Em
um dos grandes momentos do novo filme de Darren Aronofsky, Noé (Russell Crowe)
conta para seus filhos a mesma história que ouviu de seu pai, que por sua vez
ouviu de seu avô, sucessivamente até chegar no primeiro homem, Adão: a história
da criação. O que se segue é uma sequência belíssima e assustadora, em que os
sete dias da criação do mundo são narrados com a base do texto do Velho
Testamento, integrado ao Big Bang que
deu origem ao Universo e à Teoria da Evolução de Darwin. Os “dias” divinos podem ser eras,
encapsuladas no trabalho do Criador (e nunca Deus) em erguer um novo mundo,
em fazer do nada, vida. Noé não é um “filme bíblico” na definição
clássica do termo. Mas é um épico de fé e obsessão que coloca o profeta na
posição de zelador, carcereiro e ativista, que atende a um chamado, entende sua
função na Terra e não vai deixar que nada fique entre ele e a tarefa para a
qual foi designado. [...] Religião,
embora seja a matéria prima da história, não é a mola que impulsiona o projeto:
é o fascínio em materializar um conto
presente em escrituras de todas as religiões, uma metáfora para o fim de
tudo e seu renascimento. Embora, como
acredita o próprio Russell Crowe (em grande atuação), as evidências físicas e
geológicas em todo o planeta corroborem que, um dia, fomos cobertos por água. [...]
Fora
dos textos bíblicos surge Ila (Emma Watson), adotada pela família ao ser
encontrada em um acampamento em ruínas quando bebê, com uma lesão que a deixou
estéril. Ila se envolve romanticamente com Sem, deixando em Cam a esperança de
que, quando chegar a hora, seu pai também permitirá que ele encontre uma
esposa. Mas a obsessão de Noé em interpretar a tarefa apontada pelo Criador
(suas visões vem em sonhos, também uma maneira esperta em mostrar essa
comunicação divina) o coloca como zelador dos inocentes – ou seja, os animais
aglomerados e colocados em hibernação na arca –, que seriam os únicos herdeiros
da Terra depois de tomada pelas águas. [...]
Para auxiliar na tarefa
de erguer a arca, o profeta tem o auxílio dos Guardiões, gigantes de pedra que,
na verdade, são anjos caídos, cuja luz foi
aprisionada nas entranhas da Terra – tudo porque ousaram ajudar o homem em sua jornada, desviando-se dos desígnios
do Criador quando o fruto proibido pôs fim à harmonia no paraíso.
Darren
Aronofsky teve cuidado em seu roteiro (escrito com Ari Handel) para ser
respeitoso com qualquer crença. Ainda assim, o texto bíblico, apesar de
importante e inspirador e até obsessivo para muitos que o seguem literalmente, é apenas mais um livro. Como tal, é passível de adaptação, de adequação
narrativa, de receber o input do
diretor – que, afinal, é quem tem a visão criativa para materializar uma
história. Seja na personalidade do protagonista, seja nos personagens
adicionados à trama, ou nas passagens alteradas para a fluidez narrativa, Noé é
um trabalho impecável, ainda que de difícil empatia. [...]
Esta foto já mostra um "furo": a chuva cai sete dias depois de a arca ser fechada |
(Roberto Sadovski, UOL)
Nota:
Como não assisti (e agora nem sei se vou) ao filme “Noé”, tomo como base os
comentários do Roberto Sadovski para tecer minhas opiniões. Mais uma vez
Hollywood perdeu a chance de produzir um filme fidedigno ao relato que lhe
serve de inspiração. É interessante notar como pessoas (e mesmo críticos de
cinema) que leram livros depois adaptados para filmes quase sempre reclamam da
falta de fidelidade à história original. Mas, quando se trata da Bíblia, parece
ser virtude se afastar o máximo possível do texto. Parece até haver uma “agenda
oculta”, nesse caso. Para que retratar as histórias bíblicas com precisão, se é
possível misturá-las com conceitos antibíblicos, como o evolucionismo? Para que
defender a ideia de que o dilúvio (e outros relatos bíblicos) são eventos históricos,
se se pode compará-los a mitos (embora a existência de mais de 200 relatos do
dilúvio em diversas culturas seja, na verdade, uma boa evidência a favor da
historicidade do evento)? Outro “detalhe” curiosamente perturbador (para mim):
Deus é apresentado como simplesmente o Criador. Será que a ideia é mostrar um
Ser distante, não o Pai apresentado nas Escrituras? E se é assim, por que os
anjos caídos são tão “simpáticos”, a ponto de ter ajudado o ser humano e até
dado uma mãozinha na construção a arca? Que história é essa?! A única coisa boa
que li na resenha acima foi a opinião de Crowe, para quem as evidências físicas
e geológicas em todo o planeta corroboram que, um dia, fomos cobertos por água.
[MB]