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Generalizações e preconceito religioso |
O gaúcho Luiz Carlos
Prates é um conhecido comentarista de TV em Santa Catarina. Quando morava lá,
de vez em quando eu o via no jornal da RBS (afiliada da rede Globo) “cuspindo
fogo” em algo ou alguém. Esse é o estilo dele. Fala quase sempre de modo
exaltado e com tons irados. Em 2010, ele conseguiu seus 15 minutos de fama
nacional com um comentário pra lá de infeliz: disse que “hoje qualquer
miserável tem um carro”, e atribuiu a isso o alto índice de acidentes de
trânsito no País. Há quem diga que sua saída da RBS tenha sido motivada pelas
muitas reclamações com respeito a seus comentários polêmicos, como outro, de 2009, em que ele teria supostamente defendido a ditadura
militar, afirmando que o regime teria sido mais brando do que se noticia, e que
o país nunca cresceu tanto quanto nessa época, especialmente sob o comando do
falecido ex-presidente João Figueiredo. Recentemente, em sua coluna no portal Clica Tribuna (da minha cidade natal, Criciúma), ele publicou outra pérola de preconceito
e generalizações. Acompanhe:
“Estou até aqui de
ouvir sobre ‘religiosos’ corruptos, pedófilos, ordinários, safados e
sem-vergonha. Até aqui... Acabei de ler sobre um professor que foi demitido de
um colégio católico em Porto Alegre porque se negava a tratar de questões
religiosas em sala de aula. O professor cuidava de lecionar, e bem, a matéria
que lhe cabia; proselitismo religioso e ‘propaganda’ da cultura religiosa do
colégio não era com ele. Foi demitido, ele tinha que tratar de mensagens
religiosas, isto é, de condicionamentos terroríficos como costumam ser as
doutrinas religiosas. E sobre isso sei muito bem, como ‘vítima’...
“Essa notícia me faz, mais uma vez, voltar ao meu ponto de vista, do qual não
me afasto uma única vírgula: a melhor religião, a única a meu juízo, é a
decência, a honestidade. E essa ‘religião’ tem que ser ensinada em casa pelo
pai e pela mãe, por ninguém mais. Uma criança educada para ser decente,
honesta, será boa, será confiável, será amiga leal, funcionária dedicada, boa
cidadã, terá, enfim, cadeira no ‘céu’. Ando até aqui de sepulcros caiados,
religiosos da boca para fora, mas ordinários da cabeça aos sapatos. Religiosos
que se desmentem pelas ações, pelas intenções que lhes escapam no
comportamento. Que vão mentir nos quintos...
“O que as religiões precisam fazer é dizer que a mulher é a geradora da vida, a
verdadeira Natureza na natureza; precisam dizer que a mulher não é o resultado
de uma costela, que não precisa nem deve ser submissa a um marido-chefe, a um
mandão impotente. É isso o que ‘todas’ as religiões têm que pregar; se o
fizerem, pronto, estará resolvido o problema da submissão da mulher. Sem essa
de que a mulher é a malícia e a origem do pecado. Digam isso na minha delegacia
e depois chamem o dentista... Safados.
“Dignidade, decência e honestidade bastam. Quem for educado por esses valores,
insisto, tem cadeira garantida no ‘céu’, o mais é firula de condicionamentos
indevidos para fazer de pessoas ‘rebanhos’ e ‘contribuintes’ de dinheiro de
fins escusos...”
Nota:
Sempre deixei pra lá esse comentarista, porque não concordo com seu estilo
espalhafatoso bem de molde a agradar as massas que acabam se sentindo “vindicadas”
pelo homem bravo da televisão, e porque poucas vezes concordei com suas
opiniões extremadas e superficiais – embora defenda o direito que ele tem de
emiti-las. Mas não posso deixar de comentar o que ele escreveu acima, nesse texto
eivado de preconceito, generalizações e tergiversações. E faço isso em partes:
1. Também estou “até
aqui” de jornalistas, apresentadores, comentaristas que se valem de sua tribuna
midiática para destilar ódio, preconceito e generalizações. Como Prates, também
detesto religiosos que jogam o nome de Jesus na latrina; que se valem de seu
posto e de suas vantagens para enriquecer de forma ilícita ou obter diabolicamente
a satisfação de seus desejos doentios. Mas isso não me faz tapar os olhos para
os muitos religiosos que doam a vida a uma causa nobre; que se deixam gastar em
amor ao semelhante; que não ficam apenas falando, mas que fazem algo de
relevante pelos menos favorecidos. Não deixo de discernir entre o joio e o
trigo e procuro não julgar o todo pela pior parte. Era de se esperar de um
jornalista visão mais ampla das coisas e das pessoas; que não pensasse com o
fígado e sim com o cérebro. Que fosse mais analítico e menos apaixonado.
2. Qualquer um sabe (ou
deveria saber) que escolas confessionais defendem e ensinam as doutrinas e a
filosofia da instituição que as mantêm. É assim com as escolas evangélicas e é
assim também com as católicas. E quem aceita trabalhar numa delas (ou se
matricular numa delas) deve saber que a lei permite esse tipo de coisas e que
se espera do funcionário um mínimo de identificação ou, pelo menos,
aquiescência com os ideais da instituição. Não sei exatamente o que aconteceu
naquela escola católica de Porto Alegre, mas sei que a imprensa costuma
exagerar quanto o assunto é religião; que os fatos costumam ser distorcidos e
que o Prates pode ter ampliado a questão para servir de gancho para seu
comentário. E, se for um fato isolado, pior ainda.
3. Doutrinas religiosas
não são, necessariamente, “condicionamentos terroríficos”, especialmente se se
tratam de doutrinas bíblicas, pois têm como âmago a redenção em Cristo e não a
escravidão. Doutrinas bíblicas corretamente compreendidas têm, na verdade,
libertado milhões e milhões de pessoas escravizadas pelos vícios, pelo pecado e
pela falta de esperança. Mas Prates deixa escapar o motivo (talvez inconsciente)
de sua ira virulenta: “Sobre isso sei muito bem, como ‘vítima’.” Prates, por
favor, trate primeiro desse seu trauma (e não questiono a legitimidade de sua
revolta, pois desconheço o que a motivou e motiva) antes de avacalhar com
religiosos que nada lhe fizeram de mal. Se você foi vítima de algum sistema
religioso ou de algum falso cristão, não apedreje quem nada tem que ver com
isso.
4. “Essa notícia me
faz, mais uma vez, voltar ao meu ponto de vista, do qual não me afasto uma
única vírgula.” Isso é intransigência imprópria para um homem da comunicação,
que deveria ter a mente aberta e estar disposto a mudar de ideia, quando
necessário ou quando os fatos assim o determinarem. Ao ler a notícia, Prates
volta ao seu ponto de vista inamovível em lugar de se permitir ver a situação
com outros olhares. Julga e sentencia por meio de sua visão apriorística, em
lugar de analisar o fato isolado, dentro de seu contexto.
5. Decência e
honestidade não são religião, embora possam (e devam) derivar dela. Decência e
honestidade são qualidades que devem ser ensinadas no lar e reforçadas pela
escola e (quem dera) pela mídia. Prates não é totalmente honesto em sua análise
(posto que coloca todos os religiosos no mesmo “saco”), mas prega a honestidade
como religião. Será que a educação para a decência e a honestidade é
suficiente? Tenho lá minhas dúvidas... Por quê? Porque conheço um pouco da
natureza humana (afinal, conheço-me um pouco) e sei que nossa inclinação
natural é para o mal e não para o bem, a despeito de quão polidos tenhamos sido
pela boa educação. Posso trazer à memória vários nomes de ditadores, déspotas, tiranos
que tiveram boa educação no lar e na escola e, no entanto, fizeram o que fizeram.
Decência e honestidade ajudam? Claro que sim, mas sei que não são suficientes.
A atração do pecado é muito maior do que a força de vontade e precisa de uma
força opositora muito maior. E essa força não está em nós.
6. Jesus também “andava
até aqui” com os sepulcros caiados do tempo em que Ele andou na Terra – aliás,
foi Ele quem cunhou essa expressão. E foi Ele quem fundou uma religião que
visava, entre outras coisas, tornar as pessoas íntegras, amorosas, perdoadoras,
convertidas. Pessoas que fossem por fora o que são por dentro. Mas Prates,
infelizmente, parece desconhecer esse tipo de pessoas – ou prefere não
mencioná-las para não estragar sua crônica.
7. Prates não entendeu
nada de sua leitura do Gênesis. Deus criou a mulher a partir da costela de Adão
justamente para evidenciar a igualdade dela com ele. O osso usado não foi da
cabeça (superioridade) nem do calcanhar (inferioridade), foi retirado do lado
do homem (igualdade, companheirismo, mesma essência). E, de fato, nenhuma
mulher deveria ser submissa a um marido-chefe, mas respeitar e amar um marido
que fosse a verdadeira imitação de Cristo, assim como os cristãos convertidos
se “submetem” por amor ao senhorio de um Deus que morreu por eles. O homem que
amar uma mulher a ponto de dar a vida por ela e viver por ela terá conquistado
o respeito dela e ambos exercitarão a mútua submissão motivados pelo amor.
Prates deveria estudar a Bíblia em lugar de ficar julgando a religião pelo
comportamento inapropriado de alguns cristãos mal intencionados, machistas e
não convertidos. Para não cometer o mesmo erro dele, não vou dizer por aí que
comentaristas de TV são todos preconceituosos, injustos e generalistas.
8. “Sem essa de que a
mulher é a malícia e a origem do pecado. Digam isso na minha delegacia e depois
chamem o dentista... Safados.” Quem diz que a mulher é a origem do pecado não
sabe o que diz. A origem do pecado está com um anjo que se rebelou contra Deus
(mas Prates também deve achar que isso é um mito e aí fica sem uma explicação
apropriada para a origem do mal). Na verdade, quem mais associa mulher à
malícia são justamente as emissoras para as quais Prates já trabalhou e
trabalha (hoje ele está no SBT). São as emissoras que levam ao ar humorísticos
maliciosos que transformam a mulher em objeto de exposição com roupas sumárias,
tudo para alavancar a audiência. São as emissoras que veiculam comerciais que
comparam mulheres a automóveis e a bebidas alcoólicas, coisificando-as e as
transformando em algo que deve ser consumido, usado. Mas por que Prates não
vocifera contra isso? Por que ele não pode falar contra a “doutrina” (linha
editorial) de sua empresa? Talvez pelo fato de que o salário dele vem, também,
dos milhões injetados na conta de seus empregadores pelos anunciantes.
9. Finalmente, no último parágrafo de seu texto, Prates parte para o lugar
comum segundo o qual religião é sinônimo de roubalheira. Outra generalização infeliz
que iguala os televangelistas da teologia da prosperidade (que, aliás, também
dão muito lucro para emissoras seculares) com religiosos sérios que administram
sábia e responsavelmente os recursos a eles confiados, haja vista as muitas obras
de caridade levadas avante com esses recursos e os grandes esforços para levar
a mensagem de esperança a todos os cantos do mundo. E tudo isso é feito com
muito sacrifício por pessoas desprendidas, enquanto outros pensam que estão
dando grande contribuição à sociedade apontando suas metralhadoras giratórias
carregadas de palavras de ódio (“safados”, “chamem o dentista”, “vão mentir aos
quintos”), sentados em suas bancadas e garantindo o salário no fim do mês.