Cena da novela da Record |
“Não
posso ficar mais nem um minuto sem te amar”, diz Moisés (Guilherme Winter) à
sua mulher, Zípora (Giselle Itié), em dado momento do último capítulo de “Os Dez Mandamentos”. Bater a Globo na luta pela audiência foi um milagre menor perto
dessa fusão inusitada de letra de sertanejo universitário com hebraico bíblico
que caracterizou a novela da Record. De fato, fora o tema épico-religioso, é
impressionante como “Os Dez Mandamentos” assumiu totalmente sua natureza “tropicalizada”,
com diálogos que não ficariam fora de lugar em qualquer outra novela brasileira
- o que não é necessariamente uma coisa boa. Outro exemplo: “É impressionante
como esses hebreus sabem realizar uma festa. Você dá a eles uma lima-da-pérsia
e eles fazem um refresco saboroso.” Ai!
Eu
disse “último capítulo”? Da primeira parte da novela, já que “Os Dez
Mandamentos” volta no ano que vem. A primeira fase da trama acabou num momento
de suspense, com Moisés confrontando os israelitas pela adoração ao Bezerro de
Ouro, ato de idolatria proibido por Deus.
A
cena do culto ao ídolo bovino, aliás, foi um dos desvios mais significativos da
novela em relação à Bíblia. No Antigo Testamento, o culto ao Bezerro de Ouro é
liderado por Arão, irmão de Moisés. No folhetim da Record, esse papel é assumido
por Apuki (Heitor Martinez), egípcio que se uniu aos fugitivos hebreus – Arão
(Petrônio Gontijo) só topa com muita relutância o plano de criar o ídolo. [Na
verdade, isso é verdade, em parte.]
A
ideia faz sentido se a intenção é manter Arão como “mocinho” na novela, mas um
dos pontos centrais do texto bíblico é justamente o fato de que os israelitas
são sempre figuras falíveis, que não conseguem mostrar total fidelidade a Deus.
O
mais esquisito é que, mesmo após as brutais escorregadas no tom e nas
interpretações, a cena em que a voz de Deus falou a todos os israelitas,
recitando os dez mandamentos, teve algo de transcendente.
O
porquê desse impacto é difícil de explicar com precisão, embora ele talvez se
deva, em parte, à sábia decisão de reproduzir praticamente na íntegra o texto
original da legislação divina. Por alguns minutos preciosos, os hebreus
cenográficos deixaram de lado a canastrice e pareciam mesmo estar diante de um poder
avassalador e inescrutável.
Conclusão
provisória: nem a enrolação e a simplificação dramática que caracterizam a
nossa tradição noveleira são capazes de estragar completamente a força da
narrativa bíblica.
Giselle Itié no papel de Zípora, esposa de Moisés |
(Reinaldo José Lopes, Folha.com)