Um dos artigos que a revista IstoÉ [publicou dias atrás] (confira meus comentários aqui), intitulado “Deus chega às aulas de biologia”, assinado por Hélio Gomes, pretende ativar uma polêmica educacional, opondo ciência e religião. Talvez o título mais adequado fosse “Deus retorna à biologia”. De fato, o que se vê por parte de alguns movimentos religiosos estigmatizados como “fundamentalistas” (nem sempre o são...) é a reivindicação de uma concepção de ciência aberta à crença em Deus. Essa reivindicação não é nova. Pertence à mentalidade religiosa mais esclarecida e, em particular, ao pensamento católico no que tem de melhor, procurar congruências entre conhecimento racional e fé [na verdade, esse pensamento também pertenceu aos precursores da ciência, muitos dos quais eram protestantes devotos]. A doutrina do evolucionismo encarada como busca de uma explicação para “a origem do corpo humano em matéria viva preexistente”, segundo palavras do papa Pio 12 na encíclica Humani generis (1950), não cancela, em princípio, a convicção de que matéria e almas são criadas por Deus (heresia insuportável do ponto de vista ateu). [O dualismo alma-corpo é uma elaboração grega e não bíblica. Segundo o livro de Gênesis, Deus criou o ser humano como “alma vivente”, composto de pó da terra e fôlego de vida, e este não é um elemento independente do corpo. Quando um desses elementos falta, não existe alma vivente.]
Assim como a educação se desvirtua em mãos religiosas quando se torna instrumento de manipulação para fins escusos (pensemos nas escolas e universidades criadas pelo Opus Dei para capturar novos membros e influir nos meios de comunicação), a ciência também perde credibilidade quando se especializa em discurso combativo (e assustado) contra a religião.
No mesmo artigo da IstoÉ cita-se o biólogo inglês Richard Dawkins, militante ateu, que faz das suas convicções antirreligiosas a única conclusão possível de toda e qualquer pesquisa científica. Mas aí reside o perigo contrário ao da religião fechada às descobertas da ciência. Devemos estar atentos para não cair no fundamentalismo oposto, igualmente desumano e nocivo. Educação saudável repele fanatismos de todos os gêneros. Marcelo Gleiser, em artigo da Folha de S. Paulo (26/11/2006), fez o alerta oportuno:
“Para ele [Dawkins], a ciência é um clube fechado, onde só entram aqueles que seguem os preceitos do seu ateísmo, tão radical e intolerante quanto qualquer extremismo religioso. Dawkins prega a intolerância completa no que diz respeito à fé, exatamente a mesma intolerância a que se opõe.”
Pedagogicamente falando, deve-se garantir que, no contexto da educação laica, saibamos refletir (não para destruir, mas para valorar e valorizar) sobre as ideias e práticas religiosas presentes na sociedade e, por consequência, em nossas salas de aula. Seria irresponsabilidade da mídia extremar desavenças entre religião e ciência.
(Gabriel Perissé, Observatório da Imprensa)
Nota: Parabenizo ao Gabriel Perissé por ter a argúcia de perceber e a coragem de destacar (como poucos têm feito) que para alguns setores da mídia o que interessa mesmo é a polarização da discussão como sendo religião versus ciência, quando o assunto é mais complexo. Oportuna também é sua menção aos radicalismos e fundamentalismos que podem se manifestar entre teístas e naturalistas – posturas igualmente reprováveis.[MB]