terça-feira, novembro 03, 2015

Revista Superinteressante ataca fé cristã (de novo)

Embora a revista Veja seja considerada por muitos um dos bastiões da imprensa contra o comunismo e a favor dos conservadores, sua editora, a Abril, também é responsável pela Superinteressante. Desde seu surgimento [leia aqui], na era da comunicação pré-internet, a publicação foi responsável por trazer uma série de informações que dificilmente eram encontradas fora de livros especializados. O foco da Superinteressante sempre foi abordar assuntos mais complexos em linguagem fácil e acessível. Contudo, nos últimos anos, a revista tem feito uma série de reportagens que visam a “desmistificar” a Bíblia e atacar as crenças do cristianismo. Neste ano, duas capas geraram contrariedade no meio evangélico. Em setembro, o foco foi o chamado “Extremismo evangélico”. A capa exibia uma Bíblia coberta de sangue e a chamada dizia: “Veja como os fundamentalistas ameaçam as liberdades individuais – e o próprio futuro das igrejas.” No miolo, reportagens tentando dizer que todos os que defendem os preceitos da Bíblia são extremistas e têm sede de sangue, assim como os que corromperam os ensinamentos e se tornaram “inclusivos” em relação aos gays são os únicos que refletem o “amor”.

A edição que chega às bancas na próxima semana também promete uma série de distorções. Possivelmente por causa do sucesso da novela “Os Dez Mandamentos”, da Rede Record, os editores da Superinteressante dedicam a matéria de capa ao tema. Mas os primeiros anúncios mostram o tom do texto: “Como um rei megalomaníaco, muita geopolítica e uma farsa de proporções bíblicas criaram a saga de Moisés – o herói que foi sem nunca ter sido”, é a chamada divulgada nas redes sociais.

Um dos autores do material é o jornalista Reinaldo José Lopes, que mantém o blog “Darwin e Deus”, onde procura constantemente mostrar como questões de fé podem ser explicadas pela ciência. A Veja também já publicou material que atacava diretamente os ensinos de Jesus, além de questionar Sua existência. Mas as matérias da Superinteressante são bem mais incisivas.

Curiosamente, quando a Super dedicou capas para falar do islamismo, o tom foi bem menos crítico. “Os fundamentalistas são ínfima minoria no Islã, mas, com ações de grande repercussão, acertam em cheio os corações de milhares de muçulmanos com baixa autoestima – a causa antiocidental resgata a tão machucada identidade islâmica. Mas há também fundamentalistas islâmicos pacifistas e eles são a maioria”, dizia o texto do primeiro número dedicado ao assunto.

Em fevereiro de 2015, a matéria de capa abordava a vida de Maomé, o fundador do Islamismo. O texto é quase todo só de louvores ao Islã: “Uma religião humanitária, que, ao propor uma sociedade menos desigual e mais aberta ao diálogo, encarnou muito do que a humanidade tem de melhor. Que meia dúzia de psicopatas não acabem com esse legado.”

Com quase 40 marcas, que atingem 23 milhões de assinantes semanalmente (sem contar as edições digitais), o que faz com que a maior editora de revistas do Brasil ataque os relatos bíblicos e defenda os do Alcorão?

(Gospel Prime)

Nota do arqueólogo Luiz Gustavo Assis: “Nocautear a superficial compreensão bíblica da maioria dos evangélicos é fácil. E isso se torna verdade quando a maioria desse público conhece a minissérie ‘Os Dez Mandamentos’, da Rede Record, melhor do que a história bíblica. Se esse era o público que os autores da matéria de capa da última edição da Superinteressante queriam nocautear, eles conseguiram. Porém, o páreo seria diferente se eles desafiassem a visão de outro grupo de cristãos, especialistas em Antigo Testamento e em línguas e culturas do Antigo Oriente Médio.

“O primeiro é meu ex-professor James K. Hoffmeier, egiptólogo formado pela Universidade de Toronto, no Canadá. Dois dos seus livros lidam diretamente com o assunto: Israel in Egypt (1996) e Ancient Israel in Sinai (2005), ambos publicados pela Oxford University Press. Sua mais recente publicação é sobre o faraó Akhenten e as origens do monoteísmo, também publicada pela Oxford. Além de professor de Antigo Testamento, Hoffmeier leciona Egípcio Antigo há mais de 30 anos, o que lhe permite falar naturalmente sobre condições políticas, econômicas e militares do período do Reino Novo do Egito (Dinastias 18-20), a época em que a Bíblia situa o Êxodo. Aliás, a consulta de um egiptólogo para o preparo da matéria teria sido bem-vinda. Os articulistas afirmam que o nome ‘Moisés’ está relacionado com a palavra egípcia msézs, ‘filhos de’. Desconheço qualquer transliteração do hieróglifo ms como msézs. A convenção tradicional entre egiptólogos é inserir um ‘e’ entre a maioria das consoantes. Não só isso, mas é muito provável que Moshe (a versão hebraica do seu nome) não seja um nome de origem egípcia. O egípcio s se torna samekh (s) em Hebraico, não sh, e o samekh (s) hebraico se torna o egípcio tj. O nome dado por sua mãe muito provavelmente era vocalizado Mashu (‘aquele que é tirado’, cf. Êx 2:10) e veio a se tornar Moshe (‘aquele que tira’ [seu povo da escravidão]). No 14º/13º séculos a.C., Mashu era pronunciado Masu no Egito. Não se trata de etimologia, mas, sim, da forma como um nome é pronunciado em outra língua.  

O egiptólogo James K. Hoffmeier

“Outro acadêmico que é autoridade no assunto é Kenneth Kitchen, respeitado egiptólogo aposentado da Universidade de Liverpool, na Inglaterra. Seu domínio em mais de 15 línguas do Antigo Oriente lhe permite falar como poucos sobre o dia a dia das cortes, dos templos e fortes militares durante a Idade do Bronze e do Ferro. Ele, inclusive, aprendeu português com a única finalidade de publicar o texto dos monumentos (estelas) de Ramsés II que estão no Museu do Rio de Janeiro, já que ele é uma respeitada autoridade no período Ramessida (e no complexo Terceiro Período Intermediário do Egito). Kitchen escreveu muito sobre Moisés, Êxodo, conquista de Canaã e o contexto geopolítico do Antigo Oriente no 2º milênio a.C. Sua contribuição ajudaria em muito na matéria.   

“Ambos, Hoffmeier e Kitchen, são cristãos, mas não usam suas publicações para converter pessoas ao cristianismo ou provar que a Bíblia é inspirada, mas, sim, para apresentar uma visão equilibrada sobre o mundo do Antigo Oriente e as páginas do relato bíblico. Ambos creem num ‘Moisés histórico’, que viveu entre os séculos 15 e 13 a.C. e que liderou um grupo de escravos para fora do Egito.  

“Se você deseja explorar mais o assunto, dê uma olhada nos artigos acadêmicos de James Hoffmeier: http://tiu.academia.edu/JamesHoffmeier Ele não é um pseudointelectual querendo usar a arqueologia para ‘provar’ a Bíblia, como alguns charlatões costumam fazer (sendo o mais famoso o falecido Ron Wyatt). Adicione nessa lista de acadêmicos do Antigo Oriente que são cristãos e muito respeitados no meio secular nomes como Richard Averbeck, K. Lawson Younger, Daniel Block, Alan Millard, Richard Hess, John Monson, Gary Rendsburg, entre outros.

“Não pretendo responder ponto por ponto da matéria, apenas fazer algumas perguntas e em cima delas fazer minhas considerações. Tópicos levantados como o monoteísmo ‘inédito’ criado por Josias mereceriam uma resposta maior, algo que estou sem condições de escrever. Basta dizer que a própria história egípcia abre um precedente para o monoteísmo ainda no 2º milênio a.C., com Akhenaten. Além disso, os autores do Antigo Testamento jamais negaram a inclinação natural dos israelitas para o politeísmo. Oséias, Amós, Elias e outros profetas denunciaram as práticas idólatras dos seus contemporâneos, práticas essas que são corroboradas por inúmeros achados arqueológicos. Quanto ao incidente do bezerro de ouro, no Sinai, ao contrário do que os articulistas dizem, existe um pano de fundo egípcio muito forte naquela narrativa (cf. Êx 32). Não há necessidade de projetar o incidente para os bezerros de ouro que o primeiro rei de Israel, Jeroboão colocou em Betel e Dã, as fronteiras do seu reino, isso no 10º século a.C. (1Rs 12:28). Diga-se de passagem, Jeroboão havia recém-voltado do seu período de asilo político no Egito (1Rs 11:40). Os israelitas sempre tiveram um coração dividido entre Yahweh e os deuses das nações vizinhas. Isso não é novidade para um leitor atento do texto bíblico.
  
“Existem três teorias para a origem de Israel em Canaã: (1) o modelo bíblico da ‘conquista’, como numa leitura equivocada e exagerada do livro de Josué; (2) tribos nômades entrando naquele território pela região da Transjordânia, a região à direita do rio Jordão; e (3) a que afirma que Israel nunca saiu da ‘Terra Prometida’, eles se originaram e se desenvolveram lá. Boa parte dos acadêmicos bíblicos na atualidade aceita essa última posição. 

“Se Israel se originou em Canaã e não de uma saída em massa do Antigo Egito (sobre a quantidade de israelitas no Êxodo, clique aqui), por que diversos elementos da religião israelita tinham um curioso reflexo da religião egípcia? O tabernáculo no deserto (Êx 25–40), que segundo os articulistas da matéria é um elemento lendário na narrativa do Êxodo, segue o mesmo modelo da tenda de Ramsés II em suas campanhas militares, especialmente contra os Hititas, em Qadesh, na Síria, e os utensílios desse tabernáculo portátil, tais como a arca da aliança, o candelabro, o altar de incenso, as cortinas, entre outros, têm uma clara influência egípcia, tanto na sua forma como no vocabulário utilizado na sua descrição. A descrição do tabernáculo israelita faz sentido quando colocada no fim do período do Bronze (13º século a.C.), não na época de Josias, na Idade do Ferro (7º século a.C.). Aliás, como seria possível para um grupo de sacerdotes levitas vivendo em Jerusalém, na metade do 7º século a.C., produzir textos que refletem íntimo conhecimento da geografia do delta do Nilo e da Península do Sinai, no 2º milênio a.C.?

A tenda de Ramsés II

“Se o livro de Deuteronômio foi escrito no 7º século a.C. por um grupo de sacerdotes levitas vivendo em Jerusalém, como explicar a semelhança da estrutura desse livro com tratados diplomáticos que povos do Antigo Oriente Médio estavam usando por volta de 1300 a.C.? Os tratados diplomáticos e alianças políticas dos hititas, por exemplo, era composto das seguintes partes: Título, Prólogo histórico, Estipulações, Depósito do texto e sua leitura, Testemunhas, Maldições, Bênçãos.

“O quinto livro do Pentateuco segue exatamente essa estrutura, com uma ligeira alteração na ordem das bênçãos e maldições. 

“Título (Dt 1:1-5: ‘Estas são as palavras que Moisés falou... dizendo’), Prólogo histórico (Dt 1:6-3:29: ‘Yahweh, nosso Deus, falou conosco dizendo (relato do Êxodo, do Sinai a Moabe), Estipulações (Intro: Dt 4; Básicas: Dt 5; Específicas: Dt 6-11; 12-26), Depósito e leitura do texto (Dt 31:9, 24-26; leitura que deveria ser feita a cada sete anos: 31:9-13), Testemunhas (Dt 31:19-22, 26), Bênçãos (Dt 28:1-14 - obediência), Maldições (Dt 28:15-68 - desobediência).    

“Na época do rei Josias, no 7º século a.C., o estilo de tratados diplomáticos era bem diferente do que esse mencionado acima. O tratado do rei assírio Esarhaddon, que viveu algumas décadas antes de Josias, era simplesmente composto da seguinte forma: (1) Título; (2) Testemunhas; (3) Estipulações; (4) Maldições. Com qual estrutura Deuteronômio mais se assemelha? Com a do 13º século ou com a do 7º século a.C.?

“Indo além, como explicar a semelhança da estrutura de Deuteronômio com tratados do império hitita, que nessa época era um perigo real e imediato para os egípcios? Para isso é preciso encontrar um indivíduo de fala hebraica que tenha experimentado o dia a dia da corte egípcia no Delta (em Pi-Ramesse) e tenha tido acesso a esse tipo de documentação lá. Soa familiar? Mesmo se Moisés não tivesse existido seria necessário criar um personagem idêntico a ele para explicar tais semelhanças. Não há alternativa.   

“Se Israel se originou em Canaã, por que vemos a proibição do porco na dieta israelita (Lv 11), algo facilmente verificável em restos arqueológicos em Israel, enquanto que seus vizinhos filisteus tinham carne suína (e canina) como parte fundamental de sua dieta? Porcos eram considerados impuros no Antigo Egito, e até mesmo chamados de bw, abominar, detestar, ou bwt, abominação.

“Se o livro de Josué foi escrito na época de Josias, como a última parte da matéria afirma, como é que seu autor (ou autores) conheciam importantes detalhes geográficos e políticos da terra de Canaã por volta do 13º século a.C.? Ele (ou eles) sabia, por exemplo, que Hazor era a principal cidade daquele território (cf. Js 11:10), algo totalmente diferente da realidade do 7º século a.C. Por falar em Hazor, que ficava no norte de Israel e cujas ruínas podem ser visitadas por qualquer turista hoje, ela foi severamente destruída com fogo no 13º século a.C. Essa é justamente a data em que o relato bíblico coloca a ‘conquista’ de Canaã, e Hazor foi uma das cidades incendiadas por Josué e suas milícias. Para Amnon Ben-Tor, o responsável pelas escavações em Hazor por diversas temporadas, foram os israelitas que a destruíram. 

“Ainda sobre o livro de Josué, a estrutura dos 11 primeiros capítulos dessa obra é muito parecida com a estrutura dos anais militares do faraó Thutmoses III, no 15º século a.C. O que é mais fácil de acreditar: que sacerdotes que viviam em Jerusalém no 7º século a.C. criaram aquela narrativa do nada ou que uma tradição egípcia de se registrar campanhas militares do 2º milênio a.C. influenciou escribas israelitas na composição de boa parte do livro de Josué?

“Essas e outras perguntas poderiam muito bem ter sido abordadas de forma mais equilibrada pelos autores dessa matéria da Superinteressante.” 

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