sexta-feira, outubro 08, 2010

Um pequeno questionário

Um pequeno questionário elaborado por Marco Dourado a partir do último artigo de Hélio Schwartsman, na Pensata de 05/10/2010. As citações entre aspas são do Hélio: “Insuflados por clérigos que denunciaram o passado pró-abortista da candidata [Dilma], eleitores religiosos (principalmente evangélicos, mas também católicos) teriam trocado a petista por Marina, genuinamente evangélica e contrária ao aborto desde criancinha.”

1) Pergunto: como assim “passado”? Mesmo com o suporte full-time de Lula, por que Dilma (que sempre reafirma e se orgulha de seu “passado” – passado? – terrorista) não consegue se sustentar sem negar aquilo que ela documentadamente defende e que faz parte do programa do PT (o que, aliás, resultou na suspensão de dois deputados petistas que se posicionaram contra o aborto)?

“O Datafolha excomungou a questão religiosa no final de junho, e o Ibope, em 23 de setembro.”

2) Pergunto: para compensar essa “excomunhão”, seria ético por parte do Datafolha esse novo questionário inquisitorial de pesquisa que busca identificar quais religiões influenciaram seus fiéis na rejeição de Dilma pela questão do aborto, o que abriria possibilidades de pressão e retaliação dessas por parte do governo do misericordioso PT?

“Se confirmado como um fenômeno de grandes dimensões, seria a primeira vez que a religião se torna uma variável relevante em eleições majoritárias no Brasil. É justamente aí que mora o problema.”

3) Pergunto: sendo a base de uma religião seu elenco de valores, sobretudo aqueles voltados à preservação da vida, da família, da propriedade e da sociedade, a relevância desses valores constituiria “problema” para quem os tem ou para quem não os tem?

“ninguém jamais afirmou que a democracia era a autoestrada para o paraíso.”

4) Pergunto: a impossibilidade de se usar a política para chegar ao paraíso (do que, obviamente, o grosso dos esquerdistas clássicos discordaria) implica descartá-la como meio de impedir que se desça ao inferno?

“O perigo de utilizar uma lógica espiritual para pautar a política é que ela introduz absolutos morais em questões que precisam ser resolvidas de uma perspectiva essencialmente prática, normalmente com recurso a negociações.”

5) Pergunto: sendo o relativismo a ausência de “absolutos morais”, o que corre perigo? A discussão política como um todo ou o pressuposto de que ela deva se ater ao pragmatismo “essencialmente prático” dos relativistas?

“É claro que existe um equivalente laico do conceito de pecado, que é o crime.”

6) Pergunto: sendo o conceito cristão de pecado essencialmente definido como ausência de amor (verifique na Bíblia), a legislação penal, para efeitos de “equivalência laica”, poderia aplicar sanções contra quem não ama seu semelhante? Não seria mais adequado, no caso, usar o termo “arremedo de sucedâneo”?

“A diferença é que, enquanto este último tem uma justificação exclusivamente racional em bases mais ou menos utilitárias e comporta gradações,”

7) Pergunto: na primeira metade do século passado, a aplicação prática dos conceitos eugenistas de humanitários como Galton, Darwin e Haeckel (o que provocou esterilização compulsória e extermínio em massa através de políticas de países não necessariamente nazifacistas), baseava-se em “justificação exclusivamente racional”? Tachar, à época, seus críticos de medievais, reacionários e obscurantistas também atendia a uma “justificação exclusivamente racional”?

“o primeiro, por ter sido ditado por uma autoridade superior e supostamente incontestável, nos chega na forma de pacotes inegociáveis.”

8) Pergunto: se esses “pacotes” são, de fato, “inegociáveis”, como se explica que o Cristianismo – que resgatou os princípios do amor e fraternidade abundantes ao longo do Antigo Testamento (e quem lê tudo em vez de pinçar apenas o que interessa, sabe) – estabeleceu-se como uma religião tão altruísta e fraterna a ponto de ser considerada pelos materialistas como idealista e impraticável?

“pensar religiosamente é negar a política.”

9) Pergunto: as contribuições dos cristãos para a formação da democracia moderna (e atualmente para a sua defesa) implicou que eles então deixassem de “pensar religiosamente”, seja lá o que isso signifique?

“A condenação da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani à morte por apedrejamento é um exemplo eloquente do tipo de problema com que estamos lidando. Ao contrário do que muitos possam pensar, atirar pedras em pecadores não é uma crueldade exclusiva do islamismo.” [e aí você cita Deuteronômio 22:22-24]

10) Pergunto: a caducidade da legislação veterotestamentária através da reabilitação do messianismo patriarcal (i.e., o Cristianismo) não demonstra que, ao contrário do seu argumento anterior, a religião cristã não é um “pacote inegociável” – desde que respeitados os seus valores?

“Os muçulmanos não inventaram, portanto, o apedrejamento de adúlteros.”

11) Pergunto: o que tem a ver peculiaridades questionáveis do islamismo com a discussão de valores essencialmente cristãos de um país predominantemente cristão na definição de políticas públicas relativas ao respeito à vida? Tergiversação?

“Detalhes legais à parte, a diferença entre o islã e o Ocidente hoje é que, enquanto este último assistiu ao longo dos últimos três ou quatro séculos a uma progressiva laicização das instituições e mesmo da vida, o primeiro permanece fiel a suas origens e textos religiosos.”

12) Pergunto: os textos religiosos do cristianismo original (o qual difere enormemente do sincretismo pagão-cristão implementado a partir do século IV) podem ser majoritariamente comparados aos do islamismo quanto a valores, normas de relacionamento e definição de políticas públicas?

“Talvez seja excessivo afirmar que o Ocidente se tornou irreligioso, mas é certo que acabou ficando pouco zeloso nessa matéria. Foi essa oportuna avacalhação que fez com que as fogueiras inquisitoriais não voltassem a acender-se e permitiu que a ciência avançasse por terrenos que antes lhe eram vedados.”

12) Pergunto: “oportuna” para quem? Para os materialistas ou para os pseudo-cristãos, que queriam ambos fazer às claras o que já faziam às ocultas?

13) Pergunto: o florescimento do protestantismo “avacalhou” o Cristianismo original ou o seu epígono sincrético, o catolicismo, o qual não conseguira reformar?

14) Pergunto: a revolução da ciência moderna se deveu a fervorosos cristãos fundamentalistas como Copérnico, Kepler, Galileu e Newton, entre muitos, ou brotou da cachola travessa de irreligiosos escondidos nas catacumbas, que saíam à luz comemorando: “Oba! avacalharam a religião! Vamos voltar a fazer ciência da boa!”?

“Um europeu típico – nas Américas a coisa é um pouco mais complicada – diz que acredita em Deus e até vai a um culto cristão de vez em quando, mais por hábito do que por convicção profunda. Lê muito pouco a Bíblia e, felizmente, nem mesmo cogita de implementar as passagens que mandam apedrejar adúlteros – ou assassinar ateus, acrescento de olho em meus próprios interesses.”

15) Pergunto: algum judeu ou gói messiânico (i.e., um cristão) que viveu entre 31 e 538 d.C., ou mesmo um cristão reformado a partir do século 16, cogitou “implementar passagens que mandam apedrejar adúlteros”?

“existe uma correlação negativa forte entre o grau de religiosidade de um país e seu sucesso econômico. Deus e pobreza andam de braços dados.”

16) Pergunto: se o “grau de religiosidade” dos países com “sucesso econômico” é apenas formal (“mais por hábito do que por convicção profunda”), o “grau de religiosidade” em que “Deus e pobreza andam de braços dados” é necessariamente sincero ou igualmente formal, embora mais exteriormente litúrgico?

17) Pergunto: “sucesso econômico” anda de braços dados com felicidade espiritual e realização pessoal? Quem teria sido mais feliz, não só no leito de morte, Livingstone ou Ford?

“É dessa pequena revolução iluminista que teve lugar no Ocidente que o islã se ressente.”

18) Pergunto: os “iluministas” dessa “pequena revolução” seriam os cristãos conservadores que contribuíram para o florescimento da ciência e da democracia ou seriam materialistas que, ávidos por criar uma sociedade ideal, produziram o humanismo eugenista, com seus paradisíacos Gulags e Dachaus?

19) Pergunto: o ressentimento do islã teria algo, por pouquinho que fosse, a ver com as Cruzadas ou com a implementação à base do porrete de governos e até países artificiais servindo de valhacoutos para tiranos locais convenientes? (e que fique registrado: não, não sou “orientalista”, como diria Edward Said).

“Lá muito mais do que cá, Estado e religião se confundem e tomam-se ao pé da letra as passagens do livro sagrado que descrevem o sofrimento futuro dos infiéis e as determinações do ‘Hadith’ para que os apóstatas sejam assassinados.”

20) Pergunto: já que, repito, estamos em um país predominantemente cristão, apesar da “esculhambação” que você considera “oportuna”, o termo “ao pé da letra” referindo-se às Sagradas Escrituras, sobretudo como interpretadas pelo autores do Novo Testamento, sugere algo semelhante ao “Hadith”?

21) Pergunto: se o “Hadith” islâmico não encontra guarida nos valores e crenças fundamentalistas deste nosso país cristão, é desejável que se libere um “Hadith” peculiar contra fetos incomparavelmente mais inocentes e indefesos que “adúlteros” ou “apóstatas”?

“Não estou evidentemente nem chegando perto de sugerir que essa novela em torno do aborto – e a vergonhosa capitulação de partidos que sempre defenderam um Estado laico – nos coloca mais perto de uma teocracia.”

22) Pergunto: por que “vergonhosa capitulação”? Partidos políticos deveriam voltar as costas à opinião de cidadãos relativamente a valores que preservam a vida?

“não é sem tristeza que assisto à negação da lógica laicista, que é a melhor coisa que aconteceu ao Ocidente nos últimos 300 anos.”

23) Pergunto: se a “lógica laicista” nasceu lá no comecinho do século 17, defendida por protestantes norte-americanos e sacramentada (ops!) em 4/7/1776 na certidão de nascimento da principal nação cristã do mundo, por que a afirmação política de valores cristãos relativos à defesa da vida seria sua “negação”?

24) Pergunto: se a proposta original do estado laico, como apresentada pelos protestantes norte-americanos para impedir a prevalência e consequentes abusos da parte de alguma denominação religiosa específica, por que insistir na mistificação de que estado laico significa “estado ateu ou agnóstico” – ou, mais honestamente falando, “estado materialista-laxista-relativista”?

São essas as minhas questões.