terça-feira, maio 18, 2010

Título revelador (e preconceituoso)

A revista Veja sempre se mostra incondicionalmente contrária ao terrorismo praticado por militantes políticos, não importa seu verniz ideológico ou religioso - no que faz muito bem. Entretanto, o título escolhido para a entrevista com Mosab Hassan Yousef não comporta dubiedade: "O traidor do Hamas". Ora, a palavra "traidor" não encontra guarida hospitaleira em nenhum glossário ou cultura. Quem trai revela-se indigno da confiança a qual deveria honrar. É, pelos parâmetros humanos de simpatia, um canalha, um crápula, uma víbora. Na obra de Shakespeare, por exemplo, Brabâncio, pai de Desdêmona, que o abandonara para se casar com Otelo, adverte o cunhado: "Cuidado, Mouro! Se olhos tens, abre-os bem em toda a parte; se o pai ela enganou, pode enganar-te."

Eis até onde vai o estigma da traição: atormentado pela dúvida, Otelo, que antes se enternecia com o amor da esposa, que para segui-lo atirara à lama o próprio nome, agora vê nesse mesmo gesto uma deficiência gravíssima de caráter.

No Cristianismo, Judas Iscariotes é considerado o símbolo máximo de traição - mas ninguém chama Saulo de Tarso de traidor. Greta Garbo aproveitou-se de seu status de musa dos nazistas para sabotar os planos de Hitler. Ninguém, à exceção de filonazistas, lhe atribui o epíteto de traidora. O motivo é simples: quem renega e abandona o mal a fim de cooperar com o bem, é louvado e exaltado. Já quando atribuímos a alguém a pecha de traidor, subentende-se que nos solidarizamos com o atraiçoado.

Por que então Mosab Hassan Yousef é tratado como traidor por Duda Teixeira, se Veja é inegociavelmente contrária ao terrorismo? Respondo com outra pergunta: se Mosab não se houvesse convertido ao Cristianismo e apregoado aos brados as diferenças essenciais entre os textos sagrados das duas religiões (Bíblia e Corão), seria ele tratado como traidor por Veja? Mais: a revista trata Mosab como traidor ao mesmo tempo em que o resumo da reportagem destacado abaixo de sua foto é bem clara: "O filho do xeque palestino [...] diz que sua fonte de inspiração foi Jesus Cristo." Ou seja, a perfídia implicitamente associada ao rapaz é vinculada indiretamente ao Filho de Deus. Bom, se Cristo "roubou" o coração do jovem Yosef, Richard Dawkins (aquele arquétipo da mistura de Jezabel com Legião) certamente se apossou do coração de Duda Teixeira.

Vê-se assim para que charco descambou o secularismo teofóbico: em uma gradação de valores, o terrorismo é visto como vítima (pois foi traído) de uma religião "FUNDAMENTALISTAMENTE" pacifista, que roubou o coração de um de seus filhos.

(Marco Dourado, analista de sistemas formado pela UnB, com especialização em Administração em Banco de Dados)