quinta-feira, abril 03, 2014

“Noé” mistura evolucionismo com distorções da Bíblia

Em um dos grandes momentos do novo filme de Darren Aronofsky, Noé (Russell Crowe) conta para seus filhos a mesma história que ouviu de seu pai, que por sua vez ouviu de seu avô, sucessivamente até chegar no primeiro homem, Adão: a história da criação. O que se segue é uma sequência belíssima e assustadora, em que os sete dias da criação do mundo são narrados com a base do texto do Velho Testamento, integrado ao Big Bang que deu origem ao Universo e à Teoria da Evolução de Darwin. Os “dias” divinos podem ser eras, encapsuladas no trabalho do Criador (e nunca Deus) em erguer um novo mundo, em fazer do nada, vida. Noé não é um “filme bíblico” na definição clássica do termo. Mas é um épico de fé e obsessão que coloca o profeta na posição de zelador, carcereiro e ativista, que atende a um chamado, entende sua função na Terra e não vai deixar que nada fique entre ele e a tarefa para a qual foi designado. [...] Religião, embora seja a matéria prima da história, não é a mola que impulsiona o projeto: é o fascínio em materializar um conto presente em escrituras de todas as religiões, uma metáfora para o fim de tudo e seu renascimento. Embora, como acredita o próprio Russell Crowe (em grande atuação), as evidências físicas e geológicas em todo o planeta corroborem que, um dia, fomos cobertos por água. [...]

Fora dos textos bíblicos surge Ila (Emma Watson), adotada pela família ao ser encontrada em um acampamento em ruínas quando bebê, com uma lesão que a deixou estéril. Ila se envolve romanticamente com Sem, deixando em Cam a esperança de que, quando chegar a hora, seu pai também permitirá que ele encontre uma esposa. Mas a obsessão de Noé em interpretar a tarefa apontada pelo Criador (suas visões vem em sonhos, também uma maneira esperta em mostrar essa comunicação divina) o coloca como zelador dos inocentes – ou seja, os animais aglomerados e colocados em hibernação na arca –, que seriam os únicos herdeiros da Terra depois de tomada pelas águas. [...]

Para auxiliar na tarefa de erguer a arca, o profeta tem o auxílio dos Guardiões, gigantes de pedra que, na verdade, são anjos caídos, cuja luz foi aprisionada nas entranhas da Terra – tudo porque ousaram ajudar o homem em sua jornada, desviando-se dos desígnios do Criador quando o fruto proibido pôs fim à harmonia no paraíso.

Darren Aronofsky teve cuidado em seu roteiro (escrito com Ari Handel) para ser respeitoso com qualquer crença. Ainda assim, o texto bíblico, apesar de importante e inspirador e até obsessivo para muitos que o seguem literalmente, é apenas mais um livro. Como tal, é passível de adaptação, de adequação narrativa, de receber o input do diretor – que, afinal, é quem tem a visão criativa para materializar uma história. Seja na personalidade do protagonista, seja nos personagens adicionados à trama, ou nas passagens alteradas para a fluidez narrativa, Noé é um trabalho impecável, ainda que de difícil empatia. [...]

Esta foto já mostra um "furo": a chuva cai sete dias depois de a arca ser fechada


(Roberto Sadovski, UOL)

Nota: Como não assisti (e agora nem sei se vou) ao filme “Noé”, tomo como base os comentários do Roberto Sadovski para tecer minhas opiniões. Mais uma vez Hollywood perdeu a chance de produzir um filme fidedigno ao relato que lhe serve de inspiração. É interessante notar como pessoas (e mesmo críticos de cinema) que leram livros depois adaptados para filmes quase sempre reclamam da falta de fidelidade à história original. Mas, quando se trata da Bíblia, parece ser virtude se afastar o máximo possível do texto. Parece até haver uma “agenda oculta”, nesse caso. Para que retratar as histórias bíblicas com precisão, se é possível misturá-las com conceitos antibíblicos, como o evolucionismo? Para que defender a ideia de que o dilúvio (e outros relatos bíblicos) são eventos históricos, se se pode compará-los a mitos (embora a existência de mais de 200 relatos do dilúvio em diversas culturas seja, na verdade, uma boa evidência a favor da historicidade do evento)? Outro “detalhe” curiosamente perturbador (para mim): Deus é apresentado como simplesmente o Criador. Será que a ideia é mostrar um Ser distante, não o Pai apresentado nas Escrituras? E se é assim, por que os anjos caídos são tão “simpáticos”, a ponto de ter ajudado o ser humano e até dado uma mãozinha na construção a arca? Que história é essa?! A única coisa boa que li na resenha acima foi a opinião de Crowe, para quem as evidências físicas e geológicas em todo o planeta corroboram que, um dia, fomos cobertos por água. [MB]