A democracia francesa está sob severa ameaça. A França que espalhou pelo mundo as noções de cidadania e direitos humanos; a França de Victor Hugo; a França da Paris que recebeu intelectuais perseguidos do mundo todo (inclusive dos Estados Unidos); a França que presenteou os Estados Unidos com a Estátua da Liberdade; a França de sábios com tremendas sensibilidades sociais, como Morin e Levi-Strauss, para citar dois. Essa França está sendo ameaçada. Por quem?
O relatório de uma comissão parlamentar diz: “O uso do véu islâmico integral é um desafio à nossa república. É inaceitável. Devemos condenar esse excesso.”[1] Sobre isso, Sandeep Gopaplan comenta: “Se menos de duas mil mulheres muçulmanas podem representar um desafio à república, então a França foi fundada sobre bases muito frágeis.”
O Presidente Sarkosi disse em 2007 que a “a França não abandonará as mulheres condenadas à burca”.
Considerando que a França ainda garante a liberdade religiosa, fica mais difícil entender como duas mil mulheres que vivem num país livre são forçadas a se libertarem de sua fé. Como essas mulheres podem considerar libertador um governo que as ofende na liberdade mais sagrada: a liberdade de consciência e crença? Até quando convém bloquear minorias e suas tradições? Será que o governo é capaz de definir o que é melhor para as mulheres? E, seguindo o relatório de especialistas, ao governo cumpre tirar a burca das duas mil mulheres, porque ele, governo, sabe o que é melhor para elas?
Sendo assim, na França é proibido ter e expressar as opiniões pessoais, pois o pessoalismo nos afasta da liberdade de ser igual a todos ao nosso redor. Ser francês é ser igual.
E as rebeldes? Bom, elas pagarão caro, pois rejeitaram lutar por uma democracia. Pagarão caro, pois a França não aceita quem lute pela liberdade. Só quem luta pela democracia francesa, a democracia em que todos são exatamente iguais, em que todos são livres para ser integralmente iguais. E se alguém usar burca, está sendo integralmente diferente, logo esse – ainda que sejam apenas duas mil muçumanas – que faz assim está ameaçando a república; pode destroçar a torre Eiffel e destruir o Arco do Triunfo – daí será o triunfo da tirania islâmica em solo francês. Logo, é melhor que tenhamos a republica viva, ainda que para isso tenhamos que escarnecer e ridicularizar os muçulmanos em solo francês. França unida na fé cristã, na democracia dos iguais, na alienação das minorias, na rejeição dos direitos humanos básicos pelos pretextos mais indecentes, perseguindo mulheres que querem seguir fielmente suas crenças sem agredir de forma alguma aos demais.
Sobre o valor da liberdade religiosa, o nosso grande jurista Rui Barbosa escreveu, quando traduziu O Papa e o Concílio, de Janus (autor francês, diga-se de passagem): “O regime liberal, o nivelamento das confissões religiosas perante a lei, esse, sim, que é o sistema racionável e eficaz, legítimo e estável, o que, como definitiva linha divisória e mútua garantia entre as duas sociedades, preenche cabalmente as condições de oportunidade, juridicidade, congruência e solidez. Numa dessas necessidades eternas da nossa organização moral, que representam o cunho sensível do direito, assenta ele primordialmente; e dentre todas as vantagens, dentre todos os títulos que podem autorizar uma novidade, aconselhar uma reforma, sagrar uma instituição, nenhum é mais alto, mais respeitável, mais imperioso. De todas as liberdades sociais nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e tão frutificativa, e tão civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do evangelho, como a liberdade religiosa.”[2]
Gopalan diz: “Uma sociedade civilizada é exatamente aquela em que temos a liberdade de fazer alguma coisa que pode ser impopular ou desagradável, mas é inofensiva e legal. Não podemos descartar esse fato levianamente.”
Infelizmente, os políticos franceses consideram levianamente os direitos religiosos e os direitos das minorias; consideram levianamente o valor de uma sociedade pluralista e multirreligiosa, onde todas as pessoas de bem, de todas as crenças, carregam em si uma ética republicana de tolerância, liberdade e zelo pelo patrimônio público.
É só por isso que a burca incomoda.
(Silvio Motta Costa, professor da rede pública em Campinas, SP)
1. Gopalan, Sandeep, “A burca não é só a burca”, tradução de Terezinha Martino, Caderno Aliás J15, O Estado de São Paulo, domingo 31 de janeiro de 2010.
2. Barbosa, Rui, introdução do tradutor para o livro O Papa e o Concílio, de Janus, Editora Elos, Rio de Janeiro, 3ª Edição.
O relatório de uma comissão parlamentar diz: “O uso do véu islâmico integral é um desafio à nossa república. É inaceitável. Devemos condenar esse excesso.”[1] Sobre isso, Sandeep Gopaplan comenta: “Se menos de duas mil mulheres muçulmanas podem representar um desafio à república, então a França foi fundada sobre bases muito frágeis.”
O Presidente Sarkosi disse em 2007 que a “a França não abandonará as mulheres condenadas à burca”.
Considerando que a França ainda garante a liberdade religiosa, fica mais difícil entender como duas mil mulheres que vivem num país livre são forçadas a se libertarem de sua fé. Como essas mulheres podem considerar libertador um governo que as ofende na liberdade mais sagrada: a liberdade de consciência e crença? Até quando convém bloquear minorias e suas tradições? Será que o governo é capaz de definir o que é melhor para as mulheres? E, seguindo o relatório de especialistas, ao governo cumpre tirar a burca das duas mil mulheres, porque ele, governo, sabe o que é melhor para elas?
Sendo assim, na França é proibido ter e expressar as opiniões pessoais, pois o pessoalismo nos afasta da liberdade de ser igual a todos ao nosso redor. Ser francês é ser igual.
E as rebeldes? Bom, elas pagarão caro, pois rejeitaram lutar por uma democracia. Pagarão caro, pois a França não aceita quem lute pela liberdade. Só quem luta pela democracia francesa, a democracia em que todos são exatamente iguais, em que todos são livres para ser integralmente iguais. E se alguém usar burca, está sendo integralmente diferente, logo esse – ainda que sejam apenas duas mil muçumanas – que faz assim está ameaçando a república; pode destroçar a torre Eiffel e destruir o Arco do Triunfo – daí será o triunfo da tirania islâmica em solo francês. Logo, é melhor que tenhamos a republica viva, ainda que para isso tenhamos que escarnecer e ridicularizar os muçulmanos em solo francês. França unida na fé cristã, na democracia dos iguais, na alienação das minorias, na rejeição dos direitos humanos básicos pelos pretextos mais indecentes, perseguindo mulheres que querem seguir fielmente suas crenças sem agredir de forma alguma aos demais.
Sobre o valor da liberdade religiosa, o nosso grande jurista Rui Barbosa escreveu, quando traduziu O Papa e o Concílio, de Janus (autor francês, diga-se de passagem): “O regime liberal, o nivelamento das confissões religiosas perante a lei, esse, sim, que é o sistema racionável e eficaz, legítimo e estável, o que, como definitiva linha divisória e mútua garantia entre as duas sociedades, preenche cabalmente as condições de oportunidade, juridicidade, congruência e solidez. Numa dessas necessidades eternas da nossa organização moral, que representam o cunho sensível do direito, assenta ele primordialmente; e dentre todas as vantagens, dentre todos os títulos que podem autorizar uma novidade, aconselhar uma reforma, sagrar uma instituição, nenhum é mais alto, mais respeitável, mais imperioso. De todas as liberdades sociais nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e tão frutificativa, e tão civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do evangelho, como a liberdade religiosa.”[2]
Gopalan diz: “Uma sociedade civilizada é exatamente aquela em que temos a liberdade de fazer alguma coisa que pode ser impopular ou desagradável, mas é inofensiva e legal. Não podemos descartar esse fato levianamente.”
Infelizmente, os políticos franceses consideram levianamente os direitos religiosos e os direitos das minorias; consideram levianamente o valor de uma sociedade pluralista e multirreligiosa, onde todas as pessoas de bem, de todas as crenças, carregam em si uma ética republicana de tolerância, liberdade e zelo pelo patrimônio público.
É só por isso que a burca incomoda.
(Silvio Motta Costa, professor da rede pública em Campinas, SP)
1. Gopalan, Sandeep, “A burca não é só a burca”, tradução de Terezinha Martino, Caderno Aliás J15, O Estado de São Paulo, domingo 31 de janeiro de 2010.
2. Barbosa, Rui, introdução do tradutor para o livro O Papa e o Concílio, de Janus, Editora Elos, Rio de Janeiro, 3ª Edição.