O livro tem apenas 77 páginas, por isso mesmo dá para ler de uma assentada, mas também por isso mesmo nem chega perto de esgotar o assunto que se propõe elucidar: O cristianismo é bom para o mundo? Trata-se do debate entre o jornalista ateu Christopher Hitchens e o teólogo liberal Douglas Wilson. O prefácio de John Goldberg é uma pérola: “A história do cristianismo não é absolutamente imaculada, conforme Christopher Hitchens deixa claro e Douglas Wilson admite, mas o cristianismo pelo menos oferece instrumentos para condenar os que praticam o mal em seu nome. Há muitos ismos ‘seculares’ que não têm condições de alegar o mesmo. Eles precisam – ou preferem – simplesmente redefinir o mal como deslealdade para com a Causa, ao passo que todo mal praticado em prol da Causa é considerado ato de heroísmo. Com toda a certeza, o cristianismo teve seguidores que agiram perversamente em nome de Deus. Mas, pelo menos, ele cultiva uma consciência moral pela qual os homens podem tentar olhar para seus atos com os olhos de um Deus de amor. Diante de algumas alternativas, esse princípio de organização dificilmente parece ser o pior para a humanidade.”
O livro da editora Garimpo é organizado em seis “rounds” e o debate segue educadamente, embora acabe, em minha opinião, sem um vencedor evidente. Hitchens começa por questionar a ideia de liberdade e livre-arbítrio pelo fato de Deus ser uma espécie de “big brother” atento a cada deslize humano (p. 12, 13). E cita Fulke Greville, para quem “fomos criados doentes”, embora nos ordenem que sejamos saudáveis. Assim, Hitchens começa a pintar seu quadro de um deus exigente, vigilante e responsável pelo mal – embora requeira de nós o bem.
Na réplica, Wilson admite que Hitchens possui boa argumentação, mas, em seguida, questiona: “Em face do ateísmo, gostaria que ele [Hitchens] explicasse o porquê do uso da razão. Se Deus não existe, o que é a verdade? Christopher Hitchens manifesta uma enorme indignação moral, mas, em face do ateísmo, gostaria que ele explicasse o porquê de sua prosa vibrante e motivadora. Se Deus não existe, então proteste, protorte, pro&^%...” (p. 17).
Na página 23, Hitchens afirma que é possível encontrar “mais motivos de assombro e reverência num estudo do espaço ou de nosso DNA do que em qualquer livro escrito por um grupo de homens piedosos na era do mito”. De fato, o espaço e as leis que regem o universo causam assombro, tanto que, ao pensar nisso, o maior ateu do século 20, Anthony Flew, acabou se convertendo a Deus. A complexidade do DNA igualmente assombra, e foi no estudo do genoma humano que o ex-ateu Francis Collins repensou suas convicções. Para o leitor atento, o livro da natureza traz a mesma mensagem da Revelação especial, a Bíblia Sagrada: “No princípio, criou Deus” (Gn 1:1).
Na mesma página 23, Hitchens deixa clara sua má compreensão do caráter de Deus: “É claro que não tenho condições de provar a inexistência de uma divindade que supervisiona e vigia cada momento da minha vida e irá me perseguir mesmo depois da morte. (Mas posso me alegrar com a falta de provas para uma ideia tão pavorosa...).” Se Hitchens tivesse estudado a Bíblia com atenção, descobriria que, para quem não quer saber da Vida, não haverá vida após a segunda morte. Deus não “persegue” e muito menos “perseguirá” ninguém, pois essas pessoas não mais existirão.
Wilson contrapõe com perguntas a tradicional alegação de que no Antigo Testamento Deus teria promovido genocídios e massacres, e que os que ensinam essas histórias para crianças foram “condenados pela História”: “Por que deveríamos nos importar com os frágeis julgamentos da História? Deveriam os propagadores desses ‘horrores’ ter se importado? Não há Deus, correto? Como não há Deus, isso significa – você sabe disso – que genocídios acontecem do mesmo jeito que terremotos e eclipses. Tudo é matéria em movimento, e essas coisas acontecem” (p. 27). E Wilson completa: “Diante de seu ateísmo, que explicação você pode dar que nos obrigue a respeitar o indivíduo? Como o seu individualismo flui das premissas do ateísmo? Por que alguém do mundo externo deveria respeitar os detalhes de sua vida e de seu pensamento mais do que respeita o movimento interno de qualquer outra reação química? Nossos pensamentos não passam disso, certo? Ou, se existe uma diferença, poderia você, a partir das premissas de seu ateísmo, fazer essa distinção? [...] A fé cristã é boa para a humanidade porque fornece o padrão fixo que o ateísmo não consegue fornecer e porque proporciona perdão dos pecados, algo que o ateísmo também não pode dar. Precisamos da direção de um padrão porque somos pecadores confusos. Precisamos do perdão porque somos pecadores culpados. O ateísmo não apenas conserva a culpa, mas também mantém a confusão” (p. 29, 35, 36).
A discussão segue a respeito da origem da moral. Hitchens afirma que a moral é “básica e inata” na humanidade. Wilson questiona, dizendo que, mesmo que fosse inata, a moral não seria digna de crédito, já que, para o pensamento ateu, somos fruto da evolução e, portanto, vivemos num universo em mudança. Então, nossa moral inata pode ter sido outra ou poderá ser outra. “Temos primos [evolutivos] distantes cujas mães comiam os filhotes. Isso lhes era inato? Será que eles se desenvolveram porque agir assim não era bom para eles? [...] Se o cristianismo é ruim para o mundo, os ateus não podem afirmar isso com coerência, pois lhes falta um critério fixo para definir o que é ruim” (p. 54).
Com respeito à “coexistência de Deus com o mal”, apontada por Hitchens no quinto round, Wilson responde que prefere Deus mais o problema do mal em vez da ausência de Deus junto com um “Mal? Tudo bem!” (p. 63). Gostei dessa resposta simples porque mostra que, a despeito da relativa dificuldade de seu explicar a existência do mal num universo criado por um Deus todo-poderoso e todo-amoroso, é justamente o conceito de um Deus perfeito e bom que nos leva à indignação contra o mal (por contraste) e alimenta o desejo de buscar algo melhor e de esperar respostas desse Deus.
No sexto e último round, Wilson, como bom pastor, termina fazendo veemente apelo a Hitchens: “[O Senhor] estabeleceu um lar que, além de grande, é acolhedor; há bastante espaço para você. Nada que já tenha feito ou falado será usado contra você. Todas as coisas serão purificadas e perdoadas. Sobre a mesa há comida simples – pão e vinho. A porta está aberta, e vou deixar a luz acesa para você” (p. 77).
Que bom que Wilson concluiu assim o debate! Creio que seriam as mesmas palavras que eu gostaria de dizer com carinho e respeito a todo ateu sincero. Agora só me resta orar por Hitchens e outros que precisam conhecer o Deus verdadeiro e encontrar descanso nEle.
Meses depois de ler o livro O Cristianismo é Bom Para o Mundo?, lendo outro livro – Antropologia Cristã, de Valfredo Tepe (Vozes) –, me deparei com esta citação, na página 244, que me fez lembrar do debate entre Hitchens e Wilson: “Jürgen Habermas, o último dos grandes filósofos da escola de Frankfurt, fez recentemente um discurso que chamou atenção pela abertura positiva para a religião. Afirmou que não conhecia nenhuma alternativa para a herança da cultura ocidental que proveio da ética judaica da justiça e da ética cristã do amor. Dessa substância se alimentaram todas as ideias ‘de liberdade e convivência solidária, de conduta autônoma da vida, da moral de consciência individual, de direitos humanos e democracia’. Tudo o mais seria ‘conversa pós-moderna’.”
Michelson Borges
O livro da editora Garimpo é organizado em seis “rounds” e o debate segue educadamente, embora acabe, em minha opinião, sem um vencedor evidente. Hitchens começa por questionar a ideia de liberdade e livre-arbítrio pelo fato de Deus ser uma espécie de “big brother” atento a cada deslize humano (p. 12, 13). E cita Fulke Greville, para quem “fomos criados doentes”, embora nos ordenem que sejamos saudáveis. Assim, Hitchens começa a pintar seu quadro de um deus exigente, vigilante e responsável pelo mal – embora requeira de nós o bem.
Na réplica, Wilson admite que Hitchens possui boa argumentação, mas, em seguida, questiona: “Em face do ateísmo, gostaria que ele [Hitchens] explicasse o porquê do uso da razão. Se Deus não existe, o que é a verdade? Christopher Hitchens manifesta uma enorme indignação moral, mas, em face do ateísmo, gostaria que ele explicasse o porquê de sua prosa vibrante e motivadora. Se Deus não existe, então proteste, protorte, pro&^%...” (p. 17).
Na página 23, Hitchens afirma que é possível encontrar “mais motivos de assombro e reverência num estudo do espaço ou de nosso DNA do que em qualquer livro escrito por um grupo de homens piedosos na era do mito”. De fato, o espaço e as leis que regem o universo causam assombro, tanto que, ao pensar nisso, o maior ateu do século 20, Anthony Flew, acabou se convertendo a Deus. A complexidade do DNA igualmente assombra, e foi no estudo do genoma humano que o ex-ateu Francis Collins repensou suas convicções. Para o leitor atento, o livro da natureza traz a mesma mensagem da Revelação especial, a Bíblia Sagrada: “No princípio, criou Deus” (Gn 1:1).
Na mesma página 23, Hitchens deixa clara sua má compreensão do caráter de Deus: “É claro que não tenho condições de provar a inexistência de uma divindade que supervisiona e vigia cada momento da minha vida e irá me perseguir mesmo depois da morte. (Mas posso me alegrar com a falta de provas para uma ideia tão pavorosa...).” Se Hitchens tivesse estudado a Bíblia com atenção, descobriria que, para quem não quer saber da Vida, não haverá vida após a segunda morte. Deus não “persegue” e muito menos “perseguirá” ninguém, pois essas pessoas não mais existirão.
Wilson contrapõe com perguntas a tradicional alegação de que no Antigo Testamento Deus teria promovido genocídios e massacres, e que os que ensinam essas histórias para crianças foram “condenados pela História”: “Por que deveríamos nos importar com os frágeis julgamentos da História? Deveriam os propagadores desses ‘horrores’ ter se importado? Não há Deus, correto? Como não há Deus, isso significa – você sabe disso – que genocídios acontecem do mesmo jeito que terremotos e eclipses. Tudo é matéria em movimento, e essas coisas acontecem” (p. 27). E Wilson completa: “Diante de seu ateísmo, que explicação você pode dar que nos obrigue a respeitar o indivíduo? Como o seu individualismo flui das premissas do ateísmo? Por que alguém do mundo externo deveria respeitar os detalhes de sua vida e de seu pensamento mais do que respeita o movimento interno de qualquer outra reação química? Nossos pensamentos não passam disso, certo? Ou, se existe uma diferença, poderia você, a partir das premissas de seu ateísmo, fazer essa distinção? [...] A fé cristã é boa para a humanidade porque fornece o padrão fixo que o ateísmo não consegue fornecer e porque proporciona perdão dos pecados, algo que o ateísmo também não pode dar. Precisamos da direção de um padrão porque somos pecadores confusos. Precisamos do perdão porque somos pecadores culpados. O ateísmo não apenas conserva a culpa, mas também mantém a confusão” (p. 29, 35, 36).
A discussão segue a respeito da origem da moral. Hitchens afirma que a moral é “básica e inata” na humanidade. Wilson questiona, dizendo que, mesmo que fosse inata, a moral não seria digna de crédito, já que, para o pensamento ateu, somos fruto da evolução e, portanto, vivemos num universo em mudança. Então, nossa moral inata pode ter sido outra ou poderá ser outra. “Temos primos [evolutivos] distantes cujas mães comiam os filhotes. Isso lhes era inato? Será que eles se desenvolveram porque agir assim não era bom para eles? [...] Se o cristianismo é ruim para o mundo, os ateus não podem afirmar isso com coerência, pois lhes falta um critério fixo para definir o que é ruim” (p. 54).
Com respeito à “coexistência de Deus com o mal”, apontada por Hitchens no quinto round, Wilson responde que prefere Deus mais o problema do mal em vez da ausência de Deus junto com um “Mal? Tudo bem!” (p. 63). Gostei dessa resposta simples porque mostra que, a despeito da relativa dificuldade de seu explicar a existência do mal num universo criado por um Deus todo-poderoso e todo-amoroso, é justamente o conceito de um Deus perfeito e bom que nos leva à indignação contra o mal (por contraste) e alimenta o desejo de buscar algo melhor e de esperar respostas desse Deus.
No sexto e último round, Wilson, como bom pastor, termina fazendo veemente apelo a Hitchens: “[O Senhor] estabeleceu um lar que, além de grande, é acolhedor; há bastante espaço para você. Nada que já tenha feito ou falado será usado contra você. Todas as coisas serão purificadas e perdoadas. Sobre a mesa há comida simples – pão e vinho. A porta está aberta, e vou deixar a luz acesa para você” (p. 77).
Que bom que Wilson concluiu assim o debate! Creio que seriam as mesmas palavras que eu gostaria de dizer com carinho e respeito a todo ateu sincero. Agora só me resta orar por Hitchens e outros que precisam conhecer o Deus verdadeiro e encontrar descanso nEle.
Meses depois de ler o livro O Cristianismo é Bom Para o Mundo?, lendo outro livro – Antropologia Cristã, de Valfredo Tepe (Vozes) –, me deparei com esta citação, na página 244, que me fez lembrar do debate entre Hitchens e Wilson: “Jürgen Habermas, o último dos grandes filósofos da escola de Frankfurt, fez recentemente um discurso que chamou atenção pela abertura positiva para a religião. Afirmou que não conhecia nenhuma alternativa para a herança da cultura ocidental que proveio da ética judaica da justiça e da ética cristã do amor. Dessa substância se alimentaram todas as ideias ‘de liberdade e convivência solidária, de conduta autônoma da vida, da moral de consciência individual, de direitos humanos e democracia’. Tudo o mais seria ‘conversa pós-moderna’.”
Michelson Borges