Um salto de fé com razoabilidade |
Nesta vida, já me tentaram
convencer de algumas coisas. Como sou um indivíduo flexível e dado à abertura,
se princípios absolutos e inegociáveis não estiverem em jogo, mediante o ponto
de vista alheio cheguei a mudar de opinião, incorporando explicações sensatas e
coerentes de outras pessoas – explicações que faziam sentido. O contrário também já aconteceu: consegui influenciar
pessoas para que, por meio da reflexão, alterassem sua maneira de ver a
realidade. Mudar de opinião, quando necessário, é altamente benéfico; por isso,
sempre estarei disposto a mudar. Exceto numa questão pétrea e fundamental para
mim: a existência de Deus e a veracidade da fé cristã. Por causa desse
posicionamento, seria eu um “fundamentalista”, uma espécie de dogmático
incorrigível?
Por meio de debates, alguns
insistiram em me convencer de que o cristianismo é uma visão de mundo religiosa
equivocada, retrógrada, castradora, opressora, obscurantista e retardadora do
progresso e do conhecimento humanos! Por aí vão os adjetivos nada simpáticos...
Também quiseram me fazer acreditar que Deus não é o que eu penso que seja: o
Ser supremo eterno, pessoal, Criador transcendente do Universo e possuidor dos
paradoxais atributos descritos na Bíblia e evidenciados na vida de Jesus Cristo
– o Deus encarnado. Em vez disso, desfilaram perante mim ou um conceito de Deus
estranho à noção judaico-cristã, ou uma grosseira e folclórica caricatura dEle
e da religião, ou mesmo uma peremptória negação de Sua existência como fato
axiomático. Por meio de sutis e bem elaborados argumentos filosóficos e
científicos, mesclados com apelações retóricas, ou até mesmo fazendo uso do
deboche e da crítica rasteira ad hominem,
eis o estridente e enfático grito do racionalismo a me interpelar: “Não creia!”
No âmbito do ceticismo, que de tudo suspeita,
mostraram-me as mais variadas explicações para Deus e a religião. De Ludwig
Feuerbach e sua teoria da projeção ouvi: “O Deus encarnado é apenas o fenômeno
do homem endeusado”; “o mistério da teologia é a antropologia”; “o conhecimento
que o homem tem de Deus é apenas o autoconhecimento do homem, de sua própria
essência”; “o cristianismo não é mais adequado nem ao homem teórico nem ao
prático: não satisfaz mais o espírito nem o coração, pois o nosso coração se
interessa por coisas diferentes da eterna beatitude celeste. [...] Rejeita-se o
cristianismo; ele é rejeitado no espírito e no coração, na ciência e na vida,
na arte e na indústria; ele é negado radicalmente, sem escapatória,
irrevogavelmente, porque os próprios homens se apossaram do verdadeiro, do
humano, do antissagrado, de tal modo que do cristianismo foi tirada qualquer
capacidade de resistência. Até hoje a negação era inconsciente. Só agora está
se tornando uma atitude consciente, voluntária, diretamente desejável, e isso mais
ainda porque o cristianismo se confundiu com as forças que querem obstaculizar
essa que é a aspiração essencial da humanidade do nosso tempo, a aspiração à
liberdade política. A negação consciente lança os fundamentos de que uma nova
idade coloca a necessidade de uma filosofia, simples, não mais cristã, e até
decididamente anticristã.”
Do fundador da psicanálise,
Sigmund Freud, lançaram-me em rosto que Deus, fé e religião são representações
fantasiosas, contos de fadas ou, quando muito, elementos ilusórios
funcionalmente consoladores para os crédulos. Dessa forma, as crenças
religiosas seriam “realizações dos desejos mais antigos, mais fortes e mais
urgentes da humanidade; o segredo de sua força é a força desses desejos”. Para
o provocante ateísmo psicanalítico, “Deus é uma ilusão infantil e a religião
uma neurose obsessiva – uma questão meramente psicológica cuja gênese é
psíquica, mero resultado do “temor e medo do castigo e desejo de consolo”.
Simplista demais, não?
Aliado à concepção freudiana
da fé está o pressuposto darwinista da vida, fundado no acaso e elevado à
categoria de fato incontestável pelo evolucionismo – visão de mundo
totalizadora, cujas explicações impostas aos vários campos do saber apodreceram
e minaram a busca da humanidade pela sua verdadeira origem. O naturalismo
ontológico teima em não reconhecer as fortes evidências de um Criador e as
marcas de desígnio e propósito impressas no mundo natural. Para as mentes
secularizadas, sobrenaturalidade, teleologia e criacionismo são caminhos interpretativos
indefensáveis; foram banidos, mortos e sepultados, existindo apenas na forma de
fantasmas que um dia assombraram o pensamento humano. É preciso afugentá-los
pelo esclarecimento e a razão científica, adverte a voz do materialismo.
Consequentemente, Deus foi exilado, proscrito do cenário cultural e apagado da
paisagem, sobrevivendo apenas como mito teológico. Não sem resistência,
claro.
Segundo Gustavo Bernardo,
doutor em Literatura Comparada, “os ateus diriam que Deus sempre foi uma
ficção. Aliás, ateu que se preza não gosta muito de ser chamado de ateu,
preferindo a expressão ‘não crente’. O termo ‘ateu’ sugere a descrença apenas
em um deus, enquanto o termo ‘não crente’ engloba a descrença em deuses,
super-heróis, fadas do dente, duendes de jardim, amigos imaginários e,
naturalmente, no Papai Noel. Para o não crente, Deus é apenas um
super-hiper-amigo-imaginário. Dentre os não crentes, alguns concedem que esse
super-hiper-amigo-imaginário seja uma ficção necessária para a maioria, enquanto
outros o entendem como uma ficção não só desnecessária como também perniciosa”.
Feuerbach, Freud, Marx,
Nietzsche, Sartre, Madalyn O’Hair, Daniel Dennett, Sam Harris, Christopher
Hitchens, André Comte-Sponville e outros pensadores e pensadoras, do passado e
do presente, de diferentes maneiras (sofisticadas ou agressivas), entregaram-se
a um combate intelectual e emocional contra a fé e o cristianismo, convencidos
de que, como resumiu Richard Dawkins, “crer em Deus é acreditar num amigo
imaginário”. Explicações tardias e recicladas do “grupo do contra” (de natureza
sociológica, psicológica, filosófica, antropológica, histórica ou mesmo
teológica) são abundantes e insistem em desconstruir o milenar conhecimento de
Deus, erguido no decorrer dos séculos de história humana.
Particularmente, eu aposto
em outras explicações mais convincentes e não fictícias; contudo, não irei
expô-las aqui pois penso que detalhes intelectuais, apesar de importantes e
válidos, são apenas a ponta do iceberg em toda essa controvérsia acerca do
divino. Crendo ou negando, tratar Deus por meio de proposições e argumentos
racionais significa tangenciá-Lo e, consequentemente, coisificá-Lo, reduzindo-O
à limitada e falível linguagem humana, a um mero discurso permeado de
abstrações. Deus encontra-Se muito além dos nossos jogos linguísticos; se
falamos sobre Ele – e devemos falar – só o fazemos de forma muito precária e
incompleta. Na linguagem do Salmo 97:2, “nuvens e escuridão estão ao redor
dEle”; por isso, os argumentos humanos, pró ou contra, jamais O alcançaram no
sentido de defendê-Lo ou negá-Lo. Sendo assim, “prová-Lo” sempre será um ato de
fé experimental, o resultado de se deixar levar pelo “argumento do risco” – uma
sensata aposta, conforme defendeu o notável filósofo e matemático cristão
Blaise Pascal.
A bem conhecida e
controversa, a “aposta de Pascal”, apresentada nos Pensées – e amiúde mal compreendida por crentes e ateus que
procuram se utilizar dela em seus embates –, continua uma abordagem existencial
interessante acerca da possibilidade vantajosa do teísmo. Não é estritamente
uma profissão de fé; tampouco uma tese comprobatória da existência do Deus
cristão, mas “um argumento ad hominem.
Baseia-se este no cálculo de probabilidade. [...] Não podemos provar a
existência de Deus com certeza, mas podemos apostar e tomar partido enquanto
sua existência ou não existência podem ser proveitosas ou não para a felicidade
nossa neste e no outro mundo. [...] Pelo cálculo da probabilidade devemos
avaliar os riscos de ganhar ou perder. A razão não pode decidir se existe Deus
ou não, pois entre nós e Deus há distância infinita. Por isso, apostemos cara
ou coroa, a favor da existência de Deus. Se ganhamos, ganhamos tudo. Se
perdemos, nada perdemos. Portanto, é racional apostar e correr o risco de nos
equivocarmos numa aposta em que temos todas as probabilidades de ganhar e
nenhuma de perder”, frisou Urbano Zilles, professor de Teologia e Filosofia.
Pascal coloca o homem cético
na parede, interrogando-o e apelando: “Qual será a tua aposta? A razão não pode
fazer-te escolher nenhuma delas, a razão não pode provar que qualquer uma das
duas esteja errada... Sim, mas deves apostar. Não há escolha, já estás
comprometido. Qual escolherás então? Vejamos: já que uma escolha deve ser
feita, vejamos qual te oferece o menor interesse. Tens duas coisas a perder: o
verdadeiro e o bom; e duas coisas a apostar: tua razão e tua vontade, teu
conhecimento e tua felicidade; e tua natureza tem duas coisas a evitar: erro e
desgraça. [...] Examinemos o ganho e a perda envolvidos em apostar ‘cara’, que
Deus existe. Estimemos os dois casos: se ganhares, ganharás tudo, se perderes
não perderás nada. Então não hesita; aposta que Ele existe...”
Para não julgarmos mal
Pascal, achando que ele era um tipo de apostador fideísta, é oportuno citar uma
declaração de sua lavra que equilibra bem o posicionamento do filósofo no
tocante à razão e à fé: “É preciso saber duvidar quando necessário, afirmar
quando necessário. Quem assim não faz, não entende a força da razão. Há os que
pecam contra esses três princípios, ou afirmando tudo como demonstrativo, por
falta de conhecimento em demonstrações; ou duvidando de tudo, por não saberem
quando é preciso submeter-se; ou submetendo-se a tudo, por ignorarem quando é
preciso julgar.”
No pensamento pascaliano,
diferentemente das polarizações e dicotomias artificialmente criadas, há um
entrelaçamento harmonioso entre razão e fé, cada uma ocupando um espaço
significativo e relevante dentro das pessoas. Tal entrelaçamento permite-nos
decidir com segurança quando somos confrontados com as grandes incertezas da
vida. Talvez, para muitos, a maior das incertezas seja esta: Deus existe? Numa crítica a Descartes, pergunta Pascal:
“Que fará, pois, o homem nesse estado? Duvidará de tudo? Duvidará que desperta,
que o beliscam, que o queimam? Duvidará que duvida? Duvidará que existe? Não
podemos chegar a este ponto; tenho, como fato, que nunca houve pirronismo
efetivo perfeito. A natureza sustenta a razão impotente e impede que extravague
até este ponto.” No entendimento de Pascal, a resposta para o impasse da
existência de Deus não poderia ser estritamente racional: “A razão não pode
decidir essa questão”, dizia ele.
Muitos debates filosóficos
foram travados em torno da aposta de Pascal. Mesmo em seu tempo, século 17,
havia críticos severos do seu pensamento, que o acusaram injustamente de
fideísta. Hoje, igualmente, de ambos os lados da questão, há quem o critique e
quem o elogie. Pessoalmente, eu simpatizo com a “aposta”, porquanto, para mim,
o risco de se crer no Deus cristão não corresponde a uma atitude irresponsável
e ingenuamente crédula. Significa ponderar as evidências acumuladas em todas as
áreas e experiências da vida para, então, decidir seguramente sobre a
possibilidade real da transcendência. Isso requer tempo, culminando num ato
final de vontade. Acho que o filósofo da religião Richard Swinburne concordaria
comigo. Ele também argumenta: “Há uma vantagem probabilística significativa a
favor da existência de Deus. Se a aceitarmos, isso significa que temos certos
deveres. [...] Uma grande gratidão em relação a Deus é mais que apropriada.
Devemos exprimi-la no culto e na tentativa de alcançar os Seus propósitos – o
que compreende, como um passo preliminar, certo esforço para descobrir que
propósitos são esses. [...] Mas Deus nos respeita; não nos forçará a essas
coisas – podemos escolher procurá-las ou não. Se as procurarmos, há obstáculos
óbvios neste mundo à sua prossecução. Os obstáculos são necessários, em parte
para assegurar que o nosso comprometimento é genuíno. Mas a seu tempo haverá
razões para que Deus remova esses obstáculos – para permitir que nos tornemos
as pessoas boas que procuramos ser, para nos dar a visão de Si mesmo – para
sempre.”
Costuma-se dizer que o
intuito da Aposta “é oferecer razões práticas para cultivar uma crença em
Deus”. A apologética pascaliana fortalece a fé cristã? Eu afirmo que, numa
sequência de argumentos, a Aposta encontra-se na extremidade, como o último
recurso teísta de convencimento. Em suma, faz sentido apostar em Deus?
Pessoalmente, respondo que sim! E não foi só Blaise Pascal quem me convenceu
disso. Existem inúmeros indicadores que apontam positivamente para a solidez e
confiabilidade do cristianismo e para o Deus revelado nas Escrituras, defendido
por Pascal até a morte. Basta ser um bom observador, desprovido de preconceitos
e antipatias, para reconhecer a racionalidade e as coerentes justificativas da
fé. Basta ter pensamentos um pouco mais profundos para perceber que o
conhecimento de Deus é possível e enriquecedor.
Como teísta, estou certo de duas coisas: primeiro, do fato de
que “não vos fizemos saber o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo,
seguindo fábulas artificialmente compostas” (2 Pedro 1:16). Segundo, Deus não
precisa que o ser humano O defenda nos moldes do debate; contudo, Ele não
impede que o façamos num clima de respeito, ética e tolerância. Melhor mesmo é
proclamá-Lo, sobretudo em nossa forma de viver. Nesse sentido, eu recolho meus
argumentos e saio da arena de discussão contenciosa. Eu simplesmente aposto
nEle, cada dia, convicto das vantagens que me advirão no tempo presente e na
eternidade.
(Frank de Souza
Mangabeira, membro da Igreja Adventista do Bairro Siqueira Campos, Aracaju, SE;
servidor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe)