terça-feira, novembro 24, 2015

“Sertanejo hebraico” caracterizou “Os Dez Mandamentos”

Cena da novela da Record
“Não posso ficar mais nem um minuto sem te amar”, diz Moisés (Guilherme Winter) à sua mulher, Zípora (Giselle Itié), em dado momento do último capítulo de “Os Dez Mandamentos”. Bater a Globo na luta pela audiência foi um milagre menor perto dessa fusão inusitada de letra de sertanejo universitário com hebraico bíblico que caracterizou a novela da Record. De fato, fora o tema épico-religioso, é impressionante como “Os Dez Mandamentos” assumiu totalmente sua natureza “tropicalizada”, com diálogos que não ficariam fora de lugar em qualquer outra novela brasileira - o que não é necessariamente uma coisa boa. Outro exemplo: “É impressionante como esses hebreus sabem realizar uma festa. Você dá a eles uma lima-da-pérsia e eles fazem um refresco saboroso.” Ai!

Eu disse “último capítulo”? Da primeira parte da novela, já que “Os Dez Mandamentos” volta no ano que vem. A primeira fase da trama acabou num momento de suspense, com Moisés confrontando os israelitas pela adoração ao Bezerro de Ouro, ato de idolatria proibido por Deus.

A cena do culto ao ídolo bovino, aliás, foi um dos desvios mais significativos da novela em relação à Bíblia. No Antigo Testamento, o culto ao Bezerro de Ouro é liderado por Arão, irmão de Moisés. No folhetim da Record, esse papel é assumido por Apuki (Heitor Martinez), egípcio que se uniu aos fugitivos hebreus – Arão (Petrônio Gontijo) só topa com muita relutância o plano de criar o ídolo. [Na verdade, isso é verdade, em parte.]

A ideia faz sentido se a intenção é manter Arão como “mocinho” na novela, mas um dos pontos centrais do texto bíblico é justamente o fato de que os israelitas são sempre figuras falíveis, que não conseguem mostrar total fidelidade a Deus.

O mais esquisito é que, mesmo após as brutais escorregadas no tom e nas interpretações, a cena em que a voz de Deus falou a todos os israelitas, recitando os dez mandamentos, teve algo de transcendente.

O porquê desse impacto é difícil de explicar com precisão, embora ele talvez se deva, em parte, à sábia decisão de reproduzir praticamente na íntegra o texto original da legislação divina. Por alguns minutos preciosos, os hebreus cenográficos deixaram de lado a canastrice e pareciam mesmo estar diante de um poder avassalador e inescrutável.

Conclusão provisória: nem a enrolação e a simplificação dramática que caracterizam a nossa tradição noveleira são capazes de estragar completamente a força da narrativa bíblica.

Giselle Itié no papel de Zípora, esposa de Moisés

(Reinaldo José Lopes, Folha.com)