Há
uma discussão teológica sobre se Deus é atemporal ou não. A resposta a essa
questão depende de conceitos como tempo e atemporalidade. E, dependendo de como
definimos essas coisas, severas inconsistências podem ser geradas. Ainda no
âmbito dessa discussão, tem sido dito que um ser atemporal não interage com o
que acontece ao longo do tempo. Além disso, tempo tem sido considerado
meramente como o que permite sequência de acontecimentos (correto), mas sem levar
em conta o que as leis físicas descobertas desde o início do século 20 têm
revelado a respeito da natureza do tempo e do espaço. A forma como esses dois
conceitos têm sido usados é inconsistente e leva a conclusões equivocadas.
Teólogos
cristãos têm chegado à conclusão de que Deus não pode ser atemporal porque Ele
interage com a humanidade e com a criação em geral ao longo do tempo. Dado o
conceito popular de atemporalidade, essa conclusão é válida. Mas o conceito de
atemporalidade usado não é. O conceito de tempo usado nessas discussões também
é simplista e choca-se de quando em quando com o que se sabe sobre o
funcionamento do tempo.
Em
considerações ateístas, encontramos argumentos segundo os quais Deus não pode
existir por ser atemporal.[1] Essa linha é igualmente simplista, mas reforça a
conclusão de que Deus não pode ser atemporal sob pena de não existir. Neste
caso, porém, a situação fica ainda mais delicada ao se introduzir o conceito de
mente sem se levar em conta diferenças entre sistemas finitos e infinitos.
Ao
longo dos últimos séculos, temos visto inúmeros exemplos de ideias milenares
que precisaram ser descartadas diante de descobertas proporcionadas pelo uso de
métodos matemáticos (Ciência) para estudar a natureza. Uma das principais motivações
para essa abordagem foi a notória insuficiência da filosofia humana para
estudar a natureza. Ao tecer linhas filosóficas, frequentemente cometemos erros
grosseiros sem perceber, pois a intuição humana tende a gerar muitas
extrapolações bastante equivocadas em todas as áreas que se afastam
ligeiramente do cotidiano. Métodos matemáticos têm permitido contornar essas
limitações da mente humana e lidar mais diretamente com a realidade.
Discussões
sobre temporalidade/atemporalidade de Deus têm sofrido desse mesmo problema:
longos debates seguidos de conclusões aparentemente razoáveis, porém
equivocadas, os quais poderiam ter sido resolvidos se houvesse um pouco mais de
atenção às leis físicas. É exatamente o que o livro de Jó descreve.
Atemporalidade – A
ideia de que algo que existe independentemente do tempo fica impedido de atuar
ao longo do tempo não tem fundamento. É uma proposição ad hoc que se choca com fatos conhecidos. Vejamos se podemos tornar
isso intuitivo. Imagine uma lei que não depende logicamente do tempo nem de
características em particular deste universo. Essa seria uma entidade
independente do tempo. Seria possível a essa entidade atuar ao longo do tempo?
Sim. De fato, há leis físicas que possuem exatamente esse comportamento:
independem do tempo mas determinam o que acontece ao longo do tempo. Aliás,
mais do que uma lei física em particular, podemos citar a rainha das leis, a
que gera as demais em um nível fundamental: δS=0. Esse princípio tem sido usado
até mesmo para estudar a possibilidade da existência de outros universos, uma
vez que ele não depende sequer de características deste universo e, em
particular, de sua dimensão de tempo. Também não depende de nenhuma outra
dimensão de tempo. Nesse sentido, esse princípio é atemporal. Por outro lado,
ele rege o que acontece também ao longo de qualquer dimensão de tempo.
Resumo:
não faz sentido associar atemporalidade com incapacidade de interferir no que
acontece ao longo do tempo. Em outras palavras, não se pode negar a
atemporalidade de Deus com base no fato de que Ele atua ao longo da história.
Uma coisa nada tem a ver com a outra.
Tempo – O conceito de tempo como sendo o que permite sequência de acontecimentos
é conveniente, mas apenas como ponto de partida. O que aprendemos com estudos
de leis físicas desdobra-se em consequências que desafiam a intuição humana.
Citaremos uns poucos exemplos ao longo da narrativa a seguir.
No
século 19, James Maxwell reuniu resultados coletados por outros pesquisadores e
descobriu que já tinha informações suficientes para formular matematicamente as
leis do eletromagnetismo. As equações resultantes lançaram uma luz inesperada
sobre assuntos dos quais nada se suspeitava. Essas mesmas equações serviram de
base para quase todo o desenvolvimento tecnológico que ocorreu a partir da
segunda metade do século 19. Graças a isso temos aparelhos elétricos e
eletrônicos.[2] É nessa área que existe a maior precisão em termos de medidas e
experimentos alcançada pela humanidade. E as equações do eletromagnetismo funcionam
muito bem.
Mas
sua utilidade não se limita e nos permitir construir esses brinquedos. As
equações do eletromagnetismo também falam muito sobre fenômenos físicos em
geral. Entre outras coisas, falavam da existência de uma velocidade absoluta,
que teria a mesmo medida para todos os observadores. Isso tem consequências
importantes sobre a natureza do tempo e do espaço. Inicialmente, os físicos não
aceitaram isso, imaginando que elas poderiam ser interpretadas de outra
maneira. Se essa velocidade fosse absoluta não em relação a todos os
referenciais, como as equações diziam, mas em relação a um referencial em
particular, que foi chamado de éter luminífero,
e se essas equações fossem válidas apenas nesse referencial, então a intuição
humana não estaria tão errada assim.
Experimentos
subsequentes mostraram que o tal éter luminífero não existe, que as equações
são válidas em todos os referenciais e que o espaço e o tempo realmente possuem
as propriedades previstas pelas equações de Maxwell. A aceitação disso deu-se
por meio da formulação da estrutura matemática que ficou conhecida como
Relatividade Especial. Descobriu-se que o espaço é relativo, o tempo é
relativo, mas o espaço-tempo é absoluto. Essa formulação também nos permitiu
entender a natureza do tempo macroscópico e a identificá-lo quando aparece em
leis físicas.
Mais
tarde, descobriu-se ainda uma conexão entre distribuição de energia e curvatura
do espaço-tempo. A formulação disso ficou conhecida como Relatividade Geral,
que por sua vez abriu as portas ao estudo da Cosmologia.
Ao
longo do século 20 foram realizados literalmente milhões de experimentos,
muitos dos quais tentando invalidar a Relatividade Especial e/ou a Geral. Tudo
o que se descobriu foi que a Relatividade não fala de tudo o que existe para
saber sobre o assunto de espaço-tempo e gravidade, mas o que ela diz está
correto até onde se pode observar.
Mas
o que a Relatividade nos diz a respeito do tempo? Muito. Vamos apenas resumir
alguns aspectos mais simples a fim de lançar alguma luz sobre a questão do
tempo para Deus.
Em
primeiro lugar, o tempo que passa para uma pessoa não é necessariamente igual
ao tempo que passa para outra, a menos que elas estejam em situações muito
parecidas. Quando existe, a diferença pode ser ínfima, imperceptível, ou
gigantesca. A diferença na passagem do tempo para astronautas em órbita da
Terra, por exemplo, é pequena, mas pode ser medida pelos instrumentos atuais e
corresponde exatamente ao previsto pela Relatividade. Essas diferenças são
grandes o suficiente para afetar em muito a precisão de instrumentos como o
GPS. Sem levar em conta as previsões da Relatividade, o erro do GPS é muito
grande. Com as correções impostas pela Relatividade, a margem de erro cai
bruscamente, restando apenas erros intrínsecos aos aparelhos, como precisão do
relógio interno.
Em segundo lugar, o que é tempo para um
observador pode ser espaço para outro e vice-versa. A dimensão que é tempo fora
de um buraco negro é uma direção no espaço em seu interior, e a direção do lado
de fora do buraco negro é a radial, em seu interior é o tempo. Tempo é uma
direção, porém com um sinal diferente na fórmula que define a geometria do
universo. Esse sinal faz com que haja sequência de acontecimentos e também é
responsável por outras propriedades.
Em
terceiro lugar, espaço-tempo é o “material” com que foi “tecido” (katarithmeo, Hebreus 11:3) o universo.
Não existe tempo sem espaço. Não existe universo sem espaço-tempo. Não existe
espaço-tempo sem universo. Tempo é só mais uma das coisas que fazem parte da
criação.
Resumindo:
milhões de experimentos e observações de todos os tipos imagináveis têm
mostrado que a Relatividade está correta, mesmo sendo incompleta, inclusive
quanto à exatidão do que ela diz sobre como funciona o tempo. E ela diz coisas
que chocam a intuição usual, mas tudo o que se observa mostra que a intuição
usual está completamente enganada em certos aspectos e que a Relatividade é que
está com a razão.
Quem
acredita que Deus criou o universo deve também crer que Ele criou o tempo. E se
essa crença incluir a ideia de que Ele depende de alguma dimensão de tempo para
existir, então também implica que Ele vive em um universo (com espaço-tempo)
que Ele não criou.
Resumo
geral: a ideia de que Deus é atemporal no sentido de existir além do tempo e
independentemente dele não implica que Ele seja incapaz de agir ao longo da
história. Se Ele é o criador de todas as coisas, então Ele é necessariamente
atemporal. Tempo é só um dos atributos do universo. Se existem muitos universos
independentes, cada um possui sua dimensão de tempo independente das dimensões
de tempo dos demais.[3]
(Eduardo Lütz é físico e
engenheiro de software)
Notas:
[2]
Aparelhos eletrônicos são os que processam informações utilizando fenômenos
eletromagnéticos para isso. Todos os seres vivos podem ser considerados
aparelhos eletrônicos (naturais), pois processam informações e o fazem com base
em fenômenos eletromagnéticos. A Química existe e funciona com base em
fenômenos eletromagnéticos
[3]
Na Teoria das Cordas, chegamos à conclusão de que cordas abertas precisam
existir em um espaço-tempo de 26 dimensões, e cordas fechadas (laços) precisam
existir em um espaço-tempo de 11 dimensões. Há quem entenda isso como
significando que o universo existe em um ambiente multidimensional. Nesse mesmo
ambiente existiria uma infinidade de universos. Mas isso não é necessariamente
verdade. O que parece emergir da Teoria das Cordas é que essas dimensões têm a
ver com graus de liberdade das cordas, e seu efeito coletivo em um mar de
cordas resultaria no espaço-tempo macroscópico com todas as suas
características (incluindo dimensões compactas, simetrias de Lorentz, etc.).