domingo, maio 15, 2011

A cultura da decadência

Quando me perguntam o que acho de As Crônicas de Nárnia, deixando de lado a tremenda capacidade narrativa de C. S. Lewis e sua criatividade invejável, digo que a intenção do autor foi boa, já que ele quis transmitir a mensagem bíblica por meio de parábolas. Ocorre que a aventura e as mitologias entremeadas na história são tão empolgantes e destacadas que acabam por se sobrepor demais à intenção por trás da trama. As crônicas viram puro entretenimento – com batalhas épicas e muita magia – misturado com detalhes preocupantes. O livro é bom, bem escrito, mas biblicamente “diluído”, se posso dizer assim.

E o que dizer do ainda mais conhecido O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien? Lewis deixou de ser ateu e se tornou anglicano em grande parte devido à influência de pessoas como o católico Tolkien, amigo pessoal do professor de Oxford. O romance de Tolkien é bastante maniqueísta, com clara demarcação entre o bem e o mal. Mas, diferentemente do que ocorre em As Crônicas de Nárnia, não há intenção “evangelística” alguma na obra de Tolkien. Trata-se de uma aventura que mistura elementos das mitologias nórdica e germânica, num mundo imaginário (Terra Média) povoado de seres míticos como elfos, hobbits e magos.

O épico do momento é A Guerra dos Tronos, primeiro volume da série As Crônicas de Gelo e Fogo, escrito por George R. R. Martin. Chamou-me a atenção a matéria “Dez razões pelas quais A Guerra dos Tronos é (muito) melhor do que O Senhor dos Anéis”, publicada no site da revista Veja. Pelo tom bombástico do título, pensei: “Deve ser um romance muito, mas muito bem escrito; algo realmente grandioso para ser considerado tão melhor do que a obra de Tolkien.” Então fui conferir as tais dez razões pelas quais Veja considera A Guerra dos Tronos (muito) melhor do que O Senhor dos Anéis. Destaco três delas:

1. Os personagens transam, escarram, defecam e ficam de ressaca. “Enquanto Tolkien parece viver um platonismo cego, Martin leva o realismo às últimas consequências. As páginas transbordam de descrições vívidas de sexo e violência. Nas batalhas, há estupros e infanticídios. Nos castelos, prostitutas luxuriosas e banquetes cheios de gula. ‘Já era tempo de a fantasia crescer e se tornar adulta’, declarou o autor em entrevista a Veja.”

4. Martin não tem nenhum princípio. “O autor de Crônicas não está preocupado com leitores de estômago fraco. Tudo que é sujo e já existiu na humanidade está presente na trama: traição, incesto, prostituição, roubo, estupro, violência, crueldade, infanticídio, eutanásia, aborto. Pode pensar no que quiser de sórdido e moralmente questionável, estará lá.”

9. Há personagens para todos os gostos. “Os personagens vivem todo tipo de drama: da deficiência física à paixão incestuosa entre irmãos. Enquanto as criaturas de O Senhor dos Anéis são movidas por honra ou ódio, os moradores de Westeros respondem à chantagem, rancor, paixão, amor, luxúria, fidelidade, ambição e confusão – motivações muito mais próximas da realidade.”

Se As Crônicas de Gelo e Fogo é o melhor que temos em termos de literatura popular nesta primeira década do século 21, podemos considerar ótimo O Senhor dos Anéis e maravilhoso As Crônicas de Nárnia. Os valores morais estão em franca decadência, em todas as áreas. Isso me faz lembrar as palavras de um amigo que disse: “Você não concorda com o ‘ficar’, não é? Mas, se seu filho estiver ‘ficando’ com uma garota, considere-se feliz: é com uma garota...”

Chegamos a um tempo em que a opção ficou entre o péssimo e o menos pior. Preocupa pensar que dias piores virão.

Michelson Borges