Vivemos ainda na tão proclamada pós-modernidade, sob o guarda-chuva
conceitual do “Deus está morto” nietzschiano, seja qual for a interpretação
dada a esse pensamento. Sendo assim, esta é uma época caracterizada pela
incerteza e, como tal, um tempo de pluriontologias em que – na opinião das
pessoas guiadas pelo nietzscheísmo ou por outras filosofias relativistas – não
há resposta última, absoluta ou definitiva para explicar a realidade. A impressão
que se tem, no entanto, é a de que as metanarrativas não morreram com a suposta
morte de Deus, mas continuam por aí competindo entre si e guerreando com
as “espadas” da ciência, da filosofia e da teologia.
O pluralismo ontológico - estranho desafio à metafísica - “sustenta que
realmente não há uma resposta certa para muitas perguntas ontológicas. De
acordo com o pluralista ontológico, há apenas maneiras diferentes de descrever
a realidade, e nenhuma delas é mais correta ou mais precisa do que a outra. Não
há nenhuma verdade absoluta em resposta a essas perguntas”. Em resumo, tudo é
provisório, e estar convicto de algo seria o mesmo que se autoenganar ou,
quando muito, participar de um jogo de linguagens. Consequentemente, a pergunta
“o que é a verdade?” perde o sentido, restando apenas a crença de que a verdade
é um construto da mente humana. Todavia, há um impulso por respostas profundas
agitando o íntimo do homem, sempre incomodando-o. Ele não abre mão, sobretudo, de
tentar entender a origem do Universo e do mundo nos quais está inserido.
Inquieta e curiosa, a humanidade lança o olhar ao longínquo e nebuloso passado
e indaga: “Qual ontologia poderia me dizer de onde eu vim e quem eu sou?”
Na concepção científica majoritária, a teoria geral da evolução (nas
suas modalidades de evolução cósmica, química e biológica) constitui o fator
explanatório por excelência “capaz” de apresentar respostas acerca das origens.
O discurso de seus porta-vozes mais dogmáticos propõe: “Darwin efetivamente
varreu o propósito para o lado no mundo vivo”, e “todas as reimposições do
propósito são artifícios dos religiosos para alimentarem a sua fé”. Pensando
assim, Peter Atkins, químico de Oxford, não vê nenhuma contribuição a ser
oferecida pela religião, pois ela só apresenta “soluços vazios e flatulência
verbal que passa por exposição teísta”. Na imaginação radical desse cientista
ateu, “a humanidade deve aceitar que a ciência eliminou a justificação para
crer no propósito cósmico”. Em seu livro Creation Revisited, Atkins acredita que o Universo surgiu porque “por acaso houve uma
flutuação no vazio”: tese mais espantosa e fantástica do que apelar para o
Criador!
Os opositores do modelo bíblico das origens acentuam a superioridade da
teoria da evolução como o melhor modelo apresentado pela ciência, caso Deus
seja excluído das explicações. Entretanto, conforme salienta o zoólogo
criacionista Ariel Roth, “a perseverança que os evolucionistas têm demonstrado
é altamente elogiável. Mas, após dois séculos de uma busca essencialmente
infrutífera, chegou a hora de os cientistas considerarem com seriedade
alternativas não naturalistas. O planejamento da vida por uma inteligência
racional como Deus parece necessário para explicar aquilo que a ciência está
continuamente descobrindo”. Porém, esclarece Roth, “essencialmente Deus é
excluído dos compêndios e revistas científicos. Como atualmente praticada, a
ciência é uma combinação peculiar de pesquisa em busca da verdade sobre a
natureza, e de filosofia secular excludente de Deus. Lidamos hoje com uma
comunidade científica que tem esse forte compromisso materialista (mecanicista,
naturalístico), que considera anticientífico incluir Deus como fator
explanatório na ciência. Não é permitida a presença de Deus no cardápio das
possíveis explanações científicas. Isso desmente o quadro usual da ciência, que
é apresentada como pesquisa aberta da verdade, que segue os dados da natureza
para onde eles possam conduzir”.
De várias maneiras, há esforços poderosos a fim de eliminar Deus da
paisagem do mundo natural. É “pecado” mencioná-Lo. Quanto a decifrar o enigma
das origens, a ciência materialista proclama sua total confiança na razão
humana e em suas ferramentas de laboratório. Nada contra a tentativa, uma vez
que “pode ser inofensivo pesquisar além do que a Palavra de Deus revelou, se
nossas teorias não contradizem fatos encontrados nas Escrituras; mas aqueles
que deixam a Palavra de Deus e procuram explicar Suas obras criadas por meio de
princípios científicos, estão vagando sem mapa nem bússola em um oceano
desconhecido”, adverte Ellen G. White.
O
orgulhoso cientificismo não reconhece a existência de uma fronteira demarcada
pela Revelação, além da qual não podemos passar; limite imposto pelo “está
escrito”. Em palavras mais exatas: “Precisamente como Deus realizou a obra da
criação, jamais Ele o revelou ao homem; a ciência humana não pode pesquisar os
segredos do Altíssimo. Seu poder criador é tão incompreensível como a Sua
existência”. Essa declaração de Ellen G. White encontra eco em Phillip Johnson,
um dos proponentes do Design Inteligente: “A investigação científica da origem
da vida está efetivamente fechada como se Deus tivesse reservado o assunto
apenas para Si mesmo.” Seria isso arbitrariedade divina, capricho, tal como a
mítica ação de Zeus que acorrentou Prometeu nos rochedos do Cáucaso porque o
titã roubou o fogo dos deuses e levou o conhecimento aos homens? Por que então
a porta da explicação última continua fechada? Quem sabe para levar o homem ao
reconhecimento de suas limitações; para mostrar-lhe que o domínio total da
matéria é de outro Ser; para conscientizá-lo de que não é um deus, mas
criatura; para frear o seu poder destruidor sobre a natureza e até para lhe
permitir avançar no conhecimento. E o mais importante: deixar viva no homem a
necessidade de adoração. Por isso, o Criador pergunta aparentemente em tom de
desafio:
Onde você
estava
Quando os elétrons bailaram pela primeira vez / E o
Universo ferveu, aceso, no calor da criação?
Por acaso, assistiu / Quando as bolhas de fogo
giraram em rodas amarelas, / E romperam, com chamas, os limites da escuridão?
Você não viu./ Nem contemplou o esplendor, / Pois
seus olhos humanos / Não suportariam o calor. / Mas Eu vi!
E foi você / Quem escreveu a melodia que ressoou em
ondas, / Chamando os átomos para dançar com as estrelas? / Certamente não foi,
/ Pois essa música foi escrita em tons maiores, / E veio autenticada com as
Minhas chancelas.
Você não a compôs. / Nem seguiu a melodia, / Pois
sua voz humana / Não alcança a escala. / Mas Eu cantei.
E como se atreve a dizer, / (Você, fraco, frágil e
passageiro) / “Eu sou quem observa: sem mim nada existe!”? / Tolo! Como se
vivesse para sempre! / Nem viu seu filho se formar no útero da mãe. / Ao
nascimento do Cosmos, há Um só que assiste.
Sim, Eu observei. / Eu fiz os traços / E dirigi os
passos / Eu sou o Senhor da Dança / Sou Eu.
No estudo da natureza não precisa haver duelo entre Deus e homem. As
sentenças poéticas acima podem ser entendidas como um convite à investigação,
ao raciocínio e à pesquisa, os quais levem em consideração o Agente divino como
o fundamento da realidade material. Vemos desafio semelhante nos capítulos 38 a
41 do livro de Jó, onde Deus Se apresenta como o “grande Inquisidor”,
levantando perguntas sobre o mundo natural perante o sofrimento inexplicável de
Sua criação. O texto mostra um Pai que cuida do mundo, especialmente dos seres
humanos (Mateus 10:29-31), evidenciando o controle e a soberania divina sobre
todos os fenômenos e acontecimentos, mesmo os mais dramáticos.
Investigar a natureza, dominando-a benignamente, significa encontrar a
Fonte espiritual da matéria, porquanto “qualquer que seja o ramo de
investigação a que procedamos com um sincero propósito de chegar à verdade,
somos postos em contato com a Inteligência invisível e poderosa que opera em
tudo e através de tudo”. As coisas criadas estão aí para nos ensinar não apenas
sobre elas mesmas, mas também acerca do seu Autor. Esta é a tese de Jó ao
declarar: “Mas, pergunta aos animais, e cada um deles te ensinará, e às aves
dos céus, e elas te farão saber; ou fala com a terra, e ela te instruirá, até
os peixes do mar te informarão. Qual dentre todas essas coisas não sabe que a
mão do Senhor fez isto?” (Jó 12:7-9). Igual pensamento tinha o teólogo e
filósofo medieval Boaventura. Ele acreditava ser a criação um guia para o
Criador: “Todas as criaturas deste mundo sensível conduzem a alma da pessoa
sábia e contemplativa para o Deus eterno, já que são as sombras, ecos e
efígies, os vestígios, imagens e manifestações desse primeiro princípio mais
poderoso, sábio e melhor que há; dessa origem eterna, luz e plenitude, dessa
Arte produtiva, exemplar e ordenadora. São postos diante de nós para que
conheçamos Deus; são sinais divinamente dados. Pois toda criatura é, por natureza,
um tipo de retrato e semelhança dessa Sabedoria eterna.”
No tocante a processos empíricos e laboratoriais, explicar o
funcionamento das leis da natureza permitiu à ciência grande desenvolvimento.
Contudo, a ciência humana ainda é uma criança assustada e impotente quando se
depara com o “início dos tempos”. Sonhar, conjecturar, hipotetizar e
construir modelos teóricos é o máximo que ela consegue. Verdadeiramente,
“pensar os pensamentos de Deus de acordo com Ele”, consoante o ilustre
astrônomo Johannes Kepler, deveria ser o objetivo do empreendimento científico,
já que “o principal objetivo de todas as investigações do mundo exterior
deveria ser o de descobrir a ordem racional nele imposta por Deus e por ele
revelada na linguagem da matemática”.
No princípio...
Em se tratando das origens, sempre nos sustentaremos em argumentos de
autoridade: ou no que afirmam os cientistas e filósofos com suas controversas
especulações ou no que declara a Revelação. Com Gênesis ou sem o fiat divino, essa busca por explicações só indica uma coisa: queremos
saber! Não há objetivo filosófico e científico mais nobre. Entretanto, a
resposta última e mais adequada terá características sempre metafísicas e
religiosas: Deus fez! Quando os cientistas, com seus processos de investigação,
reconhecerem tal fato, terão realizado sua maior descoberta e dado o maior
salto de humildade da história.
Frank de Souza Mangabeira