O medo acelera decisões |
Evidentemente
era para ser uma pegadinha. No sábado (14), na emissora de televisão CBS, o
mediador do debate entre os aspirantes à candidatura democrata para a eleição
presidencial americana perguntou a Bernie Sanders se ele continuava acreditando
que o aquecimento global era “a ameaça mais importante à segurança dos Estados
Unidos”, como ele havia declarado algumas semanas antes. A pergunta era quase
retórica. Na véspera, Paris havia sido coberta pelo sangue de atentados
terroristas de uma brutalidade inédita na França, e a “urgência climática”
parecia desde então relegada a uma questão vagamente secundária. No entanto,
Sanders respondeu que ele mantinha “totalmente” sua opinião. Na verdade, a
mudança climática estaria diretamente ligada ao aumento da ameaça terrorista [...],
ele explicou. “Se não ouvirmos o que os cientistas nos dizem, veremos países no
mundo inteiro – como diz a CIA – brigando pelo acesso à água, pelo acesso às
terras aráveis, e veremos surgir todo tipo de conflito.”
Traçar
uma ligação entre segurança e aquecimento global é motivo de riso para algumas
pessoas. No entanto, essa associação é uma certeza, e uma certeza
suficientemente incômoda para ser sistematicamente esquecida e regularmente
redescoberta.
Em
março de 2008, o alto representante da União Europeia para Relações Exteriores
e Política de Segurança transmitiu aos Estados-membros um relatório inequívoco
sobre o assunto. Sete anos depois, não há como não constatar seu caráter
premonitório. O texto avaliava que o aquecimento agia como um multiplicador de
ameaças “em zonas que já passam por tensões sociais, políticas, religiosas e
étnicas”.
“No
futuro as mudanças climáticas poderão ter consequências sobre a estabilidade
social e política no Oriente Médio e no norte da África”, detalhava o
relatório, que apontava “as tensões ligadas à gestão dos recursos hídricos do
vale do Jordão e da bacia do Tigre e do Eufrates, que estão rareando” e o
agravamento dessas tensões pelo aumento das temperaturas.
Ele
também enfatizava “um aumento sensível da população do Magreb e do Sahel” ao
longo dos próximos anos que, combinado com o aquecimento global e a diminuição
das superfícies agrícolas, poderia acarretar uma “desestabilização política” e “aumentar
as pressões migratórias”. O mesmo alerta valeria para o Iêmen.
Quase
todas as zonas identificadas em 2008 como as mais sensíveis ao aquecimento
global – desde a Mesopotâmia até o Levante, passando pelo Iêmen, Sahel e norte
da África – mergulharam sete anos depois em instabilidade ou caos, um caos que
teve como monstruoso rebento os atentados de Paris.
O
caso da Síria foi, em especial, objeto de diversos estudos, que pesquisavam o
papel do clima na situação atual. Francesca de Châtel (Universidade Radboud de
Nijmegen, na Holanda), especialista em questões de gestão hídrica no Oriente
Médio, traçou uma crônica perturbadora sobre o país, publicada em janeiro de
2014 na revista Middle Eastern Studies.
O cenário combina um pesadelo ambiental com uma negligência quase que total do
governo sírio na gestão de suas consequências.
Entre
2007 e 2010, reforçada pelo aquecimento global, uma seca de gravidade jamais
vista desde o início das medições meteorológicas se instalou na região. A ONU
estima que 1,3 milhão de sírios estejam sendo afetados por ela. Em 2008, pela
primeira vez em sua história, a Síria teve de importar trigo. No ano seguinte,
mais de 300 mil agricultores desertaram o nordeste do país por não conseguirem
prosseguir com suas atividades, pois não somente não tem chovido, como um
grande número de lençóis freáticos sobre-explorados desde os anos 1980
secaram... Em 2010, 17% da população síria se encontrava em situação de
insegurança alimentar.
É
claro, os determinantes ambientais não invalidam em nada os outros que costumam
ser apontados, sejam eles religiosos, políticos, étnicos, etc. Mas o papel
deles é claro: como pensar que a destruição parcial da produção primária de um
país pode não ter efeito nenhum sobre sua estabilidade e a segurança de seus
vizinhos?
Em
um estudo publicado em maio no Journal of
Development Economics, Matthias Flückiger e Markus Ludwig, da Universidade
da Basileia, na Suíça, fizeram uma ilustração extraordinária dessa associação
entre meio ambiente e segurança. Os dois economistas analisaram os dados
relativos aos atos de pirataria ao largo de uma centena de países, e à
abundância de plâncton nas mesmas águas. Segundo seus cálculos, quando a
quantidade de plâncton cai 10%, o número de atos de pirataria aumenta o mesmo
tanto...
Por
ser estranha às nossas referências habituais, essa correlação pode surpreender,
mas ela não é tão espantosa assim. O plâncton, que é afetado pelo aquecimento
das águas, forma a base da cadeia alimentar marinha. Quando ele começa a
faltar, a pesca sofre. Os pescadores se veem então com barcos que não servem
mais para pescar, e então vão atrás de alguma outra atividade que lhes permita
compensar, a pirataria sendo uma delas.
A
organização Estado Islâmico (EI), ao atacar Paris, mudou as
prioridades da agenda política. A decisiva conferência sobre o clima que deve
ter início no dia 30 de novembro na capital francesa passou para segundo plano.
É uma má notícia para o combate ao aquecimento global. Já para o EI e todos
aqueles que prosperam com o desespero dos mais pobres, é uma formidável
vitória.
(UOL Notícias, via Le
Monde)
Nota:
A associação entre os dois maiores medos atuais da humanidade (o aquecimento
global e o terrorismo) pode acelerar ainda mais as decisões no sentido de (1)
reduzir as emissões dos gases de efeito estufa (e é bom lembrar que o papa
Francisco sugere o descanso dominical como um dos esforços nessa direção) e (2) ampliar a vigilância sobre os chamados
fundamentalistas (algo que o papa também sugeriu em sua passagem pelos EUA). As decisões que forem tomadas na próxima conferência sobre o clima (e em
outros fóruns e instâncias) podem ter repercussões negativas para grupos que
nada têm que ver com os terroristas islâmicos... [MB]