Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni, além de
ser um gênio das artes, pintor, escultor e arquiteto florentino, certamente
foi um mestre anatomista. Segundo Giorgio Vasari, primeiro biógrafo desse
renomado artista, ele começou a dissecar cadáveres do cemitério da igreja
quando tinha cerca de 17 anos, mas esse era um segredo que ele
escondia, destruindo quase todos os seus esboços e anotações anatômicas,
restando apenas algumas representações de anatomia musculoesquelética ou
topográfica. Ainda de acordo com Vasari, Michelangelo teria aprendido
muito sobre anatomia com um dos principais anatomistas do Renascimento, Matteo
Realdo Colombo (de 1516 a 1559), tendo em vista que era um conhecido íntimo do
artista renascentista. Silvio Goren, restaurador argentino e autor do livro Los Mensajes Ocultos de Miguel Ángel en el Vaticano, argumenta ainda que ele
poderia ter adquirido muito conhecimento, também, durante seus encontros com
Leonardo Da Vinci, outro artista que era grande conhecedor de neuroanatomia.
Nesse sentido, é razoável supor que, dado seu grande potencial
intelectual, sua intensa curiosidade, e considerando suas numerosas dissecações, ele
tenha adquirido uma compreensão sofisticada de anatomia macroscópica.
O que ninguém esperava, no entanto, é que esse
gênio das artes pudesse ter ocultado estruturas anatômicas em uma de suas obras
mais impressionantes: a pintura do famoso teto da Capela Sistina. É de fato
muito curioso saber que, mesmo sendo foco contínuo de observação dos amantes de
belas obras, tanto leigos quanto profissionais, os detalhes mais intrigantes de
seu magnífico trabalho passaram despercebidos por aproximadamente 500
anos!
Michelangelo pintou a referida capela romana por
volta de 1509, sendo ao total nove painéis centrais (cinco pequenos
painéis alternando com quatro grandes) que retratam a história cronológica da
criação do mundo através da história de Adão e Eva até a história de Noé.
Porém, na década de 1990, o médico ginecologista Dr. Frank Lynn Meshberger
percebeu que a famosa obra continha outra arte, ainda mais surpreendente,
especialmente por ter sido “invisível” aos olhos de grandes especialistas
por séculos. Afinal, quem poderia imaginar que existia um “Código Buonarroti”?
Em um artigo provocativo, Meshberger apresentou o
argumento surpreendente, mas convincente, de que na Criação de Adão (o primeiro
e sem dúvida o mais famoso dos últimos quatro painéis), Michelangelo ilustrou (na
forma cor-de-rosa em torno de Deus, que se assemelha a um vestido esvoaçante ou
às nuvens de glória) uma imagem do cérebro humano com suas artérias, glândulas
e nervos ópticos, visto em seu corte transversal (conforme
ilustração).
Para Meshberger, a representação desse órgão
do sistema nervoso central humano sugere que Deus estava dotando Adão não
apenas de vida, mas especialmente de inteligência suprema. A descoberta dividiu
opiniões no meio das artes e da ciência, levando muitos pesquisadores a buscar
uma “outra leitura” em toda a obra, buscando outras possíveis ilustrações “ocultas”.
O incrível é que outros pesquisadores chegaram à
mesma conclusão, como o Dr. Douglas Fields, especialista em sistema nervoso e
professor na Universidade de Stanford, que publicou um artigo divulgado também
pela Scientific American em 2010. Silvio
Goren indica que na imagem vemos um anjo triste, curiosamente a única expressão
de tristeza que aparece em toda a abóboda da capela, e o mais intrigante é
que essa imagem está localizada justamente na região cerebral que é
ativada quando um indivíduo tem um pensamento triste.
Em maio de 2010 os pesquisadores e especialistas em
neurocirurgia Ian Suk e Rafael Tamargo, da Universidade de Medicina John
Hopkins (EUA), publicaram na revista Neurosurgery
outra descoberta. Desvendaram mais figuras anatômicas “secretas”, dessa vez em
outra cena: “A Separação da Luz da Escuridão”, importante painel na iconografia
da Capela Sistina, porque retrata o início da Criação e por estar localizado
diretamente acima do altar.
No pescoço de Deus, formando sua garganta, os
especialistas perceberam uma representação precisa de uma visão ventral do
tronco cerebral humano (figura A),
e no centro do peito dEle a medula espinal (figura B). Dado que o tronco cerebral é uma estrutura cônica,
Michelangelo “escondeu-o” no espaço anterior do pescoço, cuja configuração é
semelhante. Com isso, o tronco cerebral ficou próximo à sua posição anatômica
natural, como se fosse possível observá-lo através das estruturas do pescoço.
Essa perspectiva oblíqua e ventral mostra não apenas a perícia anatômica de
Michelangelo, mas também parece basear-se em sua realização anterior de
representar uma visão sagital mais direta do cérebro na “Criação de Adão”.
Outro ponto observado pelos
pesquisadores nesse mesmo cenário é que Michelangelo foi habilmente perito na
representação realista das dobras na roupa de seus personagens, deixando
evidente uma anomalia presente no centro do manto de Deus (figura D). É essa estrutura, uma visão ventral
similarmente oblíqua da medula espinhal cervicotorácica, que é representada
como uma continuação deslocada da medula inferior no pescoço de Deus.
Essa conclusão se baseia na comparação entre as
imagens dos quatro painéis da criação. A estrutura da linha média não está presente nas três
representações anteriores de Deus no conjunto de quatro painéis: A. Criação de Adão; B. Separação de Terra e Águas; C. Criação do Sol e da Lua; D. Separação da Luz da Escuridão.
Finalmente, abaixo da
cintura de Deus há uma estrutura peculiar, em forma de Y, que aparenta estar “fora
de lugar”, e não seguindo as outras dobras no manto de Deus. Essa
estrutura poderia perfeitamente ser uma alusão ao quiasma óptico e aos nervos
ópticos. Da Vinci ilustrou o aparato óptico como uma estrutura em forma de Y em
1487, 21 anos antes de Michelangelo iniciar seu trabalho no teto da Capela
Sistina. Ao se cruzarem sob a faixa de Deus, os nervos
ópticos parecem dar origem a massas globulares sutis e bilaterais nas regiões
subcostais de Deus, possivelmente representações dos globos ópticos.
Michelangelo poderia estar particularmente interessado em incluir os órgãos da
visão e suas estruturas neurais na “Separação da Luz da Escuridão”.
Figura A: desenho de Leonardo da Vinci (1487) representando os nervos
ópticos cobrindo os globos e convergindo para o quiasma óptico como uma estrutura
em forma de Y. Michelangelo, que por último entrou em contato próximo com
Leonardo em Florença, de 1503 a 1505, antes de começar a pintar a Capela
Sistina, em 1508, provavelmente imaginou o aparato óptico como uma estrutura em
forma de Y. Figura B: visão oculta do quiasma
óptico, nervos ópticos e globos em “Separação da Luz da Escuridão”.
Na pesquisa os
autores reconhecem a problemática de se interpretar “excessivamente” uma
obra-prima como “A Separação da
Luz das Trevas”, de Michelangelo, entretanto, eles sugerem fortemente que as “incongruências
anatômicas” desse afresco não são acidentais.
A afirmação
de Meshberger de que Michelangelo ilustrou uma visão do cérebro
na “Criação de Adão” é
convincente e parece estar ganhando apoio entre os historiadores da arte.
Na história da
arte, verifica-se uma escassez de opiniões que permanecem indiscutíveis, e a
maioria é sustentada por evidências circunstanciais ou simplesmente pela
análise cumulativa de observadores, porque os artistas não publicam seus
trabalhos com um texto explicativo.
É inquestionável
que o escultor renascentista realizou diversas dissecações de cadáveres e que
ele tinha um imenso fascínio pela anatomia humana.
O artigo é
finalizado com a forte ideia de que Michelangelo, além de suas incríveis
habilidades artísticas e do grande domínio da anatomia humana, era um homem
profundamente religioso, que soube ocultar com maestria imagens precisas do cérebro
humano, deixando evidente seu intuito de exaltar a glória de Deus, e também sua
magnífica criação.
(Liziane Nunes Conrad Costa é formada em Ciências Biológicas com ênfase em Biotecnologia
[UNIPAR], especialista em Morfofisiologia Animal [UFLA] e mestranda em
Biociências e Saúde [UNIOESTE]. É diretora-presidente do Núcleo cascavelense da
SCB [Nuvel-SCB])
Fonte:
SUK, Ian; TAMARGO, Rafael
J. Concealed neuroanatomy in Michelangelo’s separation of light from darkness
in the Sistine Chapel. Neurosurgery,
v. 66, n. 5, p. 851-861, 2010.
https://doi.org/10.1227/01.NEU.0000368101.34523.E1
Nota: Indubitavelmente as possíveis descobertas de
outras estruturas anatômicas nas pinturas da Capela Sistina poderão
desencadear diversas interpretações. Apesar disso, vejo com clareza que
essa obra-prima de Michelangelo combina os mundos da arte, religião, ciência e
fé em uma obra de arte provocante e inspiradora, na qual Deus, o centro de toda
criação, não nos forneceu somente o fôlego de vida, mas especialmente nos
presenteou com inteligência “suprema”! A humanidade demorou cerca de 500 anos
para desvendar a verdadeira obra de arte “ocultada” por esse homem de mente tão
brilhante e que, com toda sua extraordinária inteligência, percebia e admirava
a grandiosidade de Deus e de Sua criação. Deus, o artista mais sublime,
também deixou, por todo o Universo, inúmeras informações capazes de revelar Sua
gloriosa existência, embora, por vezes, possam ser despercebidas aos olhos de
muitos. Em Sua infinita sabedoria, Ele ainda nos enviou um “guia de estudos”
contendo a revelação de diversos questionamentos. Nesse sentido, me pergunto:
Quanto tempo os “especialistas” de todas as áreas da ciência vão olhar e
admirar as grandes obras de Deus sem conseguir enxergá-Lo?