O personagem da ficção |
O
cirurgião Curtis Connors perdeu o braço direito na guerra devido aos ferimentos
causados por uma explosão. Quem conhece o universo dos super-heróis sabe o que
se seguiu. Obcecado pela capacidade regenerativa dos répteis, o cientista usou
em si um soro de DNA réptil para fazer voltar a crescer o membro. O braço se regenerou.
Mas Connors transformou-se no Lagarto, um vilão que persegue o Homem-Aranha
desde 1963. Essa criação da Marvel é um produto do seu tempo. A descoberta da
molécula de DNA, fundamental para a genética, tinha então dez anos. O soro do
lagarto é uma apropriação fantasiosa do conceito, em que o DNA do réptil daria
a capacidade de regenerar um membro perdido.
Uma
descoberta vem agora dar uma reviravolta nesse tema. Uma equipe de cientistas
identificou a regeneração de membros em fósseis de animais com quase 300
milhões de anos [de acordo com a cronologia evolucionista], segundo um estudo publicado
na revista Nature. Para os
cientistas, pode ter restado um vestígio desse mecanismo molecular de
regeneração no DNA de todos os tetrápodes, o grupo de animais em que estão anfíbios,
répteis, aves e mamíferos.
Os
humanos conseguem reconstruir o fígado se ele for parcialmente destruído. Para
isso, há multiplicação das células e uma organização precisa dos vários tecidos
que compõem aquele órgão. É uma obra complexa. Mesmo assim, o novo fígado não
recupera a antiga forma. Algo que é fulcral na regeneração de um membro: um
braço depende da sua forma para ser um braço. E, uma vez perdidos, um braço ou
uma perna ficam perdidos para sempre.
Mas
a natureza está aí para mostrar alternativas. As lagartixas – os répteis que
podem ter inspirado o vilão Lagarto – perdem facilmente a cauda quando são
apanhadas por um predador. E volta a crescer não uma cauda, mas uma pseudocauda:
continua a cumprir uma função de equilíbrio, mas a arquitetura interna é
diferente, pois, em vez de haver uma coluna vertebral, forma-se cartilagem.
A
verdadeira capacidade de regeneração cabe às salamandras e aos tritões: os
únicos tetrápodes que voltam a reconstruir uma cauda ou uma pata com todos os
tecidos internos. Esses animais pertencem à família Salamandridae e não
são répteis, são anfíbios, como os sapos e as rãs (no fundo, o vilão Lagarto
deveria ser, afinal, um maléfico tritão). Como mais nenhum tetrápode vivo tem
essa capacidade, a visão clássica da biologia defendia que essa característica
tinha surgido apenas na evolução dos Salamandridae.
O
novo trabalho publicado na Nature contradiz
essa perspectiva. A equipe de pesquisadores do Instituto para a Evolução e para
a Ciência da Biodiversidade de Leibniz, na Alemanha, foi estudar fósseis de
tetrápodes que viveram há cerca de 300 milhões de anos [sic], 80 milhões de
anos [sic] antes de as salamandras surgirem no registo fóssil.
“Os
fósseis usados no nosso estudo representam membros de diferentes grupos de
anfíbios da era Paleozoica”, diz ao Público
Nadia Fröbisch, uma das autoras do trabalho. A equipe estudou espécies de Temnospondyli,
entre as quais está um antepassado antigo das salamandras, e espécies de Lepospondyli,
um grupo que está mais próximo dos amniotas – os tetrápodes completamente
terrestres, que [supostamente] deram origem aos répteis, aos mamíferos e às
aves.
Olhando
para aqueles fósseis, a equipe encontrou características semelhantes às que se
encontram nos membros regenerados das salamandras e dos tritões. “Quando [nas
salamandras] o membro foi muito dilacerado ou a cicatrização da ferida não
correu bem, o membro regenerado mostra uma combinação de patologias que é muito
característica. Encontramos esse tipo de patologias num dos Temnospondyli”,
explica Nadia Fröbisch.
Por
outro lado, nas espécies de Lepospondyli estudadas, os cientistas
notaram marcas de regeneração ao compararem a pata traseira esquerda com a pata
traseira direita. “Num dos lados, os ossos dos membros estão bem diferenciados
e ossificados de acordo com o estágio de desenvolvimento de todo o fóssil, mas
do outro lado só os ossos da perna junto ao tronco estão bem desenvolvidos,
enquanto os ossos mais distantes se encontram mais imaturos, indicando que estão
em regeneração”, acrescenta a cientista.
(Público)
Nota:
Nenhuma palavra sobre a complexa bioquímica envolvida no processo da
regeneração e sobre como esse mecanismo ultracomplexo já poderia estar
disponível centenas de milhões de anos atrás... Como sempre tenho dito aqui:
complexidade pode ser observada de alto a baixo na coluna geológica. A vida já “surge”
complexa. Os trilobitas do Cambriano que o digam. Sobre a regeneração, “as estratégias regenerativas incluem
o rearranjo de tecido pré-existente, o uso de células-tronco somáticas adultas
e a desdiferenciação e/ou transdiferenciação de células, e mais de uma maneira
que se pode operar em diferentes tecidos do mesmo animal. Todas essas
estratégias resultam no restabelecimento da polaridade, estrutura e forma
apropriadas do tecido. Durante o processo de desenvolvimento, genes são
ativados e servem para modificar as propriedades da célula à medida que elas se
diferenciam de células em um blastema. A desdiferenciação de células
significa que elas perdem suas características específicas do tecido assim como
remodelam o tecido durante o processo de regeneração. Transdiferenciação de
células é quando elas perdem as características específicas do tecido durante o
processo de regeneração, e então se rediferenciam em um tipo específico de
célula” (Wikipédia). Tudo isso (e muito mais) já estava funcionando lá no
começo! [MB]