Os
ateus sempre me chamaram a atenção. Na minha sala de aula, eles sempre foram os
alunos mais curiosos, atentos, interessados, como no caso do Rafael, uma
história que já compartilhei aqui com vocês. Mas quando falo de ateus não me
refiro aos adolescentes rebeldes, os contestadores de autoridade que adoravam
comprar uma briga com o professor de religião. Um deles, certa vez, num ato
falho, disse numa das minhas aulas: “Graças a Deus, eu não acredito em Deus”... Não,
não falo desses hippies de butique.
Falo dos ateus genuínos, esses seres frequentemente agoniados, principalmente
quando se veem diante das contradições e limites humanos, como a miséria, uma
doença incapacitante ou a morte.
Sempre
me comoveu a busca desses ateus, o embate entre a razão e o afeto, o
inconformismo diante da beleza da vida e a brutalidade da morte, a convivência
forçada e contraditória entre a fartura e a miséria, os contrastes que levam à
pergunta ancestral: Onde está Deus?
Em
nenhum momento me sinto superior a eles, como se eu fosse um ser iluminado, ou
possuísse algo que eles não têm. Ao lado deles, me sinto simplesmente irmão.
Talvez por isso, por esse respeito fraterno, minha relação com eles tenha sido
tão serena ao longo de mais de três décadas na sala de aula.
No
fundo, talvez o ateu genuíno apenas expresse essa perplexidade que nos visita
diante das contradições, dos absurdos, das brutalidades da vida e do homem.
O
papa Bento XVI, tão rotulado de insensível pela grande mídia, quando visitou o
campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, em maio de 2006, disse:
“Num
lugar como este faltam as palavras. No fundo pode permanecer apenas um silêncio
aterrorizado, um silêncio que é um grito interior a Deus: Senhor, por que
silenciaste? Por que toleraste tudo isto? Onde estava Deus naqueles dias? Por
que Ele silenciou?”
O
Papa fazia eco a outro grito silencioso ali experimentado pelo escritor judeu
Elie Wiesel, ele mesmo um sobrevivente do Holocausto, que, contando sua saga
como prisioneiro naquele campo de morte no livro A Noite, diz:
“Voltávamos
do trabalho uma tarde e vimos três forcas erguidas no centro do campo. Ao nosso
redor, o pelotão dos S.S., com metralhadoras apontadas: a cerimônia
tradicional. Três condenados algemados. Um deles, uma criança, um anjo de olhos
tristes...
“Os
três condenados subiram em suas cadeiras, juntos. Nos três pescoços foram
colocados, ao mesmo tempo, os nós corrediços.
“–
Viva a liberdade! – gritaram os dois adultos. O pequeno ficou calado.
“As
cadeiras foram chutadas pelo carrasco e os três corpos caíram, num baque seco.
“–
Onde está o bom Deus? Onde está? – perguntou alguém atrás de mim.
“Do
fundo do meu coração, ouvi uma voz que lhe respondia:
“–
Onde está Deus? Ali, pendurado naquela forca...”
Certa
vez, assistindo ao programa Roda Viva, da TV Cultura, onde o entrevistado era o
jornalista Paulo Francis, testemunhei um dos momentos mais angustiantes de um
ateu genuíno. Francis, dotado de uma cultura enciclopédica, uma ironia
corrosiva, debatia com seus entrevistadores como quem maneja uma espada afiada,
no caso, sua língua ferina. Zombava da bancada, fazia piadas com os ataques,
garantia o ibope com seu jeito característico e debochado de falar. Até que um
dos presentes lhe perguntou: “E Deus, você acredita em Deus?”
Francis
parou, ficou em silêncio por alguns insuportáveis segundos e disse: “Eu queria
muito, muito mesmo, acreditar em Deus, mas não consigo. Viajei demais. Vi
demais. Não consigo...”
O
escritor português José Saramago, recentemente falecido, dizia coisa
semelhante: “Não sou um ateu total, todos os dias tento encontrar um sinal de
Deus, mas infelizmente não o encontro...”
Em
1999, numa entrevista à jornalista Marília Gabriela, ele se declarava em paz
com seu ateísmo. E acrescentava: “Não sou contra as religiões. Sou contra o
poder daqueles que chamo de administradores das religiões.”
Respeito
esses ateus genuínos. Admiro suas dúvidas, tão parecidas com as minhas. Sei,
com um saber que não vem da compreensão intelectual, sei com minha alma
infantil, ridiculamente infantil, que Deus existe. Nada mais que isso. Ou
melhor, o que verdadeiramente me consola é saber que Ele sabe que eu existo.
Mas não peçam para provar coisa alguma.
Quando
o Rafael, meu aluno de 15 anos, me disse que não acreditava em Deus, me
provocando, chamando para um debate inútil, eu apenas lhe respondi: “Tem problema
não, Ele continua acreditando em você...”
Não
há nada mais inútil para a fé que as certezas. Se há certezas, não há espaço
para a fé, não há necessidade de fé. A fé só existe mesmo na escuridão. Sem
ela, sem o risco do passo em falso, da corda bamba, não há como haver essa
entrega gratuita, espontânea, infantil.
Por
isso, creio em Deus ao modo de criança; porque sim.
Não
me exijam argumentos, grandes elaborações intelectuais, fórmulas matemáticas,
comprovações da Física quântica, da Metafísica, das moléculas da água, das
considerações filosóficas. A minha fé não resistiria a tanta erudição.
Eu
creio em Deus, repito, ao modo de criança. Sinto em mim, em tudo que há em mim,
o seu amor silencioso, doce, terno, exigente, integrador. Um amor que não me
poupa das agruras do deserto, mas é força para a travessia. Um amor que, em
meio à sede ardente, sussurra em meus ouvidos, num eco, as palavras do Pequeno
Príncipe, de Exupéry:
“O
que torna belo o deserto é que ele esconde um poço, em algum lugar...”
Creio
num Deus assim, que é amor em mim. Porque SIM...
(Eduardo Machado, no
blog Estória das Histórias)