domingo, outubro 03, 2010

A arte de escrever bem para o bem

Há livros para ser lidos e outros para ser degustados. A Arte de Escrever, de Arthur Schopenhauer, está na segunda categoria – não por acaso: do começo ao fim, o autor aplica as regras que ensina. Escrito na primeira metade do século 19, o livro surpreende justamente por ter sido produzido por um filósofo alemão. Seus pares são conhecidos pelas obras massivas (e, às vezes, maçantes) que legaram ao mundo. Mas Schopenhauer é diferente. Segundo ele, “um bom cozinheiro pode dar gosto até a uma velha sola de sapato; da mesma maneira, um bom escritor pode tornar interessante mesmo o assunto mais árido” (A Arte de Escrever, p. 21 – L&PM, 2005).

Clareza e estilo vivo marcam a obra do filósofo. Ele é o tipo de autor que lapida o texto como se cada palavra devesse ter o sentido exato para o qual foi designada, a fim de que o leitor não entenda nada além do que o autor quis dizer. O texto deve ser claro e fácil de entender, pois, “se lemos algo com dificuldade, o autor fracassou”, conforme escreveu Jorge Luis Borges. O tempo e a paciência do leitor também devem sempre ser considerados por quem escreve, ainda que seja apenas um e-mail. Por isso, as dicas de Schopenhauer valem para todos os que redigem – desde um bilhete até um livro.

A Arte de Escrever não trata apenas da escrita, mas dos atos de pensar e ler. Para o autor, mais do que obter informação, devemos ter pensamentos profundos oriundos de reflexão. Mas o que nos interessa aqui são suas dicas de redação: “Não há nada mais fácil do que escrever de tal maneira que ninguém entenda; em compensação, nada mais difícil do que expressar pensamentos significativos de modo que todos os compreendam. O ininteligível é parente do insensato, e sem dúvida é infinitamente mais provável que ele esconda uma mistificação do que uma intuição profunda. [...] a simplicidade sempre foi uma marca não só da verdade, mas também do gênio. [...] escrever mal, ou de modo obscuro, significa pensar de modo confuso e indistinto. [...] muitos escritores procuram esconder sua pobreza de pensamento justamente sob uma profusão de palavras. [...] É sempre melhor deixar de lado algo bom do que incluir algo insignificante. [...] o sinal de uma cabeça eminente é resumir muitos pensamentos em poucas palavras” (ibid., p. 83, 84, 93).

Outra marca dos escritos de Schopenhauer são as boas metáforas e comparações. Por exemplo: “Os pensamentos obedecem à lei da gravidade, de modo que o caminho da cabeça para o papel é muito mais fácil do que o caminho do papel para a cabeça, então é preciso ajudá-los no segundo percurso com todos os meios à nossa disposição” (ibid., p. 111). Aí entram as dicas de redação e o esforço para escrever bem. Aliás, dizem que Platão redigiu sete vezes a introdução de sua República, com diversas modificações.

Isso me lembra um texto de Graciliano Ramos sobre as lavadeiras de Alagoas: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa.”

Outro livro importante para os que se aventuram no mundo das letras é A Redação Pelo Parágrafo, de Luiz Carlos Figueiredo (Editora UnB, 1995). À semelhança de Schopenhauer, Figueiredo defende a organização e o encadeamento dos parágrafos, a fim de ajudar o leitor a acompanhar o raciocínio. Em sua obra, Figueiredo trabalha em seis capítulos, que abordam a organização das ideias, os tipos e tamanhos de parágrafos e a ligação entre eles. Não é à toa que a capa do livro seja ilustrada com uma corrente de letras: cada elo representa um parágrafo (no qual apenas uma ideia deve ser trabalhada) que deve estar ligado ao outro pela ideia central do texto.

Ater-se à ideia central e caprichar na composição de cada parágrafo é como fazer uma boa construção. Para usar outra ilustração schopenhaueriana: “Poucos escrevem como um arquiteto constrói: primeiro esboçando o projeto e considerando-o detalhadamente. A maioria escreve da mesma maneira com que jogamos dominó. Nesse jogo, às vezes segundo uma intenção, às vezes por mero acaso, uma peça se encaixa na outra, e o mesmo se dá com o encadeamento e a conexão de suas frases. Alguns sabem apenas de modo aproximado que figura terá o conjunto e aonde chegará o que escrevem. Muitos não sabem nem isso, mas escrevem como os pólipos de corais constroem: uma frase se encaixa em outra frase, encaminhando-se para onde Deus quiser” (ibid., p. 115).

Ao tratar do tema das incômodas orações intercaladas (que despedaçam o período principal), Schopenhauer diz que “uma pessoa só pode pensar com clareza um pensamento de cada vez; assim, não se pode exigir que pense dois, ou mesmo mais, de uma vez só” (ibid., 115). O mesmo vale para os parágrafos.

Figueiredo afirma que, “na escrita, os parágrafos são as principais partes de determinado texto (artigo, capítulo, entrevista, ensaio, etc.). Para assimilar o texto, o leitor precisa entender as partes, isto é, os parágrafos. E o escritor, para ser entendido pelo leitor, tem que construir textos divididos em parágrafos que espelhem divisão lógica, da qual fazem parte a unidade, a coerência e a consistência” (A Redação Pelo Parágrafo, p. 12). E compara: “Os parágrafos são como ‘prateleiras’ que dividem uma sequência de informações ou pensamentos. Servem para facilitar a compreensão e a leitura do texto, dar folga ao leitor, que acompanha, passo a passo, a linha de raciocínio desenvolvida pelo escritor. [...] O entrelaçamento de um parágrafo com outro, ou a ligação de um raciocínio com outro, dá coesão ao texto” (ibid., p. 13, 14).

Para dar aquela “afiada” no uso da língua, um ótimo e prático livro é A Arte de Escrever Bem – Um guia para jornalistas e profissionais do texto, de Dad Squarisi e Arlete Salvador (Editora Contexto, 2004). As autoras também batem nas teclas da concisão e da simplicidade. “A frase curta tem duas vantagens. Uma: diminui o número de erros. Com ela, tropeçamos menos nas conjunções, nas vírgulas e nas concordâncias. A outra: torna o texto mais claro. Clareza é, disparado, a maior qualidade do estilo. Montaigne, há quatrocentos anos, ensinou: ‘O estilo deve ter três qualidades – clareza, clareza, clareza’. [...] Palavras longas e pomposas funcionam como uma cortina de fumaça entre quem escreve e quem lê. Seja simples. Entre dois vocábulos, prefira o mais curto. Entre dois curtos, o mais expressivo” (A Arte de Escrever Bem, p. 23, 27).

As autoras fazem eco a Schopenhauer e destacam, além da clareza, a concisão. “Concisão não significa lacônico, mas denso. Opõe-se a vago, impreciso, verborrágico. No estilo denso, cada palavra, cada frase, cada parágrafo devem estar impregnados de sentido” (ibid., p. 39). Por isso, ler e reler o texto, cortando as “gordurinhas”, sempre faz bem, afinal, como disse Marques Rebelo, “escrever é cortar”.

Finalmente, mas não menos importante (na verdade, é mais), indico o livro O Outro Poder, de Ellen G. White (Casa Publicadora Brasileira, 2010). Quem escreve, assim como quem fala, deveria sempre usar as palavras para ajudar as pessoas a crescer física, mental e espiritualmente, e a melhor maneira de fazer é isso é atraindo “a atenção das pessoas para as verdades vivas da [Palavra de Deus]” (O Outro Poder, p. 9). Escritores cristãos (e não apenas eles, evidentemente) deveriam lapidar seus textos de modo a interessar o leitor para que ele seja levado a considerar seriamente a mensagem de esperança por trás das letras.

Embora, como Schopenhauer, Ellen White tenha escrito seus livros há mais de um século, ela estava à frente de seu tempo no que diz respeito à compreensão do que significa escrever de maneira interessante. Ela aconselhou: “Nossos periódicos devem sair repletos de verdade que apresente interesse vital e espiritual para o povo. [...] Compete a nossas publicações a mais sagrada obra de tornar clara, compreensível e simples a base espiritual da nossa fé” (ibid.). Clareza, compreensibilidade e simplicidade deveriam ser qualidades do texto de todos os que escrevem para o público. O alvo? Ei-lo: “A escrita deve ser usada como meio de semear a semente para a vida eterna” (ibid., p. 13).

A autora também aconselha concisão para manter o interesse: “Concisão deve ser observada, de modo a interessar o leitor. Artigos longos e enfadonhos são prejudiciais à verdade que o escritor pretende apresentar” (ibid., p. 56). Aos leitores, ela aconselha: “Não temos tempo para devotar a assuntos vulgares, nem tempo para gastar com livros que apenas entretêm” (ibid., p. 98).

Um texto bíblico que serve de boa dica para quem quer escrever bem e com eficácia é Habacuque 2:2: “E o Senhor Deus disse: ‘Escreva em tábuas [jornal, folhetos, livros, sites, blogs] a visão que você vai ter, escreva com clareza o que vou lhe mostrar, para que possa ser lido com facilidade’” (NTLH).

Assim, não importa se se trata de um bilhete de porta de geladeira, e-mail, artigo ou livro, escreva com clareza, simplicidade e concisão; releia o que escreveu antes de publicar e coloque o coração em cada palavra. O leitor agradece.

Michelson Borges

Nota: O leite materno é a quintessência do que existe em termos de nutrição. Por quê? Porque ele é o melhor que o corpo da mãe pode produzir para o crescimento e a saúde do bebê. O texto de quem escreve para o bem deve ser como o leite materno: produzido com carinho e adequado às necessidades de quem lê, proporcionando-lhe saúde e crescimento. Por que pensei nessa analogia? Simples: porque o texto acima começou a ser escrito numa madrugada, na maternidade da Santa Casa de Tatuí, SP, depois que acordei minha esposa para amamentar nosso recém-nascido filho Mikhael.[MB]