terça-feira, novembro 03, 2015

A capacidade de regeneração é bem antiga

O personagem da ficção
O cirurgião Curtis Connors perdeu o braço direito na guerra devido aos ferimentos causados por uma explosão. Quem conhece o universo dos super-heróis sabe o que se seguiu. Obcecado pela capacidade regenerativa dos répteis, o cientista usou em si um soro de DNA réptil para fazer voltar a crescer o membro. O braço se regenerou. Mas Connors transformou-se no Lagarto, um vilão que persegue o Homem-Aranha desde 1963. Essa criação da Marvel é um produto do seu tempo. A descoberta da molécula de DNA, fundamental para a genética, tinha então dez anos. O soro do lagarto é uma apropriação fantasiosa do conceito, em que o DNA do réptil daria a capacidade de regenerar um membro perdido.

Uma descoberta vem agora dar uma reviravolta nesse tema. Uma equipe de cientistas identificou a regeneração de membros em fósseis de animais com quase 300 milhões de anos [de acordo com a cronologia evolucionista], segundo um estudo publicado na revista Nature. Para os cientistas, pode ter restado um vestígio desse mecanismo molecular de regeneração no DNA de todos os tetrápodes, o grupo de animais em que estão anfíbios, répteis, aves e mamíferos.

Os humanos conseguem reconstruir o fígado se ele for parcialmente destruído. Para isso, há multiplicação das células e uma organização precisa dos vários tecidos que compõem aquele órgão. É uma obra complexa. Mesmo assim, o novo fígado não recupera a antiga forma. Algo que é fulcral na regeneração de um membro: um braço depende da sua forma para ser um braço. E, uma vez perdidos, um braço ou uma perna ficam perdidos para sempre.

Mas a natureza está aí para mostrar alternativas. As lagartixas – os répteis que podem ter inspirado o vilão Lagarto – perdem facilmente a cauda quando são apanhadas por um predador. E volta a crescer não uma cauda, mas uma pseudocauda: continua a cumprir uma função de equilíbrio, mas a arquitetura interna é diferente, pois, em vez de haver uma coluna vertebral, forma-se cartilagem.

A verdadeira capacidade de regeneração cabe às salamandras e aos tritões: os únicos tetrápodes que voltam a reconstruir uma cauda ou uma pata com todos os tecidos internos. Esses animais pertencem à família Salamandridae e não são répteis, são anfíbios, como os sapos e as rãs (no fundo, o vilão Lagarto deveria ser, afinal, um maléfico tritão). Como mais nenhum tetrápode vivo tem essa capacidade, a visão clássica da biologia defendia que essa característica tinha surgido apenas na evolução dos Salamandridae.

O novo trabalho publicado na Nature contradiz essa perspectiva. A equipe de pesquisadores do Instituto para a Evolução e para a Ciência da Biodiversidade de Leibniz, na Alemanha, foi estudar fósseis de tetrápodes que viveram há cerca de 300 milhões de anos [sic], 80 milhões de anos [sic] antes de as salamandras surgirem no registo fóssil.

“Os fósseis usados no nosso estudo representam membros de diferentes grupos de anfíbios da era Paleozoica”, diz ao Público Nadia Fröbisch, uma das autoras do trabalho. A equipe estudou espécies de Temnospondyli, entre as quais está um antepassado antigo das salamandras, e espécies de Lepospondyli, um grupo que está mais próximo dos amniotas – os tetrápodes completamente terrestres, que [supostamente] deram origem aos répteis, aos mamíferos e às aves.

Olhando para aqueles fósseis, a equipe encontrou características semelhantes às que se encontram nos membros regenerados das salamandras e dos tritões. “Quando [nas salamandras] o membro foi muito dilacerado ou a cicatrização da ferida não correu bem, o membro regenerado mostra uma combinação de patologias que é muito característica. Encontramos esse tipo de patologias num dos Temnospondyli”, explica Nadia Fröbisch.

Por outro lado, nas espécies de Lepospondyli estudadas, os cientistas notaram marcas de regeneração ao compararem a pata traseira esquerda com a pata traseira direita. “Num dos lados, os ossos dos membros estão bem diferenciados e ossificados de acordo com o estágio de desenvolvimento de todo o fóssil, mas do outro lado só os ossos da perna junto ao tronco estão bem desenvolvidos, enquanto os ossos mais distantes se encontram mais imaturos, indicando que estão em regeneração”, acrescenta a cientista.


Nota: Nenhuma palavra sobre a complexa bioquímica envolvida no processo da regeneração e sobre como esse mecanismo ultracomplexo já poderia estar disponível centenas de milhões de anos atrás... Como sempre tenho dito aqui: complexidade pode ser observada de alto a baixo na coluna geológica. A vida já “surge” complexa. Os trilobitas do Cambriano que o digam. Sobre a regeneração, “as estratégias regenerativas incluem o rearranjo de tecido pré-existente, o uso de células-tronco somáticas adultas e a desdiferenciação e/ou transdiferenciação de células, e mais de uma maneira que se pode operar em diferentes tecidos do mesmo animal. Todas essas estratégias resultam no restabelecimento da polaridade, estrutura e forma apropriadas do tecido. Durante o processo de desenvolvimento, genes são ativados e servem para modificar as propriedades da célula à medida que elas se diferenciam de células em um blastema. A desdiferenciação de células significa que elas perdem suas características específicas do tecido assim como remodelam o tecido durante o processo de regeneração. Transdiferenciação de células é quando elas perdem as características específicas do tecido durante o processo de regeneração, e então se rediferenciam em um tipo específico de célula” (Wikipédia). Tudo isso (e muito mais) já estava funcionando lá no começo! [MB]