É um antigo provérbio popular, / Mas a verdade ‘inda perdura:
/ “Em todo cálice de felicidade, / No fundo – inexorável, inexplicável / Jaz
latente uma gota de amargura.”
Se a tempestade ruge ao teu redor, / Ameaçando toda a tua estrutura,
/ Não temas – Todo cálice de felicidade / Traz no fundo – invisível,
imperceptível / Borbulhante, uma gota de amargura.
Se em meio à glória e ao triunfo, / Há uma dor que te
tortura, / Não lamentes – Heróis e mártires / Ergueram a taça da vitória, Tendo
no fundo, insondável, implacável, / Uma gota de amargura.
Mas quando um dia, a luta aqui findar, / E após a escura
noite o Sol raiar. / E a angústia, da Terra, extinta for.
Jamais vestígios de tristeza ou dor. / Deposta a cruz que nos
tortura, / Nos portais da eternidade, / O cálice de felicidade / Receberás das
mãos do Rei, sem jamais, gota alguma de amargura.
Não é difícil concluir que o belo poema acima, cujos versos
nos tocam pela profunda sensibilidade, trata de um tema universal: o sofrimento
e a insistente dor humana. Sofrer não é poético; a poesia, porém, por ser
também universal, foi a melhor forma que encontrei para iniciar uma conversa
sobre algo difícil e misterioso, que nenhuma teoria explica. As linhas do
poema, entretanto, ultrapassam o sofrimento em si para falar de um assunto
muito mais elevado e importante: Deus em face do choro de todos nós.
Na experiência do sofrer, apresenta-se diante do ser humano a
oportunidade de refletir acerca do bem e do mal, de pensar sobre realidades
nunca dantes imaginadas e de decidir de que lado ficará no grande conflito da
vida. O sofrimento, no entanto, torna-se a pedra de tropeço para muitos que
questionam o caráter de Deus. John Stott, conhecido teólogo, afirmou: “O fato
do sofrimento indubitavelmente tem sido o maior desafio à fé cristã em todas as
gerações. Sua distribuição e grau parecem ser inteiramente ao acaso e,
portanto, injustos. Os espíritos sensíveis perguntam se o sofrimento pode, de
algum modo, reconciliar-se com a justiça e o amor de Deus.” Deixando de lado a
teologia e a filosofia do sofrimento e adentrando corajosamente na fornalha
ardente deste mundo, vamos, então, à luz da fé e da revelação, suportar o calor
de um assunto sobre o qual, pela própria natureza, muitos evitam conversar,
exceto os sofredores mais sensíveis.
Para falar de dores (físicas, psicológicas ou morais)
precisa-se recorrer à Bíblia, pois em nenhum outro livro o tema é abordado com
tanta honestidade. Já na infância do mundo, no contexto de uma batalha de
grandes proporções, notamos uma espécie de profecia sobre a universalidade da
dor, em que sofrimento e salvação aparecem mesclados (Gn 3:15-19). Na Palavra
de Deus, o homem de fé alimenta suas esperanças e certezas, sabendo que “as
aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há
de ser revelada” (Rm 8:18). Escolhemos também a Bíblia, em detrimento de outra
literatura, porque toda a Escritura, como uma revelação de Deus (assim cremos),
contém capítulos dedicados ao assunto da dor humana, não teorizada, e sim
vivenciada tanto por crentes quanto por descrentes. Das várias passagens, no
entanto, centraremos nossa atenção naquela que inspirou o título deste texto: a
história dos três jovens hebreus que enfrentaram o fogo consumidor de uma
fornalha. Pela riqueza de detalhes, a narrativa sagrada, localizada no terceiro
capítulo do livro de Daniel, foi o “fragmento do sofrimento” separado para uma
reflexão.
Três jovens, cativos do reino de Judá e moradores da corte de
Nabucodonosor, por não obedecerem à ordem real de se prostrar perante um ídolo,
foram injustamente lançados na direção do “inferno”: o grande forno de chamas
preparado para quem desafiasse um autoritário decreto. Daniel, amigo dos
rapazes, não se encontrava presente. Onde estava? Os motivos que retiraram o
profeta desse evento não são revelados. Possivelmente, por alguma razão, ele
havia se ausentado de Babilônia ou estava impossibilitado de comparecer ao
local da assembleia.
Mas por que Sadraque, Mesaque e Abede-Nego estavam no campo de
Dura? Porventura foram atrás do sofrimento? Numa atitude masoquista buscaram a
dor para si mesmos? Não! Não seriam tão tolos assim. Os jovens hebreus faziam
parte da lista de homens inteligentes e importantes da corte, convocados por
Nabucodonosor para uma “reunião” (Dn 3:2, 12). Sabiam eles desse encontro
idolátrico, mesclado talvez com negócios? Provavelmente. Entretanto, após a
convocação, numa ação corajosa enfrentaram a terrível “imagem” do sofrimento e
o chamado da dor. Eles agiram diferentemente da maioria das pessoas que convoca
a dor sobre si por não desejar viver dentro dos padrões da vontade de Deus.
Na história da fornalha ardente, o primeiro ponto a
considerar é a causa do sofrimento. Sobre isso, a Bíblia traz a resposta real e
direta. Estabelecendo um paralelo entre a situação dos hebreus e a do patriarca
Jó, discernimos a causa do mal a desabar sem aviso sobre eles: a vontade
perversa de um ser maligno que obteve consentimento divino para executar seus
planos sombrios. Satanás, “o monstro metafísico”, autor do pecado e do caos
reinante no mundo, é o agente responsável pelo sofrimento. No caso de Jó, ele
esteve envolvido diretamente (Jó 1:6-19; 2:7); com os jovens hebreus, ele moveu
instrumentos humanos na obra do mal: os astrólogos da corte (Dn 3:8).
Assim, identificar a causa ou o autor do sofrimento nos ajuda
a compreender tanto o caráter de Deus (na maioria das vezes nublado por nossas
lágrimas) quanto o de seu arqui-inimigo. Portanto, quando em nossas dúvidas
perguntamos: “Senhor, não semeaste Tu no Teu campo boa semente? Como então está
cheio de joio?”, atentemos para a resposta: “Um inimigo é quem fez isso” (Mt
13:28). Sim, um inimigo lançou a semente da dor e do mal no campo do mundo. Tal
semente gerou “ervas daninhas” que se espalharam pela face da Terra e entraram
no jardim de todos nós. Por esse motivo, o sofrimento é uma experiência
universal. Cada ser humano deve estar ciente disso, como esteve Davi ao
declarar que “o inimigo persegue a minha alma, abate-me até o chão; faz-me
habitar na escuridão” (Sl 143:3). Certamente, Deus não é o autor do sofrimento,
embora Ele administre por Suas mãos misericordiosas e justas as tragédias
individuais e coletivas da humanidade. A dor procede de “Babilônia”, da cidade
da confusão (Dn 3:1), e não de “Jerusalém”.
Naturalmente corremos atrás de explicações para o sofrimento.
Frequentes são as perguntas. “Por quê?”, “O que foi que eu fiz para merecer
isso?” De fato, “a dor é o ponto de interrogação transformado em um anzol no
coração humano”. Almejamos uma resposta convincente, muitas vezes inexistente.
Há motivos para a escassez ou mesmo ausência de explicações. Tudo que se
explica se justifica. Como Deus não quer justificar o sofrimento, Ele deixa as
explicações de lado, preferindo postar-Se ao lado de cada sofredor para
compartilhar do fogo da fornalha, tal qual aconteceu na experiência dos três
hebreus. Mas o silêncio divino não significa falta de respostas. O crente “sabe
que, frente ao mal, toda explicação humana é irrisória, e que aqui e agora
somente se impõem a resistência, a fraternidade e a esperança. Para ele, crer,
ainda que não resolva o problema do mal, representa uma superação do problema
enquanto espera sua solução definitiva”.
Nos piores momentos da vida o importante é buscar sentir o
abraço divino, manifestado no senso da presença do Espírito Santo – o
Consolador. Ele vem para aplicar o bálsamo aliviador sobre as “queimaduras” e
as chagas ardentes causadas pelo diabo. Nessas horas, nas palavras da escritora
cristã Ellen White, só “precisamos saber acerca de um braço todo-poderoso que
nos manterá, e de um Amigo infinito que tem piedade de nós. Necessitamos de nos
agarrar à mão aquecida pelo amor, confiar em um coração cheio de ternura”. Isso
é melhor do que qualquer explicação. Isso representa a resposta de Deus a
partir de nossa resposta diante da dor.
Empurrados para dentro
da fornalha
Para entrar no reino de Deus, importa passar por muitas
tribulações (At 14:22) derivadas, em última instância, do resultado de se viver
em um mundo caído, alienado do Criador. Por isso, o apóstolo Pedro escreveu:
“Amados, não estranheis a ardente prova que vem sobre vós para vos tentar, como
se coisa estranha vos acontecesse. Mas alegrai-vos...” (1Pd 4:12, 13). Alegrar-se
no sofrimento? Como?! Que recomendação aparentemente cruel e insana! – diriam
muitos. Na dor, procuramos chorar, não sorrir. Porventura, adoramos um Deus
sádico que nos manda sentir “prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas
necessidades, nas perseguições e nas angústias”? (2Co 12:10).
O evangelho, aos olhos do homem natural, constitui uma
loucura. No entanto, para o homem de fé, por mais estranho que pareça, até
mesmo o sofrimento pode redundar numa espécie de gozo espiritual, por causa do
motivo (o amor a Cristo) e do resultado produzido (a glória de Deus). Logo, a
dor, que em si mesma não traz nenhuma virtude ou felicidade, tem na vida do
cristão uma motivação e um resultado transcendentais. Ela só pode ser aceita e
compreendida no contexto do conflito cósmico entre o bem e o mal. A experiência
sofredora dos três hebreus nos expõe essa realidade.
Ninguém, em sã consciência, busca voluntariamente sofrer.
Naturalmente fugimos da dor porque não fomos criados para ela. Até mesmo Cristo
que, em amor, decidiu sofrer pela humanidade, chegou a suplicar ao Pai: “Não
deixe Eu beber o terrível cálice, caso exista outro meio de salvar o ser
humano!” Sadraque, Mesaque e Abede-Nego não buscaram voluntariamente entrar na
fornalha. Foram coagidos por uma imposição injusta e maldosa. A causa estava na
recusa em trair a consciência diante de uma ordem “legal”, mas de consequências
espirituais danosas. Movidos pelo princípio “mais importa obedecer a Deus do
que aos homens” (At 5:29), destemidamente eles transgrediram o mandado da mais
alta autoridade da Terra, suportando “alegremente” os resultados. Foram para o
seu calvário, a prova de fogo.
Num momento de causar medo a qualquer pessoa, esses homens,
cheios de confiança diante das ameaças de Nabucodonosor, “zombaram” do castigo
imposto. Por conseguinte, despertaram a ira do rei, sendo conduzidos em direção
da morte certa. Já na porta da fornalha, antes de passarem pelas chamas
devoradoras, eles compreenderam coisas misteriosas e sublimes sobre o sofrimento
e Deus, lições que o Senhor registrou em Sua Palavra para o nosso benefício, “pois tudo
que outrora foi escrito, para o nosso ensino foi escrito, para que pela
paciência e consolação das Escrituras tenhamos esperança” (Rm 15:4).
Primeira lição: O sofrimento um dia chega e, talvez,
inesperadamente. Enfrente-o com fé e dê uma resposta positiva a ele.
“Quem é o Deus que vos poderá livrar das minhas mãos?” (Dn
3:15, última parte) é o desafio a cada pessoa. Não adianta fugir da dor, ela
sempre nos alcança em algum momento da existência, pois “toda a criação geme”
(Rm 8:22). O decreto do sofrimento é imposto sobre os “povos, nações e homens
de todas as línguas” (Dn 3:4).
O sofrimento convoca todo ser humano. Algumas vezes podemos
pressentir sua chegada; outras, não. Inesperadamente, ele talvez apareça sem
nenhum aviso (Ec 9:12). Como lhe responderemos? Com medo consumidor, desespero,
desânimo insistente, reclamações, dúvidas cruéis, revolta? Realmente, esse
arsenal poderoso ameaça qualquer um. Quando ouviram a “música do sofrimento”
anunciando a chegada dele, todos se prostraram com timidez e medo (Dn 3:7),
exceto três pessoas corajosas. Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, humanos como
nós, elevaram-se acima das ameaças e, erguidos, reagiram dando uma resposta
ousada, cheia de fé e resignação (Dn 3:16-18). O que disseram?
Segunda lição: Abandone-se nas mãos de Deus, deixe
com Ele as consequências e não faça cobranças arrogantes.
“Se formos lançados na fornalha de fogo ardente, o nosso
Deus, a quem nós servimos, pode livrar-nos dela [...]. Se não...”
Os hebreus injustiçados em momento algum duvidaram do poder
de Deus. Aceitaram, contudo, o resultado, qualquer que fosse: livramento ou
morte. Para eles, o importante era ser fiel à consciência e preservar seus
princípios espirituais. Provou-se aqui o efeito prático e positivo da fé.
Muitos de nós, quando afligidos, chegamos a reclamar para Deus uma solução. Se
ela não chega, abandonamos a confiança e desistimos dEle. Diversas teologias populares
andam ensinando por aí que Deus tem a obrigação de salvar o cristão e lhe dar
prosperidade. “Pare de sofrer!” é o slogan
enganoso de certos credos e filosofias de autoajuda. Os jovens cativos, porém,
sabiam que “no mundo tereis aflições” (Jo 16:33). Conscientes disso, aceitaram
o enfrentamento com bom ânimo. Semelhantemente, mesmo sentindo indícios de
medo, dúvida e apreensão (afinal, somos humanos e Deus conhece nossa
estrutura), lancemos sobre o Senhor toda a ansiedade, confiando na promessa de
que Ele cuidará de nós. As mãos dos hebreus estavam amarradas, não podendo
eles, humanamente, fazer nada para se livrar. Na maior parte dos casos, quando
nossas mãos são impotentes para nos salvar, só mesmo Deus é capaz de agir em
nosso favor.
Terceira lição: O sofrimento pode se intensificar,
mas a atitude de fé, ainda assim, traz resistência.
“Então Nabucodonosor [...] ordenou que se acendesse a
fornalha sete vezes mais do que se costumava” (Dn 3:19).
Imediatamente, após a resposta dos hebreus ao rei, foi dada a
ordem para aumentar o calor da fornalha. É algo a se pensar. Frequentemente,
quando reagimos ao sofrimento, este também pode se contrapor a nós e aumentar
“sete vezes” (ou mais) a sua ira. “As bruxas andam soltas”, é a frase na boca
de vários sofredores. Acontece de eventos drásticos virem em rápida sucessão
sobre a vida de alguém, intensificando a dor até o limite da resistência
humana. Não foi assim com o paciente Jó: uma tragédia após outra? Todavia,
mesmo em níveis extremos, quando estamos fortemente atados pelas cordas, sem
condições de fazer nada, nossa fé no cuidado de Deus é capaz de crescer e
superar o calor da fornalha, dando-nos coragem e refrigério. Nas palavras do
apóstolo Paulo, “em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas
não desanimados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não
destruídos” (2Co 4:8, 9).
Quarta lição: O sofrimento atinge o ser por
inteiro e, rapidamente, afeta aquilo que nos é mais precioso.
“Então estes homens foram atados com os seus mantos, suas
túnicas, seus turbantes e suas vestes, e foram lançados na fornalha de fogo
ardente. Porque a palavra do rei era urgente...” (Dn 3:21, 22).
Quando entramos na fornalha, aquilo que nos pertence vai
conosco. Todas as coisas a nos envolver também são vitimadas. A avalanche da
dor ameaça nossa proteção e todos os nossos tesouros; atinge as defesas,
deixando-nos vulneráveis. Procura afetar nossa cobertura protetora e mexer com
o caráter (vestes). Jó perdeu propriedades, servos, esposa e filhos. Seu
próprio corpo foi afetado. Ficou “nu”, restando-lhe apenas o bem mais caro: a
vida. Mas quem decide se perderemos algo, mesmo a vida, é Deus. Ele diz: “Não
temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma. Temei antes aquele que
pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mt 10:28). O corpo
morto será devolvido gloriosamente na ressurreição; a alma (o caráter)
destruída permanecerá morta para sempre, levando consigo o corpo. No caso dos
três rapazes, o sofrimento veio também para arrebatar deles as coisas mais
próximas, até chegar ao seu próprio corpo; a situação, entretanto, foi outra.
Cumpriu-se neles, literalmente, a promessa: “Quando passares pelo fogo, não te
queimarás, nem a chama arderá em
ti. Pois Eu sou o Senhor teu Deus, o Santo de Israel, o teu
Salvador” (Is 43:2, 3). Salvando o homem da fornalha, Deus promete deixar
intacta a vestidura do seu caráter, a única coisa que o fogo do sofrimento não
pode destruir.
Quinta lição: O sofrimento, quando suportado com
fé, liberta o homem de suas amarras.
Ao serem empurrados, atados, para o interior da fornalha, o
milagre aconteceu. O fogo perdeu seu poder consumidor sobre os jovens. O rei e
a multidão expectantes ajuntaram-se em espanto, a fim de verificar a salvação
provida. “Nem um só cabelo de suas cabeças se tinha queimado, nem os seus
mantos se mudaram, nem cheiro de fogo passara sobre eles” (Dn 3:27). Não
sofreram dano. Só uma coisa foi queimada: as cordas que os prendiam.
Talvez, passando pela crise e pela dor, seja intenção divina
nos libertar de algumas amarras. Quais são elas? A experiência de cada um
identificará. “Farei passar esta terceira parte pelo fogo, e a purificarei,
como se purifica a prata, e a provarei, como se prova o ouro. Ela invocará o
Meu nome, e Eu a ouvirei; direi: É Meu povo, e ela dirá: O Senhor é meu Deus”
(Zc 13:9).
A disciplina de Deus visa ao aperfeiçoamento de nosso
caráter, muitas vezes aprisionado pelas cordas do pecado. Quando, sob a
correção do Senhor, é permitido que entremos na fornalha, o fogo preparado para
destruir por inteiro consome apenas a escória, deixando o ser humano totalmente
livre do seu mal. O “ouro provado no fogo” apresenta-se sem impurezas e o ser
humano sai da fornalha “mais raro do que o ouro puro” (Is 13:12).
Sexta lição: Unidos no sofrimento.
“Estes três homens, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, caíram
atados dentro da fornalha sobremaneira acesa” (Dn 3:23).
Há, ainda, uma importante lição a aprender dessa história: a
fraternidade na hora da dor. Não por acaso, supomos, os jovens cativos formaram
um trio dentro do fogo, acompanhados de uma quarta Pessoa. Os números na Bíblia
vão além de uma quantidade exata. Expressam realidades simbólicas de alto valor
espiritual e teológico. Três é o número da unidade e da Trindade. Os três
jovens, numa atitude fraterna e solidária, deram-se as mãos no momento da
angústia. Unidos encorajaram uns aos outros, alimentando-se mutuamente de fé e
confiança em Deus.
Honrando tal “reunião”, o quarto Homem, que tomou o lugar de
Daniel, cumpriu Sua promessa de que, em qualquer circunstância, “onde estiverem
dois ou três reunidos em Meu nome, ali estarei Eu no meio deles” (Mt 18:20). E
ali Se manifestou o Profeta celestial a anunciar o livramento. A própria
Trindade Se fez representar na pessoa de um de Seus membros para mostrar que a
humanidade unida entre si e com Deus é capaz de superar a dor. Aqui o número
quatro atinge um valor de totalidade e plenitude. E totalidade plena só pode
ser achada na Divindade. Por isso, no olhar do rei pagão, o quarto membro da
fornalha era “semelhante a um filho dos deuses” (Dn 3:25). Ou Deus.
O “tempo de angústia” chega para cada ser humano. Alguns
entram sozinhos na fornalha; outros vão em grupos, mas todos querem alguém por
perto para consolar. O calor que uns suportam, às vezes, é aumentado “sete
vezes mais”, tornando as dores excruciantes. Nessa hora da crise, cada pessoa
corre em busca de ajuda. Precisa de ombros, mãos e olhar compassivo; necessita
do ser inteiro de seu próximo, não só de lágrimas. Chorar com os que choram é
um mandamento tão sagrado quanto amar; é uma das formas de amar. Mas chorar,
nesse contexto, não significa somente derramar lágrimas diante da dor alheia e
depois ir embora: é sofrer com os que sofrem, sentindo compassivamente suas
agonias, prestando ajuda e doando-se sempre que necessário. Chorar com os
sofredores é colocar-se no lugar deles. Os jovens hebreus foram juntos para o
meio do fogo. No momento do sofrimento de alguém, sejamos solidários, dando o
consolo humano e indicando o “quarto consolo”, o divino, cientes de que somente
este tem poder de livrar.
Sétima lição: O sofrimento não dura para sempre.
“Então Sadraque, Mesaque e Abede-Nego saíram do meio do fogo”
(Dn 3:26).
Embora este mundo seja um vale de lágrimas (ou de chamas),
sairemos um dia dele. A dor pode ser breve ou longa, mas terá seu fim. Cabe-nos
aguardar em esperança e fé o cumprimento da promessa de que “não haverá mais
pranto, nem clamor, nem dor” (Ap 21:4). Essa promessa não se limita à vida
futura. Mesmo agora, numa existência atribulada, o amor de Deus tem a
capacidade de anular o poder do fogo e nos convocar a sair da fornalha, pois
“no Seu favor está a vida; o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela
manhã” (Sl 30:5). Na escuridão do sofrimento existe uma pausa e a promessa de
um feliz e radiante amanhecer. Assim como Deus nos lembra do repouso semanal
(Êx 20:8-11), Ele também nos recorda de que “resta um repouso para o povo de
Deus” (Hb 4:9) com o cessar do sofrimento. A sétima lição, portanto, é a
promessa de que descansaremos da dor.
A mais importante lição
“Então o rei Nabucodonosor se espantou, e se levantou
depressa, e disse aos seus conselheiros: Não lançamos nós três homens atados
dentro do fogo? Responderam ao rei: É verdade, ó rei. Disse ele: Eu, porém,
vejo quatro homens soltos, que andam passeando dentro do fogo, sem nenhum dano,
e o aspecto do quarto é semelhante ao filho dos deuses” (Dn 3:24, 25).
Diante de uma tragédia, perguntamos quase sem exceção: “Onde
estava Deus?” Onde Ele estava quando aqueles aviões, carregados de terroristas,
causaram a morte de milhares de pessoas no Onze de Setembro? Por onde andava
Deus quando ondas gigantes devastaram quilômetros de terras na Ásia, provocando
uma catástrofe destruidora e ceifando inúmeras vidas? O que o Senhor fazia no
momento em que uma garotinha inocente era atirada do alto de uma janela por
alguém tão cruel? Por que aquele rapaz, ainda jovem, perdeu drasticamente a
vida? “Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? Em que mundo, em que estrela
Tu Te escondes?”, indagava angustiosamente o poeta. O próprio Cristo chegou a
questionar: “Deus Meu, Deus Meu, por que Me desamparaste?” (Mt 27:46). São
clamores ansiosos por uma resposta. Diante da confusão emocional que o
sofrimento causa em nossa mente, não adianta responder à dor com argumentos bem
elaborados. A única resposta se encontra na presença do “Deus conosco”.
Recorro ao alto dos Céus, a Quem me fez, / Com o hálito de Seus lábios sem
dolo, / Para estar quieto em face do consolo, / Com suficiente fé, plena
honradez. / Setas de dor me acintam vez após vez, / E pedras pendem dentro do
miolo; / Quero crer sempre, mas me sinto tolo / Se a inédita dor vem nítida à
tez.
Interdita o temor que me acalora / Para eu dar graças pelo
que me trazes: / Das entranhas tiro o óleo que unja as frases, / E então,
sustido após todas as fases, / Tocado por Teu zelo, naquela hora / Te adorarei
mais que hoje a alma Te adora!
O Senhor está no meio do fogo. Anda conosco em todas as
tragédias e participa de nossas angústias.
O quarto Homem: um Deus
sofredor
“Em toda a angústia deles foi Ele angustiado” (Is 63:9).
Onde está Deus, então, pergunta-se mais uma vez? Respondemos
de novo: Está ao nosso lado na fornalha, sofrendo também, porque só um Deus
sofredor pode nos ajudar (Is 53, 2Co 5:19). Se compreendermos, pela fé, tal
sublime e profunda revelação, seremos capazes de passear com Ele entre as
chamas poderosas, sem gritos, sem desespero, sem angustiosos porquês. À maneira
de Deus receberemos o livramento, imediato ou não.
Qualquer história menciona seu(s) personagem(ns)
principal(is). No episódio da fornalha, o foco é a quarta Pessoa – o
Protagonista Sofredor, e não os três jovens provados. Por esse fato, nossa
visão precisa estar fixa em outro ponto; não nos aspectos secundários da dor.
Evitemos olhar detidamente para os elementos terríveis da fornalha: as amarras
que nos prendem, as assustadoras chamas consumidoras, a multidão que desampara
ou os carrascos cruéis que nos forçam a entrar no fogo. Tampouco concentremos a
atenção em nós mesmos, numa atitude de autocomiseração. Tudo isso confunde o
homem e o arrasta para o desespero. De igual modo, desviemos um pouco a vista
dos consoladores humanos, pois somos chamados a contemplar o Personagem central
da história do sofrimento, Jesus (Hb 12:2). Os detalhes devem ser
desconsiderados para que o “quarto Homem” seja notado, tal como foi pelo
próprio Nabucodonosor. E notar Jesus não é somente vê-Lo como o Deus protetor;
é percebê-Lo também como Deus sofredor; não é só enxergá-Lo “semelhante ao
filho dos deuses”. Ele deve ser visto, também, como “Filho do homem”.
Os três judeus representam a humanidade sofredora, mas o
outro Humano é Deus que foi “empurrado” para dentro da fornalha, sem ninguém
para livrá-Lo. Paradoxo sublime! A fornalha erigida pelo ser humano obrigou-O a
passar pelo “fogo”, conforme narra a Bíblia em suas páginas. E passando pelas
labaredas, o Senhor acumulou sobre Si as dores humanas e as divinas, suportando
um peso inimaginável.
Os antigos serviços sacrificais e a cruz constituíam “uma
revelação, aos nossos sentidos embotados, da dor que o pecado, desde o seu
início, acarretou ao coração de Deus”. E ainda hoje, “cada desvio do que é
justo, cada ação de crueldade, cada fracasso da natureza humana para atingir o
seu ideal, traz-Lhe pesar”. Fazem-No experimentar outra vez o ardor do
sofrimento. Acerca do sofrimento de Deus em Cristo, significativa é esta
declaração de Ellen G. White: “O homem não foi feito um portador do pecado, e
jamais conhecerá o horror da maldição do pecado sofrido pelo Salvador. Dor
alguma pode suportar qualquer comparação com a dor dAquele sobre quem caiu a
ira de Deus como força esmagadora. A natureza humana não pode resistir senão a
uma limitada porção de prova e experiência. O finito só pode suportar a medida
finita, e a natureza sucumbe; a natureza humana de Cristo, porém, possuía maior
capacidade para o sofrimento, pois o humano existia na natureza divina, e
criava uma capacidade de sofrimento para suportar aquilo que era resultado de
um mundo perdido”.
Em Jesus, o “madeiro verde” e resistente (Lucas 23:31) que o
fogo não consumiu, o “semelhante ao filho dos deuses” nas palavras do
impressionado Nabucodonosor, acha-se o exemplo vivo de fortaleza e a esperança
humana do triunfo definitivo sobre o sofrimento. O Homem de dores padeceu como
ninguém (Is 53), mas garantiu a vitória final. A própria fornalha ardente pode
ser entendida como uma predição sobre o Calvário. Ali também estavam
prefigurados Seus sofrimentos e Sua vitória a acontecerem séculos depois no
Gólgota. Participando da natureza divina, mediante a ligação com a Videira,
nós, os ramos, seremos igualmente capazes de permanecer resistentes na hora da
extrema provação.
Outra fornalha
Hananias (“o Senhor tem sido misericordioso”), Misael (nome
derivado de Miguel: “Quem é igual a Deus?”) e Azarias (“O Senhor ajudou”),
nomes verdadeiros dos três jovens, alterados por Nabucodonosor para nomes de
divindades pagãs, lembram o caráter bondoso e o poder de Deus ao preservá-los
das chamas. Por sofrerem perseguição por causa da justiça, esses homens se tornaram
bem-aventurados no fim de sua prova. Os novos nomes com os quais os vencedores
serão batizados darão semelhante testemunho a todo o Universo. No fim, tal como
se deu na experiência da fornalha ardente, o desfecho redundará na glória de
Deus e na honra de Seus filhos, “pois não há outro Deus que possa livrar como
Esse” (Dn 3:29).
Os carrascos que os levaram para a agonia sucumbiram ante o
poder da altíssima temperatura. Da mesma forma, Satanás que nos empurra para o
fogo, ele mesmo, no devido tempo e junto com todos os seus algozes, perecerá
nas chamas eternas (Ap 20:14). A causa do sofrimento terá seu fim com a
aproximação da “outra fornalha”. Assim, quando a promessa divina se cumprir e
todo o vestígio do mal desaparecer por completo, a fornalha da Terra será acesa
momentos antes de a eternidade começar; desta vez pelo próprio Deus. O mundo
virará uma grande fogueira e para dentro dela serão lançados o mal, a morte e o
sofrimento, os quais perecerão com seu autor, o ente do mal. Nesse desfecho
cósmico, um cântico de livramento será entoado pelos que “vieram da grande
tribulação” (Ap 7:14).
Do sofrimento passaremos para a eterna adoração Àquele que
experimentou na carne as dores da humanidade, mas que trouxe, por fim, a
redenção. Nesse instante de triunfo, o fogo do sofrimento é apagado e a
fornalha transformada num mundo seguro e protetor. O epílogo traduz alegria e a
palavra final é salvação. Toda criatura proclama, num único coro universal, e
sem gota alguma de amargura, que “Deus é amor”. Mas enquanto a libertação
eterna do sofrimento não chega e o homem não entoa o “cântico de Moisés e do Cordeiro”
nas ruas de ouro da Nova Jerusalém, é possível cantar aqui, “na velha
Jerusalém”, outro cântico, o da resistência na graça: a música cuja melodia
está dividida entre a tragicidade insistente deste mundo e a esperançosa
alegria sem fim do outro. Assim, em relação “às aflições do tempo presente”, o
homem de fé aprende mais uma lição. Ele pode entrar na fornalha e sair dela
cantando:
Por Teu amor, eu pude entender / Que minha dor me ajuda a
procurar Você. / A Tua graça me basta, não preciso de mais nada; / Os espinhos
já não causam pavor. / Eu agradeço por me fazer / Depender de Ti, Senhor.
(Frank Mangabeira, membro da
Igreja Adventista do Bairro Siqueira Campos, Aracaju, SE; servidor do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe)