Embora
a revista Veja seja considerada por
muitos um dos bastiões da imprensa contra o comunismo e a favor dos
conservadores, sua editora, a Abril, também é responsável pela Superinteressante. Desde seu surgimento
[leia aqui], na era da comunicação pré-internet, a publicação foi responsável por trazer
uma série de informações que dificilmente eram encontradas fora de livros
especializados. O foco da Superinteressante
sempre foi abordar assuntos mais complexos em linguagem fácil e acessível.
Contudo, nos últimos anos, a revista tem feito uma série de reportagens que
visam a “desmistificar” a Bíblia e atacar as crenças do cristianismo. Neste ano,
duas capas geraram contrariedade no meio evangélico. Em setembro, o foco foi o
chamado “Extremismo evangélico”. A capa exibia uma Bíblia coberta de sangue e a
chamada dizia: “Veja como os fundamentalistas ameaçam as liberdades individuais
– e o próprio futuro das igrejas.” No miolo, reportagens tentando dizer que
todos os que defendem os preceitos da Bíblia são extremistas e têm sede de
sangue, assim como os que corromperam os ensinamentos e se tornaram
“inclusivos” em relação aos gays são os únicos que refletem o “amor”.
A
edição que chega às bancas na próxima semana também promete uma série de
distorções. Possivelmente por causa do sucesso da novela “Os Dez Mandamentos”, da Rede Record, os editores da Superinteressante
dedicam a matéria de capa ao tema. Mas os primeiros anúncios mostram o tom do
texto: “Como um rei megalomaníaco, muita geopolítica e uma farsa de proporções
bíblicas criaram a saga de Moisés – o herói que foi sem nunca ter sido”, é a
chamada divulgada nas redes sociais.
Um
dos autores do material é o jornalista Reinaldo José Lopes, que mantém o blog “Darwin e Deus”, onde procura constantemente mostrar como
questões de fé podem ser explicadas pela ciência. A Veja também já publicou material que atacava diretamente os ensinos
de Jesus, além de questionar Sua existência. Mas as matérias da Superinteressante são bem mais
incisivas.
Curiosamente, quando
a Super dedicou capas para falar do
islamismo, o tom foi bem menos crítico. “Os fundamentalistas são ínfima minoria
no Islã, mas, com ações de grande repercussão, acertam em cheio os corações de
milhares de muçulmanos com baixa autoestima – a causa antiocidental resgata a
tão machucada identidade islâmica. Mas há também fundamentalistas islâmicos
pacifistas e eles são a maioria”, dizia o texto do primeiro número dedicado ao
assunto.
Em
fevereiro de 2015, a matéria de capa abordava a vida de Maomé, o fundador
do Islamismo. O texto é quase todo só de louvores ao Islã: “Uma religião
humanitária, que, ao propor uma sociedade menos desigual e mais aberta ao
diálogo, encarnou muito do que a humanidade tem de melhor. Que meia dúzia de
psicopatas não acabem com esse legado.”
Com
quase 40 marcas, que atingem 23 milhões de assinantes semanalmente (sem contar
as edições digitais), o que faz com que a maior editora de revistas do Brasil
ataque os relatos bíblicos e defenda os do Alcorão?
(Gospel Prime)
Nota do arqueólogo Luiz Gustavo Assis: “Nocautear a superficial compreensão bíblica da maioria dos evangélicos é fácil. E isso se torna verdade quando a maioria desse público conhece a minissérie ‘Os Dez Mandamentos’, da Rede Record, melhor do que a história bíblica. Se esse era o público que os autores da matéria de capa da última edição da Superinteressante queriam nocautear, eles conseguiram. Porém, o páreo seria diferente se eles desafiassem a visão de outro grupo de cristãos, especialistas em Antigo Testamento e em línguas e culturas do Antigo Oriente Médio.
“Outro acadêmico que é autoridade no assunto é Kenneth Kitchen, respeitado egiptólogo aposentado da Universidade de Liverpool, na Inglaterra. Seu domínio em mais de 15 línguas do Antigo Oriente lhe permite falar como poucos sobre o dia a dia das cortes, dos templos e fortes militares durante a Idade do Bronze e do Ferro. Ele, inclusive, aprendeu português com a única finalidade de publicar o texto dos monumentos (estelas) de Ramsés II que estão no Museu do Rio de Janeiro, já que ele é uma respeitada autoridade no período Ramessida (e no complexo Terceiro Período Intermediário do Egito). Kitchen escreveu muito sobre Moisés, Êxodo, conquista de Canaã e o contexto geopolítico do Antigo Oriente no 2º milênio a.C. Sua contribuição ajudaria em muito na matéria.
“Se o livro de Deuteronômio foi escrito no 7º século a.C. por um grupo de sacerdotes levitas vivendo em Jerusalém, como explicar a semelhança da estrutura desse livro com tratados diplomáticos que povos do Antigo Oriente Médio estavam usando por volta de 1300 a.C.? Os tratados diplomáticos e alianças políticas dos hititas, por exemplo, era composto das seguintes partes: Título, Prólogo histórico, Estipulações, Depósito do texto e sua leitura, Testemunhas, Maldições, Bênçãos.
Nota do arqueólogo Luiz Gustavo Assis: “Nocautear a superficial compreensão bíblica da maioria dos evangélicos é fácil. E isso se torna verdade quando a maioria desse público conhece a minissérie ‘Os Dez Mandamentos’, da Rede Record, melhor do que a história bíblica. Se esse era o público que os autores da matéria de capa da última edição da Superinteressante queriam nocautear, eles conseguiram. Porém, o páreo seria diferente se eles desafiassem a visão de outro grupo de cristãos, especialistas em Antigo Testamento e em línguas e culturas do Antigo Oriente Médio.
“O primeiro é meu ex-professor James K. Hoffmeier, egiptólogo formado
pela Universidade de Toronto, no Canadá. Dois dos seus livros lidam diretamente
com o assunto: Israel in Egypt (1996)
e Ancient Israel in Sinai (2005),
ambos publicados pela Oxford University Press. Sua mais recente publicação é sobre
o faraó Akhenten e as origens do monoteísmo, também publicada pela Oxford. Além
de professor de Antigo Testamento, Hoffmeier leciona Egípcio Antigo há mais de
30 anos, o que lhe permite falar naturalmente sobre condições políticas, econômicas
e militares do período do Reino Novo do Egito (Dinastias 18-20), a época em que
a Bíblia situa o Êxodo. Aliás, a consulta de um egiptólogo para o preparo da
matéria teria sido bem-vinda. Os articulistas afirmam que o nome ‘Moisés’ está
relacionado com a palavra egípcia msézs,
‘filhos de’. Desconheço qualquer transliteração do hieróglifo ms como msézs. A convenção tradicional entre egiptólogos é inserir um ‘e’
entre a maioria das consoantes. Não só isso, mas é muito provável que Moshe (a versão hebraica do seu nome) não
seja um nome de origem egípcia. O egípcio s
se torna samekh (s) em Hebraico, não sh, e o samekh (s) hebraico se torna o egípcio tj. O nome dado por sua mãe muito provavelmente era vocalizado Mashu (‘aquele que é tirado’, cf. Êx
2:10) e veio a se tornar Moshe (‘aquele
que tira’ [seu povo da escravidão]). No 14º/13º séculos a.C., Mashu era pronunciado Masu no Egito. Não se trata de
etimologia, mas, sim, da forma como um nome é pronunciado em outra língua.
O egiptólogo James K. Hoffmeier |
“Outro acadêmico que é autoridade no assunto é Kenneth Kitchen, respeitado egiptólogo aposentado da Universidade de Liverpool, na Inglaterra. Seu domínio em mais de 15 línguas do Antigo Oriente lhe permite falar como poucos sobre o dia a dia das cortes, dos templos e fortes militares durante a Idade do Bronze e do Ferro. Ele, inclusive, aprendeu português com a única finalidade de publicar o texto dos monumentos (estelas) de Ramsés II que estão no Museu do Rio de Janeiro, já que ele é uma respeitada autoridade no período Ramessida (e no complexo Terceiro Período Intermediário do Egito). Kitchen escreveu muito sobre Moisés, Êxodo, conquista de Canaã e o contexto geopolítico do Antigo Oriente no 2º milênio a.C. Sua contribuição ajudaria em muito na matéria.
“Ambos, Hoffmeier e Kitchen, são cristãos, mas não usam suas publicações
para converter pessoas ao cristianismo ou provar que a Bíblia é inspirada, mas,
sim, para apresentar uma visão equilibrada sobre o mundo do Antigo Oriente e as
páginas do relato bíblico. Ambos creem num ‘Moisés histórico’, que viveu entre
os séculos 15 e 13 a.C. e que liderou um grupo de escravos para fora do
Egito.
“Se você deseja explorar mais o assunto, dê uma olhada nos artigos acadêmicos
de James Hoffmeier: http://tiu.academia.edu/JamesHoffmeier
Ele não é um pseudointelectual querendo usar a arqueologia para ‘provar’ a Bíblia,
como alguns charlatões costumam fazer (sendo o mais famoso o falecido Ron Wyatt).
Adicione nessa lista de acadêmicos do Antigo Oriente que são cristãos e muito
respeitados no meio secular nomes como Richard Averbeck, K. Lawson Younger,
Daniel Block, Alan Millard, Richard Hess, John Monson, Gary Rendsburg, entre
outros.
“Não pretendo responder ponto por ponto da matéria, apenas fazer algumas
perguntas e em cima delas fazer minhas considerações. Tópicos levantados como o
monoteísmo ‘inédito’ criado por Josias mereceriam uma resposta maior, algo que
estou sem condições de escrever. Basta dizer que a própria história egípcia
abre um precedente para o monoteísmo ainda no 2º milênio a.C., com Akhenaten.
Além disso, os autores do Antigo Testamento jamais negaram a inclinação natural
dos israelitas para o politeísmo. Oséias, Amós, Elias e outros profetas
denunciaram as práticas idólatras dos seus contemporâneos, práticas essas que são
corroboradas por inúmeros achados arqueológicos. Quanto ao incidente do bezerro
de ouro, no Sinai, ao contrário do que os articulistas dizem, existe um pano de
fundo egípcio muito forte naquela narrativa (cf. Êx 32). Não há necessidade de
projetar o incidente para os bezerros de ouro que o primeiro rei de Israel,
Jeroboão colocou em Betel e Dã, as fronteiras do seu reino, isso no 10º século
a.C. (1Rs 12:28). Diga-se de passagem, Jeroboão havia recém-voltado do seu período
de asilo político no Egito (1Rs 11:40). Os israelitas sempre tiveram um coração
dividido entre Yahweh e os deuses das nações vizinhas. Isso não é novidade para
um leitor atento do texto bíblico.
“Existem três teorias para a origem de Israel em Canaã: (1) o modelo bíblico
da ‘conquista’, como numa leitura equivocada e exagerada do livro de Josué; (2)
tribos nômades entrando naquele território pela região da Transjordânia, a região
à direita do rio Jordão; e (3) a que afirma que Israel nunca saiu da ‘Terra Prometida’,
eles se originaram e se desenvolveram lá. Boa parte dos acadêmicos bíblicos na
atualidade aceita essa última posição.
“Se Israel se originou em Canaã e não de uma saída em massa do Antigo
Egito (sobre a quantidade de israelitas no Êxodo, clique aqui), por que diversos elementos da religião israelita tinham um curioso
reflexo da religião egípcia? O tabernáculo no deserto (Êx 25–40), que segundo os
articulistas da matéria é um elemento lendário na narrativa do Êxodo, segue o
mesmo modelo da tenda de Ramsés II em suas campanhas militares, especialmente
contra os Hititas, em Qadesh, na Síria, e os utensílios desse tabernáculo portátil,
tais como a arca da aliança, o candelabro, o altar de incenso, as cortinas,
entre outros, têm uma clara influência egípcia, tanto na sua forma como no
vocabulário utilizado na sua descrição. A descrição do tabernáculo israelita
faz sentido quando colocada no fim do período do Bronze (13º século a.C.), não
na época de Josias, na Idade do Ferro (7º século a.C.). Aliás, como seria possível
para um grupo de sacerdotes levitas vivendo em Jerusalém, na metade do 7º século
a.C., produzir textos que refletem íntimo conhecimento da geografia do delta do
Nilo e da Península do Sinai, no 2º milênio a.C.?
A tenda de Ramsés II |
“Se o livro de Deuteronômio foi escrito no 7º século a.C. por um grupo de sacerdotes levitas vivendo em Jerusalém, como explicar a semelhança da estrutura desse livro com tratados diplomáticos que povos do Antigo Oriente Médio estavam usando por volta de 1300 a.C.? Os tratados diplomáticos e alianças políticas dos hititas, por exemplo, era composto das seguintes partes: Título, Prólogo histórico, Estipulações, Depósito do texto e sua leitura, Testemunhas, Maldições, Bênçãos.
“O quinto livro do Pentateuco segue exatamente essa estrutura, com uma
ligeira alteração na ordem das bênçãos e maldições.
“Título (Dt 1:1-5: ‘Estas são as palavras que Moisés falou... dizendo’),
Prólogo histórico (Dt 1:6-3:29: ‘Yahweh, nosso Deus, falou conosco dizendo
(relato do Êxodo, do Sinai a Moabe), Estipulações (Intro: Dt 4; Básicas: Dt 5;
Específicas: Dt 6-11; 12-26), Depósito e leitura do texto (Dt 31:9, 24-26;
leitura que deveria ser feita a cada sete anos: 31:9-13), Testemunhas (Dt
31:19-22, 26), Bênçãos (Dt 28:1-14 - obediência), Maldições (Dt 28:15-68 - desobediência).
“Na época do rei Josias, no 7º século a.C., o estilo de tratados diplomáticos
era bem diferente do que esse mencionado acima. O tratado do rei assírio
Esarhaddon, que viveu algumas décadas antes de Josias, era simplesmente
composto da seguinte forma: (1) Título; (2) Testemunhas; (3) Estipulações; (4)
Maldições. Com qual estrutura Deuteronômio mais se assemelha? Com a do 13º século
ou com a do 7º século a.C.?
“Indo além, como explicar a semelhança da estrutura de Deuteronômio com
tratados do império hitita, que nessa época era um perigo real e imediato para
os egípcios? Para isso é preciso encontrar um indivíduo de fala hebraica que
tenha experimentado o dia a dia da corte egípcia no Delta (em Pi-Ramesse) e
tenha tido acesso a esse tipo de documentação lá. Soa familiar? Mesmo se Moisés
não tivesse existido seria necessário criar um personagem idêntico a ele para
explicar tais semelhanças. Não há alternativa.
“Se Israel se originou em Canaã, por que vemos a proibição do porco na
dieta israelita (Lv 11), algo facilmente verificável em restos arqueológicos em
Israel, enquanto que seus vizinhos filisteus tinham carne suína (e canina) como
parte fundamental de sua dieta? Porcos eram considerados impuros no Antigo
Egito, e até mesmo chamados de bw,
abominar, detestar, ou bwt, abominação.
“Se o livro de Josué foi escrito na época de Josias, como a última parte
da matéria afirma, como é que seu autor (ou autores) conheciam importantes
detalhes geográficos e políticos da terra de Canaã por volta do 13º século
a.C.? Ele (ou eles) sabia, por exemplo, que Hazor era a principal cidade
daquele território (cf. Js 11:10), algo totalmente diferente da realidade do 7º
século a.C. Por falar em Hazor, que ficava no norte de Israel e cujas ruínas
podem ser visitadas por qualquer turista hoje, ela foi severamente destruída
com fogo no 13º século a.C. Essa é justamente a data em que o relato bíblico
coloca a ‘conquista’ de Canaã, e Hazor foi uma das cidades incendiadas por Josué
e suas milícias. Para Amnon Ben-Tor, o responsável pelas escavações em Hazor
por diversas temporadas, foram os israelitas que a destruíram.
“Ainda sobre o livro de Josué, a estrutura dos 11 primeiros capítulos
dessa obra é muito parecida com a estrutura dos anais militares do faraó Thutmoses
III, no 15º século a.C. O que é mais fácil de acreditar: que sacerdotes que
viviam em Jerusalém no 7º século a.C. criaram aquela narrativa do nada ou que
uma tradição egípcia de se registrar campanhas militares do 2º milênio a.C.
influenciou escribas israelitas na composição de boa parte do livro de Josué?