Brasil e Portugal já produziram romancistas, ensaístas, dramaturgos, cronistas e poetas de estatura, que nada deveram a seus pares de outras línguas: Machado, Eça, Sá Carneiro, Pessoa, Drummond, Almada Negreiros, Bandeira, Cecília Meirelles, João Cabral, o próprio Graciliano – a lista é imensa.
Coube, entretanto, a Saramago o reconhecimento máximo ao nosso idioma por meio de um Nobel. Não cabe aqui discutir-lhe os méritos. Há quem aprecie sua pontuação bissexta, seu estilo professoral, que enfastia o leitor menos ovino. Contudo, sejamos indulgentes com o pouco que se salva: O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) é uma obra impressionante. Memorial do Convento (1982) também merece ovações (ok, ok... dou a mão à palmatória aos que dizem que o primeiro é impressionantemente maçante e o segundo mereça ovadas).
Mas veio 1998 e com ele o Nobel. E foi-se o que havia de memorável em Saramago. Alçado à condição de celebridade laureada, danou a garatujar libelos ideológicos e iconoclásticos, invariavelmente imaturos, juvenis.
Voltaire, lendo o celerado Rousseau, dizia-se tentado a andar de quatro. Quando leio a resenha de qualquer dos livros de Saramago, vem-me de imediato à mente uma fala de Micael Cássio, tenente do mouro Otelo: “To be now a sensible man, by and by a fool, and presently a beast!” (em tradução livre: “Era um homem sensato, que aos poucos foi-se tornando um idiota; e agora é uma besta”).
Sinal dos tempos e da decadência mental e cultural do Ocidente: espinafrar o Cristianismo ainda é o melhor atalho para a publicidade gratuita e o aplauso fácil. Interessante notar que Pasolini (aquele!) foi rigorosamente respeitoso para com Jesus Cristo em seu O Evangelho Segundo Mateus, assim como Mel Gibson em “A Paixão de Cristo”. O mesmo não se pode dizer de Martin Scorcese em “A Última Tentação de Cristo”. Compreende-se: a patota de Saramago, essa nata que se pretende bem-pensante, não admite que se mostre Jesus reduzido por sessões de tortura a um moribundo irreconhecível, mas vai ao delírio quando Ele é retratado tendo fantasias sexuais com Maria Madalena. Voltemos ao escritor português.
Em novembro de 2008, durante a comemoração do cinquentenário do caderno “Ilustrada” da Folha de S. Paulo, José foi sabatinado pelo jornal perante um auditório com cerca de 300 pessoas. Sempre à vontade diante da deslumbrada claque, soltou o verbo:
“A história da humanidade é um desastre contínuo. (...) Esta raiva que no fundo há em mim, uma espécie de raiva às vezes incontida, é porque nós não merecemos a vida. Não a merecemos. (...) O que importa é que o mundo estava errado, e eu queria fazer coisas para modificá-lo. O espaço ideológico e político em que se esperava encontrar alguma coisa que confirmasse essa ideia era, é claro, a esquerda comunista. Para aí fui e aí estou. Sou aquilo que se pode chamar de comunista hormonal. O que isso quer dizer? Assim como tenho no corpo um hormônio que me faz crescer a barba, há outro que me obriga a ser comunista.” (No fim da entrevista, uma saramaguete mais espevitada berrou do fundo da plateia: “Em nome de todos os brasileiros, obrigada por existir!”)
Não se pode acusar Saramago de incoerência. Ao reconhecer que o Homem não merecia a vida, desposou ele uma ideologia que levou o ódio à Humanidade ao Estado da Arte: em números subestimados, ao menos 150.000.000 de almas foram ceifadas. Precavido, Saramago esconde-se atrás de um subterfúgio curioso, o tal “marxismo hormonal”. Quão conveniente! Em Nuremberg, os nazistas (que foram bem menos prolíficos que os socialistas em produzir cadáveres) alegaram estar cumprindo ordens. Ao sapatear sobre uma cordilheira de defuntos, José de Sousa Saramago sempre poderá dizer: “Eu estava apenas cumprindo meu código genético.”
O que o comunista tardio Graciliano Ramos tem a ver com a história? Em 10/12/2009, por ocasião dos 70 anos da publicação de Vidas Secas, o sempre correto jornalista Reinaldo Azevedo escreveu para Veja um artigo sobre o escritor alagoano (confira aqui). Algumas partes do texto:
“Vidas Secas? É bastante conhecida uma das mais devastadoras passagens da literatura brasileira: as páginas em que Graciliano narra a agonia e morte da cadela Baleia. Fabiano, que vaga com a família pelo sertão, tangido pela seca, decide matá-la com um tiro para aliviar-lhe o sofrimento. Segue um trecho:
“‘A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia (...) E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo (...). Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. (...) Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora, cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. (...) A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. (...) A pedra estava fria. Certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo. Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás (...) gordos, enormes.’”
Prossegue Azevedo:
“Baleia é mais comoventemente miserável quando se arrasta sobre dois pés, quando ‘anda como gente’. Ele não deprecia o homem, comparando-o ao cão; antes, hominiza o cão porque vê com compaixão a nossa condição – e essa compaixão inclemente pelo humano é marca da sua obra. Há dias, em passagem pelo Brasil, José Saramago declarou padecer de ‘marxismo hormonal’. Segundo o escritor português, não merecemos a vida. Ele nos negaria um pedaço de osso. ‘Preás gordos, enormes’, então, nem pensar.”
E conclui:
“‘Todo homem mata aquilo que ama’, escreveu na cadeia o escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900). Por isso nos arrastamos, como Baleia, vida afora, em busca de perdão. Somos uns cães. Mas, ainda assim, dignos de amor. E cerraremos os olhos contando acordar felizes, num mundo ‘cheio de preás gordos, enormes’.”
(Marco Antonio Dourado, analista de TI, Curitiba, PR)
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