História bíblica vira circo midiático |
De
vez em quando, a mídia popular secular escancara seus preconceitos, suas
contradições e seus paradoxos. A título de comparação, quando a rede Globo de
televisão veicula reportagens sobre espiritismo, astrologia e/ou festas católicas que
envolvem romarias, adoração de imagens e coisas afins, geralmente o faz em tons
positivos, quase com reverência. Certa vez, em um programa matinal, a emissora
expôs a fé da apresentadora em sua peregrinação religiosa e em suas
demonstrações de penitência. A matéria foi exibida sem críticas, com todo o
respeito que, evidentemente, essas coisas merecem. Ocorre que esse respeito e
essa “imparcialidade” são relativos, e isso pode ser visto claramente quando o
assunto em questão são eventos ou conceitos bíblicos e, pior, quando o tema em
pauta é o criacionismo. Aí realmente mudam de tom, deixando claro que preferem
respeitar a crença na suposta influência dos astros e dos búzios, nas aparições
de supostas almas penadas e na pretensa energia mística de pedaços de madeira,
a acreditar que o Universo tenha sido criado pelo Deus da Bíblia e que as
histórias de Gênesis sejam factuais.
Vimos
um claro exemplo disso ontem à noite. Em pleno Natal, o programa semanal de
variedades “Fantástico” levou ao ar uma reportagem sobre a réplica da arca de
Noé construída no Estado do Kentucky, nos Estados Unidos. A seguir, vamos
analisar alguns pontos da reportagem que pode ser vista aqui. Confira também os links fornecidos ao longo do texto e que proveem conteúdo
adicional.
1. O
vídeo começa com a frase “qualquer criança conhece essa história”, numa
possível tentativa de logo de cara infantilizar o assunto. Sim, as crianças
conhecem a história de Noé, mas adultos também se dedicam ao estudo do tema, e
há muitas pesquisas sobre isso que poderiam ter sido mencionadas na matéria
(confira aqui e aqui).
2.
O repórter Felipe Santana mostra a cozinha da arca e diz que seus criadores
acreditam que a família de Noé era vegetariana, “apesar de ter muitos animais
dentro da arca”. Mas é evidente que deveriam ser vegetarianos, afinal, os
animais mantidos na embarcação (um par de animais “impuros” e sete pares de animais
“limpos”) eram um verdadeiro patrimônio, e, naquele momento, uma raridade. Se a
família de Noé se pusesse a comê-los, poderia acabar por extinguir algumas
espécies. É bom lembrar que a dieta originalmente determinada por Deus para os
seres humanos e para os animais foi a vegetariana. A permissão para comer carne veio somente após o dilúvio, em caráter de
emergência. Daí a quantidade maior de animais liberados para consumo humano (ou
“limpos”).
3.
O repórter diz, também, que os criadores da arca não acreditam que animais possam
ter sido extintos pela seleção natural. Não sei de onde ele tirou isso, pois os criacionistas acreditam, sim, nos
efeitos da seleção natural e em seu potencial de eliminar organismos menos adaptados às condições em que
vivem. Não acreditam é no poder “criador” às vezes atribuído à seleção natural,
como mecanismo promotor de evolução. Como o nome já diz, ela apenas seleciona o
que já existe, mas não promove aprimoramentos que dependeriam de novos aportes
de informação complexa e específica, o que é cientificamente improvável, pois informação
depende de uma fonte informante.
4.
A matéria comete o erro clássico de confundir ciência com cientistas, e
afirma que a evolução é “a teoria mais aceita pela ciência”. A ciência não “aceita”
nada, não “pensa” nada, não “supõe” nada. Ciência é método, é ferramenta, é um ótimo recurso não inventado pelo ser humano, mas usado por
ele para compreender a realidade que o cerca. Os cientistas (com toda a sua
subjetividade, suas crenças e seus pressupostos) é que “aceitam”, “pensam” e “supõem”.
Assim, o correto seria dizer que a evolução é a teoria mais aceita por muitos
cientistas, não todos, afinal, há aspectos dessa teoria que sequer são
científicos (são filosóficos) e há muitos cientistas que não aceitam todos os
aspectos do evolucionismo, justamente por não serem científicos. A matéria do “Fantástico”
simplifica demais a questão e promove o clássico ufanismo darwinista.
5. Citam
o conhecido exemplo do pescoço da girafa e afirmam que as mais altas foram
selecionadas pelo fato de conseguirem alcançar as folhas verdes do alto das
árvores. E os animais que não dispunham de pescoções, como “se viravam”? Por
que não se tornaram extintos? E os mecanismos complexos de que a girafa dispõe
para poder viver com aquele pescoção (confira aqui)? Teriam “surgido” assim complexos nas girafas altas e não nas mais
baixas? Nas baixas seria desnecessário. Nas altas seria vital desde o princípio,
pois a girafa não sobreviveria sem esses mecanismos. Fica fácil apresentar uma
teoria simplificando tudo como se fosse uma historinha para crianças (e tiveram a coragem de começar a
matéria dizendo que a arca de Noé é história infantil!).
6. Em
seguida, Santana diz que o “pessoal” (intenção de descredibilização?) que criou
a arca acredita no criacionismo, segundo o qual “tudo” e “todos” foram feitos
por Deus. Outra simplificação generalista. Criacionistas não acreditam, por
exemplo, que Deus criou o tubarão, o leão e o mosquito Aedes aegypti do jeito que são. Deus criou os tipos básicos de
animais e estes passaram por modificações morfológicas, fisiológicas e
comportamentais. Sofreram diversificação de baixo nível, de modo que os seres
vivos que hoje habitam a Terra (nós, inclusive) são descendentes modificados
das primeiras criaturas. Criacionistas não
são fixistas, como
tenta afirmar nas entrelinhas a matéria do “Fantástico” (confira material
adicional aqui, aqui, aqui e aqui).
7.
Santana diz que, para trabalhar na arca do Kentucky, é proibido ter outra
religião, ser a favor do aborto ou ser gay. É evidente que é preciso haver identificação
do funcionário com a ideologia que ele vai defender. Ou são permitidos em
universidades públicas professores criacionistas para lecionar a cadeira de
Evolução, por exemplo? Michael Behe, em seu livro A Caixa Preta de Darwin, conta o caso de um cientista que perdeu a chance de assinar uma
coluna sobre ciência em um grande jornal norte-americano pelo simples fato de
ter dito que acredita no Gênesis. Por que a reportagem tenta destacar o que
seria um tipo de preconceito criacionista, ao passo que ignora situações
semelhantes “do outro lado”?
8.
Pouco depois da metade do vídeo, é apresentada aquela que é considerada a maior
polêmica relacionada com a réplica da arca: a presença de dinossauros a bordo. Na sequência do erro
cronológico de dizer que a Bíblia localiza a história da arca há seis mil anos
vem outro erro conceitual: Santana diz com ênfase na narração que “a ciência
acredita que os dinossauros foram extintos há 65 milhões de anos”. Já vimos que
a ciência não acredita em nada. Quem
acredita são os cientistas. Pelo menos Santana utilizou o verbo correto: “acredita”.
Sim, porque, apesar do relativo consenso, não é unanimidade entre os cientistas
que os dinossauros tenham vivido e se tornado extintos há tantos milhões de
anos. O “Fantástico” perdeu a oportunidade de discutir e esclarecer esse
assunto. Na verdade, acabaram por complicar ainda mais. Depois de Santana afirmar
categoricamente que “isso aqui nunca aconteceu”, referindo-se à presença de
dinossauros na arca, a matéria exibe enquetes com pessoas mal informadas sobre
criacionismo, que dão respostas superficiais, e, em seguida, traz uma
entrevista com o doutor em biologia genética pela Universidade de Harvard Nathanael
Jeanson. Ele menciona a descoberta de tecidos moles em fósseis de dinossauros e
pergunta como isso é possível, se esses fósseis têm tantos milhões de anos? Na
busca de resposta, Santana entrevistou Alexander Kellner, pesquisador do Museu
Nacional do Rio de Janeiro, que simplesmente se limitou a explicar o processo
de fossilização, quando matéria orgânica é substituída por minerais. Nada disse
ou explicou sobre a presença de tecidos moles não fossilizados nesses fósseis
supostamente tão antigos – isso, sim, é fantástico! Mas o “Fantástico” ficou
devendo essa explicação aos seus telespectadores. (Leia mais sobre os achados
de tecidos moles em fósseis de dinossauros. Clique aqui.)
9.
Santana afirma também que, “segundo a ciência, o homem nunca viveu no mundo dos
dinossauros”. Nem vou repetir que a ciência não diz nada (ops! Já repeti), vou
apenas dizer que existem, sim, evidências da convivência entre humanos e dinos
(confira aqui e aqui). O que ocorre é que, infelizmente, os cientistas evolucionistas e setores
da mídia comprometidos com a cosmovisão naturalista-darwinista ou ignoram essas
evidências ou as minimizam, porque não se encaixam em seu modelo conceitual
preestabelecido.
10.
Santana diz que a instituição que construiu a arca quer que o criacionismo e o
evolucionismo sejam ensinados nas escolas, a fim de que os alunos conheçam os
argumentos de ambos os lados e possam decidir em que acreditar. Há algo de
errado nisso? Não é no ensino do contraditório que realmente se pode aprender,
e aprender a pensar, inclusive? Por que esse receio de promover a discussão
crítica das insuficiências da teoria da evolução? (Na verdade, essa é
exatamente a proposta de entidades como a SCB e deste blog, que não apoiam o
ensino do criacionismo em escolas públicas. Saiba por quê.)
11.
A reportagem termina com estas palavras do repórter: “Com uma estrutura deste tamanho [a arca], eles querem tentar convencer
que a deles é a história certa. E você? Em qual você acredita?” Mas o que a
matéria passa é a seguinte ideia: “O evolucionismo é sinônimo de ciência, o
criacionismo é essa bobagem que lhe mostramos. Em que você acredita?” A reportagem
comete o clássico equívoco “vendedor de jornais” de apresentar a ciência em
conflito com a religião, sem mencionar que ambas podem andar juntas e em
harmonia, mesmo com metodologias distintas (confira aqui, aqui, aqui, aqui e
aqui).
O
lado bom da matéria (porque nem tudo são espinhos) é que deram certa
visibilidade ao criacionismo e chamaram a atenção dos telespectadores para o
assunto do dilúvio e da arca de Noé. Que cada um
busque as informações corretas a fim de formar sua opinião. Para a infelicidade
de certos setores da mídia, hoje a informação e os dados estão mais disponíveis
para os que desejam conhecer a verdade.
Michelson Borges
Assista também à entrevista com o geólogo Dr. Nahor Neves de Souza Jr. e ao vídeo "Origens dos Dinossauros" (compacto).
Conheça o livro Terra de Gigantes, sobre o dilúvio e os dinossauros (clique aqui).
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