quarta-feira, junho 26, 2019

Adão e Eva iam ao banheiro?

Tenho aprendido muito acerca de criacionismo com livros, meditando e lendo a Bíblia. Tenho aprendido muito também enfrentando dilemas, corrigindo posicionamentos e, acima de tudo, tentando responder perguntas. Procurar uma resposta me traz enorme aprendizado, mesmo que após várias tentativas eu ainda não consiga conjecturar muitas questões.

No criacionismo bíblico, cremos que Deus orquestrou o início da vida em nosso planeta. E somente Deus tem a "foto" original do quebra-cabeça que estamos montando. Às vezes, temos uma peça solta aqui e lá, outras se encaixam perfeitamente, mas a verdade é que não conseguimos vislumbrar a imagem toda.

Estava palestrando para um grupo de pessoas, e o público era misto. Famílias com seus filhos, jovens e idosos. Quando abri para perguntas, no meio do público uma mãozinha pequena, branca e gordinha se ergueu. Era uma criança com seus sete a oito anos. E ele queria muito perguntar, pois acenava com as mãos de forma incansável. Quando dei o espaço para ele falar, a pergunta me surpreendeu e fez todos rirem no local. Ele queria saber se "Adão ia ao banheiro". Na verdade ele usou uma palavra bem coloquial, o que fez com que eu também desse uma boa gargalhada.

A pergunta podia entrar naquela classe das "inúteis curiosidades", como as clássicas "Adão tinha umbigo?", "Qual era a cor de Eva?", entre outras. Mas vi um grande potencial teológico na pergunta e decidi responder. Na hora prontamente respondi que sim, e sabia que viria um nova pergunta, pois já havia compreendido qual era a linha de pensamento do menino da mão gordinha. Ele queria saber se havia morte antes do pecado, pois se Adão comia, matava células dos alimentos; se havia células mortas, havia morte, então a confusão estava feita. Era um paradoxo excretor edênico. Antes de mais nada quero indicar um texto em que falei sobre esse assunto de forma resumida.

Falarmos de vida e morte com as definições biológicas ou sociais pode complicar nossa compreensão se aplicarmos esse princípio à Bíblia fora do contexto. No que se refere a seres vivos, vida e morte são bem definidas pela Bíblia. Mas, quanto à função dos alimentos, a coisa muda um pouco. As plantas são consideradas “alimento". Para a Bíblia, a planta não morre quando é ingerida. Apenas cumpre seu papel na criação, que é o de alimentar o ser humano e os animais. Em Eclesiastes 3:19, 20 vemos que o autor define a função de cada coisa, e que as plantas têm a função de alimentar os seres humanos e os animais. Logo, aqui nesse texto, ela não entra no contexto de "seres vivos", mas no contexto de "alimento".[1]

Quando comemos uma fruta, “matamos células” dessa fruta. O material ingerido deve ser devolvido à terra para reciclagem - ciclo biológico. Cada átomo que ingerimos ou é excretado ou é mantido no organismo. Nenhum átomo é desintegrado. Os átomos circulam entre o organismo e o ambiente.[2]

O fato de que as plantas tinham sido apontadas como alimento para animais faz com que seja muito óbvio que a "morte" ocorreu no Jardim do Éden, a "morte" das plantas. Cada grão, cada vegetal carnudo enraizado consumido como comida representava a vida de uma planta adulta. Aqui era a "morte" sem a sombra da morte. A morte, como é conhecida, antes da queda do homem, apenas significava que o protoplasma vivo de frutas, nozes, grãos, legumes e ervas era apropriado por algum animal para servir como uma refeição gostosa. A substância viva da planta "morre", é quebrada em substâncias mais simples, ou seja, é decomposta e, em seguida, usada na síntese de tecidos animais.

Aparentemente, não houve morte de animais no Éden. Podemos nos perguntar como Adão, em seu cuidado do jardim, poderia evitar pisar em uma formiga ou esmagar a pequena larva de um inseto, mas isso já entra na questão das curiosidades inúteis de que falamos anteriormente. Assim, a resposta à nossa primeira pergunta é "sim"; houve "morte" e decomposição de materiais de vida no Éden, mas essa "morte" foi apenas no reino vegetal.[3]

Lemos em Gênesis 2:1: “Assim os céus e a terra foram terminados.” Mais uma vez, em Hebreus 4:3b, lemos: “Embora as Suas obras estivessem acabadas desde a fundação do mundo...” O ensinamento desses versos parece expressar o pensamento de que depois que a primeira criação original foi concluída na sexta-feira não havia segunda criação tão profunda como aquela que seria necessária para reprogramar os corpos de todos os animais, a fim de fazer a manipulação de grande volume de materiais indigestos possível e instalar um sistema para a extração e eliminação de resíduos sólidos e líquidos.

A dieta era fisicamente a mesma antes da queda, como é a mesma hoje. Portanto, parece razoável supor que o padrão básico do corpo de Adão foi o mesmo em seu equipamento de sistemas de órgãos como é com o nosso corpo.

A Bíblia também conecta a questão do sangue à vida.[4] Podemos ver isso claramente em Gênesis 9:4 e Deuteronômio 12:23. Sendo assim, as plantas não entrariam nesse contexto de "vivo ou morto", podendo sem problema ser ingeridas por Adão e Eva no Éden. Essas plantas passariam por um processo complexo de digestão e seriam excretadas pelo processo "malcheiroso" que conhecemos.

Já ouvi alguns criacionistas dizerem que não havia excreção no Éden e os seres humanos absorviam todos os nutrientes do que era ingerido. Então, não tinha nada que sobrava. Afinal de contas, "cocô e paraíso não combinam né?". 

A comida de ser humano e dos animais é constituída por hidratos de carbono, gorduras, proteínas, vitaminas, minerais e água. Uma vez que esses produtos alimentares são os mesmos para o homem e os animais, as enzimas em seus corpos, as quais provocam a digestão, assimilação e oxidação dos materiais, são idênticas. Os hormônios ou mensageiros químicos do homem são os mesmos que os dos animais.

Encontramos ciclos importantes de substâncias químicas intimamente associados com a vida de plantas e animais. Ciclos como o do oxigênio, do carbono, ou o ciclo do azoto. No ciclo do azoto, por exemplo, a planta verde leva a água a partir do dióxido de carbono do solo e do ar, e por meio de energia de luz e a ação catalítica de clorofila, fabrica açúcar simples. Esse açúcar é então combinado com nitratos do solo e a planta forma aminoácidos. Esses aminoácidos são utilizados pela planta para a construção de novas protoplasmas e para a substituição de porções da substância viva que tenham sido oxidadas.

Alguns desses ácidos também são construídos em proteínas, por exemplo, nas sementes de leguminosas em amadurecimento. O animal come essas proteínas, digere em aminoácidos, e, em seguida, reconstitui para o protoplasma de seus próprios tecidos. Resíduos azotados do corpo do animal, bem como resíduos de plantas, são decompostos por bactérias e fungos.

Em seguida, as bactérias nitrificantes começam a construir essas substâncias simplificadas em nitritos e, eventualmente, em nitratos que estão prontos para ir ao redor do ciclo novamente. A extrema importância desse ciclo está no fato de que ele é a fonte de todos os materiais de crescimento e reparação para os seres vivos. 

Esses organismos de deterioração e as bactérias nitrificantes, em cooperação com bactérias fixadoras de azoto no solo e sobre as raízes das leguminosas, são responsáveis pela renovação constante da fertilidade do solo, ou seja, sua fertilidade no que respeita aos nitratos todo-importantes. Sem eles as plantas não seriam capazes de crescer. À luz desses fatos, parece razoável supor que o ciclo do nitrogênio foi instituído pelo Criador no início.

Se não fosse o caso, teria sido necessário que o Criador desenvolvesse uma espécie de barril de nitrato para reconstituir, através de um processo sobrenatural, o fornecimento constante de encolhimento desse componente. Em um mundo projetado para durar para sempre, a instituição de um ciclo de nitrogênio seria ainda mais importante no contexto do cuidado de Deus com Sua criação.

O fato é que existe a necessidade de organismos de deterioração, tais como leveduras, fungos e bactérias, para quebrar esses materiais em substâncias mais simples para que eles pudessem voltar ao ciclo novamente. Parece muito necessário concluir que, a fim de manter a terra organizada a partir dos produtos de suas próprias formas orgânicas imortais, o Criador deva ter instituído o ciclo do nitrogênio na criação. 

Alguém pode questionar que os animais e o homem não produziam resíduos no estado original, porque tal ideia exigiria um sistema de esgoto no Paraíso, aparentemente uma ideia repugnante. Mesmo se há alguma conexão aqui, eu não gostaria de fazer muitas suposições sobre os tipos de corpos ou como será a mudança para um estado imortal. Podemos imaginar com bastante precisão o estado original, porque esta é a mesma Terra, e mortal, em que Adão estava inserido. O corpo humano na nova Terra pode diferir do seu estado atual, e até mesmo a partir de seu estado original, de muitas maneiras. No entanto, parece razoável supor que o estado restaurado do homem e dos animais será análogo ao que foi originalmente criado. Pelo menos esse parece ser o caso em matéria de alimentos.

A eliminação de resíduos não precisa estragar um Éden. Vemos muitos animais hoje com hábitos curiosos de eliminação de resíduos. Possivelmente essa seja uma sombra de um instinto bem desenvolvido que foi usado por animais no Éden. A simplicidade do cotidiano de Adão e Eva e sua proximidade com a terra e seus produtos são difíceis para entendermos sem criar uma grande complexidade e artificialidade. Muitas vezes encontramos indivíduos que pensam que os remidos passarão a eternidade sentados numa nuvem tocando harpa. Mas será que os santos farão somente isso no Céu?

Da mesma forma, alguns são propensos a assumir que o estado original era uma existência etérea, longe das realidades da vida. Mas vemos o contrário. Foi extremamente a existência real e muito perto da natureza que suas vidas foram vividas na mesma terra sobre a qual caminhamos, uma terra cujos processos foram, se julgado à luz da situação atual, inteiramente exercidos por leis naturais, que são os instrumentos de Deus. Parece muito razoável, de fato, bastante necessário assumir que o poder de sustentação do Criador foi manifestado nos mesmos ciclos vitais que em nossos dias e ainda mantém as substâncias químicas essenciais sempre renovadas para que a vida possa continuar.

E suponhamos que os seres humanos possuíssem originalmente trato digestivo, de tal modo constituído para digerir completamente todas as partes dos grãos, frutas, nozes, vegetais e ervas que compunham sua dieta. Isso exigiria mais enzimas digestivas do que aquelas que o homem agora possui. Ao considerar essa questão, é muito necessário que tenhamos em mente as profundas mudanças corporais que seriam necessárias para mudar um sistema construído tal como os animais possuem hoje.

No caso do homem, o cólon com sua abertura, os rins, os ureteres e a bexiga teriam de ser adicionados, para não listar estruturas como vasos sanguíneos e nervos que teriam que ser fornecidos. O tubo digestivo moderno em si é construído com todos os recursos para lidar com matéria indigesta, isto é, trabalhá-la e passá-la adiante. De fato, a maior parte de tais partes indigestas de nossa comida, como a celulose, é quase tão importante para a saúde quanto os próprios alimentos. O significado de nosso atual sistema digestivo e excretor é que se ele não foi originalmente criado com a presente estrutura, uma segunda criação algum tempo depois que o pecado entrou teria sido necessária.

A conclusão desse problema é bem simples: Adão e Eva iam ao banheiro. Comiam plantas e processavam essas plantas em seus sistemas complexos digestivos. A "morte" dessas plantas/células não era problema e esse ciclo perfeito para manter a criação foi feito pelo próprio Deus. Assim, pode-se concluir, com razão, que as plantas não possuem vida bíblica. Se elas não estão "vivas", os animais que comem plantas na criação original não causariam a morte. Então, o que possui "vida", de acordo com a Bíblia, parece ter certos parâmetros. Eles são: consciência, carne, respiração e sangue.

(Alex Kretzschmar, baseado no texto "Studies in Creationism", de Frank Lewis Marsh)

Referências:

[1] Stambaugh, James, Creation’s original diet and the changes at the Fall, TJ 5(2):130–138, 1991.

[2] Rubim, M. A. L. 1995 Ciclo de vida, biomassa, e composição química de duas espécies de arroz silvestre da Amazônia Central. Dissertação de mestrado, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia/ Fundação Universidade do Amazonas. Manaus, Amazonas. 126 p.

[3] Ross, Hugh, The Fingerprint of God, Promise Publishing Company, Orange, CA, p. 154, 1989.

[4] Hamilton, ref. 37, vol. 1, p. 190, sv Dam . 

segunda-feira, junho 17, 2019

Será o fim do terraplanismo e da negação de que o homem foi à Lua?

Em pleno século 21, há pessoas que defendem a ideia de que a Terra seria plana e coberta por um “domo” sólido. Assim, o Sol e a Lua seriam muito menores que o nosso planeta e estariam girando e flutuando dentro da atmosfera. Logo, como o domo representa uma barreira, é impossível enviar satélites e naves ao espaço e, claro, os americanos não pisaram na Lua em 1969. Foi tudo armação. Aliás, a Nasa investe bilhões de dólares todos os anos só para manter as pessoas enganadas, pensando que a Terra é um globo. Por mais que sejam apresentados argumentos bíblicos, científicos e com base em textos claríssimos de Ellen White, há pessoas que preferem acreditar em vídeos de YouTube e teorias da conspiração. Mesmo que se diga que a Coreia do Norte e a China comunistas já enviaram, respectivamente, um foguete (que fotografou a curvatura da Terra) e uma sonda ao lado escuro da Lua, e que os russos, os maiores interessados em negar a alunissagem, não duvidam do feito dos americanos, os terraplanistas insistem em suas ideias e nunca nos mostram uma foto da borda do mundo.

Os próximos anos poderão representar o sepultamento definitivo dessa ideia. 

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quarta-feira, junho 05, 2019

O mínimo que você precisa saber sobre ciência e intuição

"Mais pessoas acreditam em Einstein do que nos seus próprios olhos." - Olavo de Carvalho

A maioria das pessoas não tem ideia do que Einstein disse ou deixou de dizer. Quanto aos físicos, nenhuma das informações que usam tem Einstein como origem. Ele apenas reuniu informações já conhecidas em uma única teoria (sistema de equações diferenciais). E ele mesmo não acreditou inicialmente em todas as consequências das equações que reuniu.

Mas em quem devemos acreditar, na Matemática ou em nossos próprios olhos? Quando estamos mergulhados em uma piscina e, de lá vemos um objeto a dois metros de altura, se fizermos os cálculos levando em conta o índice de refração da água e do ar obteremos que o objeto está a um metro de altura e não dois. Mas nossa visão nos mostra que sua altura é de dois metros. Se colocarmos a cabeça para fora da água, nossa visão concordará com o nosso cálculo. Em quem vamos acreditar, em nossa visão sob a água ou em nossa visão acima da água? Esse é um exemplo simples e cotidiano (pelo menos para quem costuma mergulhar e olhar para fora da água a partir de um ambiente subaquático, como eu) que mostra que nem sempre nossos sentidos são confiáveis, que temos meios de calcular correções a nossas distorções de percepção, correções essas que podem ser testadas e confirmadas.

Porém, o maior problema não são as distorções sensoriais a que todos estamos expostos. São as generalizações equivocadas que a intuição humana faz com frequência. Uma pessoa que passa a vida toda em ambiente semiárido sem acesso a informações sobre outras regiões tende a imaginar que o mundo todo é igual a sua vizinhança. Uma pessoa que nunca viajou a velocidades comparáveis à da luz no vácuo tende a imaginar que o tempo é absoluto e qualquer ideia diferente disso é absurda (como os próprios físicos pensaram no século 19). Na verdade, nos últimos séculos temos nos deparado com diversas situações em que as previsões resultantes das equações das leis físicas pareciam absurdas à intuição, mas a experimentação mostrava que a previsão matemática estava correta e a previsão da intuição é que era incompatível com a realidade.

Isso significa que devemos jogar fora a intuição e tudo o que depende dela, como a Filosofia? De maneira nenhuma. A intuição é um importante instrumento que nos permite entender o ambiente imediato e suas principais interações, e tende a funcionar razoavelmente bem nesse contexto. A Filosofia é uma importante maneira de organizarmos socialmente esse entendimento. Mas a intuição tem-se mostrado tão mais enganosa quanto mais os assuntos se afastam do cotidiano.

O fato de haver pessoas que estudam, testam e descobrem fenômenos que desafiam a intuição humana (e consequentemente correntes filosóficas com muitos adeptos) e divulgam esses resultados tende a irritar pessoas que preferem pensar diferente. É um direito que têm. Porém, apesar de não acreditar no que lhes parece contraintuitivo, elas se beneficiam direta ou indiretamente de tecnologias que só funcionam graças a fenômenos que essas pessoas consideram absurdos e inexistentes.

Esse ceticismo não é exclusivo de pessoas que desconhecem Física. Os próprios descobridores dessas coisas foram muito céticos com elas inicialmente. A previsão (a partir das equações do eletromagnetismo) de ser absoluta a velocidade da luz no vácuo foi inicialmente considerada absurda e foram buscadas alternativas. Entre elas, pensou-se na possibilidade de que essa velocidade fosse em relação a um suposto éter luminífero, o que implicaria em que as equações do eletromagnetismo só funcionam no referencial do éter e falham em outros referenciais (o que é falso, pois verifica-se que aquelas equações são válidas nos demais referenciais). O experimento de Michelson e Morley mostrou que, ou estamos sempre parados em relação ao éter (se as equações do eletromagnetismo só valem no referencial do éter), ou a velocidade da luz é realmente absoluta. Mesmo com esses resultados, os físicos demoraram muito tempo para fazer as pazes com aquele "absurdo" em função das consequências sobre a relatividade do tempo e do espaço. Chegaram mesmo a calcular essas consequências sem aceitá-las. O mérito de Einstein foi o de parar de dar murro em ponta de faca, aceitar as descobertas e organizá-las na forma de uma teoria.

Outro exemplo foi a descoberta, feita independentemente por Hilbert e Einstein, de uma equação que mostra como o espaço e o tempo se encurvam por causa da energia. Essa equação também tem consequências que o próprio Einstein não aceitou; entre elas a de que o próprio tempo teve uma origem, que o Universo está em expansão e que a luz que chega até nós vinda de um aglomerado de galáxias distantes será tão mais avermelhada quanto mais distante estiver o aglomerado. Esses resultados foram desprezados por Einstein, até que ele viu observações confirmando essas previsões. Só então aceitou as previsões de sua própria teoria.

A visão ingênua de ciência que muitos têm, como se fosse uma construção social, impede que se perceba que ela permite lidar com informações externas à humanidade e que desafiam nossa filosofia, provendo a todos nós, inclusive físicos, uma oportunidade para sermos humildes e reconhecer o quão limitados somos e que muitas vezes o que nos parece razoável é absurdo e o que nos parece absurdo é a realidade.

Eduardo Lütz

terça-feira, junho 04, 2019

Como olhamos para a natureza?


A natureza chama a atenção de todos: do cientista que procura investigá-la para descobrir suas intrincadas e inteligíveis leis à criança que faz curiosas e interessantes perguntas acerca de seus múltiplos aspectos. Os olhos humanos são cativados por ela, pois fascina, instiga, deslumbra e também amedronta as pessoas. Mesmo as criaturas irracionais têm um olhar instintivo voltado à natureza, sendo envolvidos e governados por seus princípios universais. Costuma-se afirmar que a natureza é um compêndio, “livro” sobre o qual homens e mulheres de ciência se debruçam a fim de estudar sua linguagem – codificada matematicamente –, com o objetivo de transformá-la em conhecimento. Esse tipo de trabalho requer um mergulho cognitivo muito profundo no mundo natural, por meio do método que permitiu o nascimento e desenvolvimento da ciência moderna. Segundo Galileu Galilei, “o Universo não poderá ser lido até que tenhamos aprendido e nos familiarizado com os caracteres com os quais foi escrito. E ele foi escrito em linguagem matemática, e as letras são triângulos, círculos e outras figuras matemáticas, e sem tais recursos é humanamente impossível compreender uma única palavra”.

Inclinam-se também para a natura poetas, literatos, músicos e outros artistas, extraindo dela inspiração para suas criações. Não só esses: filósofos a observam mediante a razão, muitas vezes especulativa. Fazendo uso do pensamento reflexivo, elaboram questionamentos sobre a realidade e essência dos seres e das coisas, engajando-se na procura pela verdade. E os teólogos? Eles a veem uma obra de Deus, fonte de espiritualidade e via argumentativa a favor da existência do Criador. Assim, a physis desperta no ser humano várias reações que vão desde o anseio investigativo por desvelar sua origem e estrutura até a simples ação de escrever este texto acerca dela, como o faço. De fato, qualquer observador perspicaz vê na natureza um signo grandioso repleto de informações e mensagens indicadoras de certo mistério supranatural nela presente. Todavia, apesar desse fascínio atrativo, que quadro geral da natureza nossa visão tem formado? Seria uma imagem nítida ou embaçada e distorcida por algum modelo explicativo limitador?

Quando Charles Darwin realizou sua famosa viagem de cinco anos a bordo do H.M.S. Beagle, esse naturalista inglês observou muitas cenas e paisagens naturais que lhe imprimiram significativos sentimentos e pensamentos, ajudando-o a estabelecer a teoria geral da evolução das espécies: cosmovisão aplicada ao estudo da natureza, dominante no meio científico e paradigma central não só da Biologia, mas também de muitas outras disciplinas. Diz-se que “ele visitou as ilhas de Cabo Verde, vários pontos do Brasil e da Argentina, incluindo Rio de Janeiro e Buenos Aires, e as ilhas Malvinas, a Patagônia, a Terra do Fogo, o estreito de Magalhães, a área central do Chile, Chiloé e as ilhas Chonos, a região de Valdívia, muito propensa a terremotos, no Chile, o norte do Chile e do Peru, o arquipélago das Galápagos, o Taiti, a Nova Zelândia, a Austrália, as formações de corais da ilha de Keeling e as ilhas Maurício. De tempos em tempos, durante a viagem [...], Darwin pôde passar um total de três anos e um mês em terra, viajando muito, coletando exemplares de botânica, de vida orgânica, animais, fósseis, metais e minerais de todo tipo, registrando suas observações sobre fauna, flora e habitantes humanos. Ele caçou uma enorme variedade de pássaros e animais, perseguiu avestruzes, estudou os efeitos de um terremoto de grande escala, observou uma forte erupção vulcânica e visitou grandes extensões de florestas tropicais, altas montanhas, serras, pampas e outras savanas, rios, lagos e diversas regiões repletas de arbustos e matagais, bem como vilarejos de nativos, assentamento de colonos, minas e cidades”. Que expedição! Essa jornada darwiniana resultou na obra-prima A Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural ou a Preservação das Raças Favorecidas na Luta Pela Vida, título tão extenso quanto a odisseia do Beagle.

Segundo o historiador e jornalista Paul Johnson, “Darwin nunca buscou compreender o Universo como um todo, mas apenas seu conteúdo orgânico. [...] Não era apenas um homem cerebral e intuitivo, mas também altamente emocional. Ele sofreu muitos choques durante a viagem que alteraram permanentemente a forma como enxergava as coisas. [...] Darwin já notara que a natureza tendia a operar, e tudo acontecia tão gradualmente que o progresso natural pôde ser descrito como uma infinita sucessão de pequenos eventos, não de vibrantes atos de criação”. Conforme ele próprio concluiu em A Origem das Espécies, “há uma grandeza nessa noção de vida, com seus vários poderes [...]; e que, enquanto o planeta girava de acordo com a lei fixa da gravidade, a partir de um início tão simples, um número infinito de formas, as mais belas e maravilhosas, evoluiu e continua a evoluir”.

A meu ver, os olhos de Darwin, ainda que perspicazes e analíticos, não enxergaram as nuances mais profundas da natureza. Com olhar epistemológico anuviado, ele se deixou conduzir por certa interpretação duvidosa e parcial a respeito da origem e desenvolvimento das formas de vida na Terra, não percebendo na história da natureza as intervenções do Deus do Gênesis. Na postura de naturalista sistemático, envolveu-se tanto com os assim chamados “processos evolutivos” que perdera de vista os evidentes vestígios do Criador registrados em todo o planeta. Assim, por lhe faltar uma visão paradigmática de longo alcance, Darwin cometeu tremendos equívocos interpretativos resultantes de inferências erroneamente tiradas de fatos observados na natureza. Como alguém ponderou, ele “acertou no varejo e errou por atacado”.  

No raciocínio de Alister McGrath, “o mundo natural é conceitualmente maleável. Ele pode ser interpretado, sem nenhuma perda de integridade intelectual, de várias maneiras distintas. Alguns ‘leem’ ou ‘interpretam’ a natureza de forma ateísta. Outros a ‘leem’ de um modo deísta, vendo-a apontar para uma divindade criadora, que não está mais envolvida nos assuntos da natureza. [...] Outros adotam uma visão mais especificamente cristã, acreditando em um Deus que tanto cria quanto sustenta a natureza. Outros adotam uma visão mais espiritualizada, mencionando de forma mais vaga alguma ‘força de vida’. [...] Uma vez que a natureza pode ser interpretada de muitas maneiras, qual é a melhor interpretação? Uma vez que o Universo pode ser explicado de diferentes maneiras, qual dessas explicações é a melhor? Quão bem alguma dada estrutura extrai sentido do que é de fato observado? [...] O processo de observação, quer científico quer religioso, envolve tentar casar o que é observado com o que é acreditado e, depois, fazer quaisquer ajustes necessários”.

Do ponto de vista cristão, bíblico e criacionista, somos convidados à contemplação e ao estudo da natureza usando lentes que ultrapassem o horizonte materialista e darwinista, ampliando-o para uma teologia natural cujo empreendimento “é de discernimento, de ver a natureza de certa maneira, de enxergá-la por meio de um conjunto específico e particular de lentes teóricas”. Nesse sentido, o cristianismo, caracterizado por “sua elegância intrassistêmica e por sua fecundidade extrassistêmica”, funciona como um potente catalisador, conferindo estímulo e sentido à humanidade sempre em busca incessante por suas origens. Ou, na expressão de C. S. Lewis, o cristianismo é um sol iluminador “porque através dele eu vejo tudo ao meu redor”. Para quem adota tal perspectiva, aparecem perguntas desafiadoras e honestas: “Será que a fé cristã pode oferecer um relato mais rico e profundo do mundo natural do que suas adversárias pagãs ou ateias, já que os cristãos veem o mundo natural por um prisma teológico? O que dizer sobre a ambiguidade moral e estética da natureza? Ela não é caracterizada igualmente pela feiura e pela beleza? Pela violência, destruição e dor, bem como pela bondade? Como essa diversidade moral e estética da natureza pode ser disposta de forma teórica?”

Precisamos aprender a enxergar a natureza como um todo, visão que só a fé cristã é capaz de conferir. Nesse aspecto, resumidamente, Alister McGrath recomenda as lentes expansivas do cristianismo direcionadas ao mundo natural: “A fé cristã oferece uma forma alternativa de ver a natureza, que às vezes pode questionar as versões exageradas do método científico; contudo, ela acolhe a busca humana pela verdade e se vê como parte dela, seja científica, seja religiosa. [...] Ela espera encontrar, e de fato encontra, uma ressonância explicativa relevante com o que é conhecido da natureza por meio de outras fontes, ao mesmo tempo que insiste em seu direito de retratar e descrever a natureza em sua forma especial – como criação de Deus. [...] O cristianismo oferece um sol intelectual que ilumina um mundo que, do contrário, seria obscuro e enigmático: fornece uma ‘adequação empírica’ profundamente satisfatória entre a teoria e a observação, sugerindo que o mapa da realidade é fiel e passível de confiança.”

Verdadeiramente, “a coisa mais extraordinária que uma alma humana faz neste mundo é ver algo e relatar o que viu de forma clara”. Imbuídos do discernimento e dos insights da teologia natural e da revelação cristã, nossas perguntas acerca da natureza – muitas ainda não respondidas – servem de estímulo científico, filosófico e religioso, bem como de incentivo à pesquisa, lançando-nos numa viagem mais interessante e empolgante do que a circunavegação evolucionista feita por Charles Darwin. Para quem adota tal visão omnidirecional, a natureza revelar-se-á o “teatro da glória de Deus”.

Frank de Souza Mangabeira