão da vinda do dilúvio. Ele está se afogando, mas vê animais que flutuam na superfície, na segurança da arca. Não há nenhuma indicação de que Noé se salvará. Ele não sabe como explicar as coisas para a sua família: afinal, ele está afundando enquanto os animais, “os inocentes”, se salvam. “O Criador”, que proporciona essa visão a Noé, quer que todos os seres humanos morram.

Muitas resenhas críticas estranharam a mudança de Noé, que, na arca, se torna um maníaco homicida querendo matar as duas netas recém-nascidas. Não há nada de estranho nisso. Na opinião do diretor, Noé está adorando um deus falso que também é um maníaco homicida. Quanto mais Noé se torna fiel a esse deus, mais ele se torna homicida. Ele vai se transformando cada vez mais na “imagem do deus”, a mesma “imagem do deus” constantemente mencionada (e encarnada) pelo vilão Tubal-Caim.

Mas Noé decepciona “O Criador”. Ele não acaba com todas as vidas, do jeito que seu deus quer que ele faça. “Quando eu olhei para aquelas duas meninas, meu coração se encheu somente de amor”, diz ele. Agora Noé tem algo que “O Criador” não tem: amor. E misericórdia. Mas de onde ele tirou isso? E por que agora?

Na cena imediatamente anterior, Noé matou Tubal-Caim e recuperou a relíquia da pele de cobra: “Sophia”, a “Sabedoria”, a verdadeira luz do divino. Apenas uma coincidência, claro...

Bom, estou quase terminando.

Falemos do arco-íris. Ele não aparece no final só porque Deus faz uma aliança com Noé. O arco-íris aparece quando Noé fica sóbrio e abraça a serpente. Ele enrola a pele em volta no braço e abençoa a família. Não é Deus que os encarrega de se multiplicar e encher a Terra, mas sim Noé, em primeira pessoa, usando o talismã-serpente (a propósito, não é casual que os arco-íris sejam todos circulares. O círculo do “Um”, o Ein Sof, na cabala, é o sinal do monismo).

Observe esta mudança: Noé estava bêbado na cena anterior. Agora ele já está sóbrio e “iluminado”. Um cineasta nunca monta uma sequência dessas por acidente. Noé transcendeu e superou aquela divindade ciumenta e homicida.

Faço algumas advertências depois de tudo isso.

Primeiro, a especulação gnóstica tem várias perspectivas. Alguns grupos se mostram radicalmente “dualistas”, com “O Criador” sendo de fato um “deus” completamente diferente. Outros são mais “monistas”, com Deus existindo em uma série de emanações descendentes. Outros, ainda, consideram que a divindade inferior pode “crescer”, “amadurecer” e ascender na “escala” do ser, rumo a maiores alturas. Noé, provavelmente, se encaixa um pouco em cada categoria. É difícil dizer.

Minha outra advertência é esta: há uma tonelada de imagens, citações e temas da cabala neste filme e eu não conseguiria citar todas elas neste único texto. Por exemplo: a cabala geralmente se baseia em letras e números hebraicos; os “Vigilantes” pareciam ter, deliberadamente, a forma de letras hebraicas.

Eu não veria este filme de novo para escavar detalhadamente todas essas referências, nem sequer se você me pagasse (até porque, de um mero ponto de vista cinematográfico, achei a maior parte do filme insuportavelmente chata). O que posso dizer, tendo visto a produção somente uma vez, é o seguinte: Darren Aronofsky produziu uma releitura da história de Noé sem embasamento algum na Bíblia. É uma releitura totalmente pagã da história de Noé, baseada em fontes gnósticas e da cabala. Para mim, não resta simplesmente nenhuma dúvida sobre isso.

Agora deixem-me dizer qual é o verdadeiro escândalo em tudo isso.

Não é o fato de que o filme foge à versão bíblica. Não é o fato de que os críticos cristãos, decepcionados, tinham expectativas altas demais. O escândalo é este: de todos os líderes cristãos que fizeram um grande esforço para endossar esse filme (pelo motivo que fosse: “Porque é um início de diálogo”, “Porque Hollywood está pelo menos fazendo alguma coisa ligada à Bíblia”, etc.) e de todos os líderes cristãos que o condenaram por “não seguir a Bíblia”, nenhum conseguiu identificar uma subversão flagrantemente gnóstica da história bíblica, por mais que ela estivesse bem debaixo dos seus narizes.

Eu acho que Aronofsky se propôs a experiência de nos fazer de bobos: “Vocês são tão ignorantes que eu sou capaz de colocar Noé (Russell Crowe!) nas telas e retratá-lo literalmente como a ‘semente da serpente’ e, mesmo assim, todos vocês vão assistir e apoiar.”

Aronofsky está dando risada. E todos os que caíram no trote deveriam se envergonhar. E olhem que foi uma experiência gnóstica impressionante! No gnosticismo, somente a “elite” possui “o saber” e o conhecimento secreto. Todo o resto das pessoas é um bando de ingênuos e tolos ignorantes. O “grande evento” desse filme é ilustrar esta premissa gnóstica: nós, “o resto”, somos ingênuos e tolos.

Será que a cristandade poderia acordar, por favor?

Em resposta, eu tenho uma sugestão simples: de hoje em diante, nenhum seminarista deveria avançar de etapa se não demonstrasse que leu, digeriu e entendeu o texto Contra Heresias, de Irineu de Lyon. Afinal de contas, estamos novamente no século 2 d.C.

Post scriptum: alguns leitores podem achar que eu estou sendo duro demais com as pessoas porque elas não perceberam o gnosticismo no coração desse filme. Eu não espero que os espectadores em geral percebam essas coisas. O que eu esperava deles, aliás, era exatamente o que vimos: uma confusão de coçar a cabeça. Mas espero, sim, uma reação muito diferente dos líderes cristãos: professores de seminários e de universidades, párocos, doutores. Se uma pele de serpente enrolada no braço de um personagem bíblico não dispara nenhum alarme diante deles... eu não sei nem o que dizer.