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Não querer ver isenta da culpa? |
A
teoria da cegueira deliberada (willful
blinedness), objeto do presente estudo, também é conhecida no meio
doutrinário como teoria das instruções da avestruz (Ostrich Instructions), justamente devido ao fato de que o
mencionado animal tem o costume de enterrar sua cabeça para não ver e ouvir as
coisas que se passam a sua volta. Destaque-se, de princípio, que essa teoria
teve sua origem na Suprema Corte dos Estados Unidos, no chamado caso “In re
Aimster copyright litigation”, que envolvia uma disputa sobre violação de direitos
autorais. Nessa decisão, a Corte firmou o entendimento no sentido de que o
acusado não poderia alegar em sua defesa que não tinha conhecimento sobre a
violação dos direitos autorais nos arquivos disponibilizados por ele,
conforme se depreende do seguinte trecho da decisão:
“Nós
também rejeitamos o argumento de Aimster no sentido de que o recurso de
criptografia do serviço oferecido por Aimster o impedia de saber quais músicas
estavam sendo copiadas pelos usuários de seu sistema. Dessa forma, não
pode prosperar a alegação de que ele não tinha o conhecimento da atividade
ilícita, o que é uma exigência para a responsabilização pela conduta de
contribuir para a infração de direitos autorais. Cegueira voluntária
é o conhecimento [...] é a situação em que o agente, sabendo ou suspeitando
fortemente que ele está envolvido em negócios escusos ou ilícitos, toma medidas
para se certificar que ele não vai adquirir o pleno conhecimento ou a exata
natureza das transações realizadas para um intuito criminoso. Em ‘United
States v. Giovannetti’ (1990) restou estabelecido que o esforço deliberado
para evitar o conhecimento da ilicitude é tudo que a lei exige para estabelecer
a culpa do acusado. Em ‘United States v. Josefik’ (1985), restou
estabelecido que não querer saber porque se suspeita, pode ser, se não for o
mesmo estado de espírito, o mesmo que a prática de uma conduta culposa. Em
‘United States v. Diaz’, o acusado deliberadamente isola-se da transação
de drogas real para que pudesse negar o conhecimento da transação ilícita, o
que fez, por vezes, ao se afastar da entrega efetiva da droga. [...] O acusado
não pode fugir as suas responsabilidades pela manobra, não pode sustentar a
alegação de que o software de
criptografia o impede de ter conhecimento da violação de direitos autorais,
que ele fortemente suspeita que ocorre [...], suspeita essa de que todos
os usuários do seu serviço são, de fato, infratores de direitos autorais”.
Em
linhas gerais, a teoria da cegueira deliberada pode ser aplicada em
determinadas situações em que o agente finge não perceber a origem ilícita dos
bens adquiridos por ele com o intuito de auferir vantagens. Em outras palavras,
ele se faz de bobo visando a não tomar ciência da extensão da gravidade da
situação em que ele está envolvido.
Contudo,
para que a teoria possa ser aplicada, é necessário que fique demonstrado que o
agente tinha ciência da elevada possibilidade do objeto material do crime ser
de origem ilícita. Trata-se, na maioria dos casos, de uma clara situação de
dolo eventual, onde o sujeito ativo vislumbra a possibilidade do resultado lesivo
proveniente de sua conduta, mas pouco se importa com a sua ocorrência.
No
Brasil, a teoria da cegueira deliberada vem sendo aplicada, especialmente, nos
crimes de lavagem de capitais, como ocorreu no caso do furto ao Banco Central
de Fortaleza, no ano de 2005. Na ocasião, os criminosos se valeram do dinheiro
furtado para adquirir onze veículos em uma concessionária, pagando, para tanto,
o valor de um milhão de reais em espécie.
Na
decisão em primeira instância, o Juiz entendeu que os donos da concessionária
fecharam os olhos para os fortes indícios de que o dinheiro utilizado no
negócio era de origem ilícita, especialmente devido ao grande furto ocorrido no
dia anterior.
Apesar
disso, os suspeitos foram absolvidos em segunda instância, pois o Tribunal Regional
Federal da 5ª Região entendeu que o crime previsto no inciso II, do §
2º, do artigo 1º, da Lei 9.613/98, exige a ciência expressa por parte
do agente e não, apenas, o dolo eventual. A decisão destacou, ainda, que a
aplicação da teoria da cegueira deliberada nesse caso beiraria a responsabilidade
penal objetiva, que, por sua vez, não é admitida no direito brasileiro.
Feita
esta breve introdução, consignamos que o objetivo principal deste estudo é
defender a aplicação da teoria da cegueira deliberada ao crime de receptação,
que, assim como os crimes de lavagem de capitais, é tido pela doutrina como
delito parasitário ou acessório, o que, em nosso entendimento, apenas reforça a
aplicação da teoria.
O
delito de receptação está tipificado no artigo 180 do Código
Penal e tem como objeto jurídico o patrimônio, punindo, em linhas gerais,
a conduta daqueles que adquirem, recebem, transportam, conduzem ou ocultam, em
proveito próprio, coisa que sabem ser produto de crime anterior. [...] [Se
quiser ler mais sobre esse delito em específico, clique no link abaixo.]
Nota:
Em relação ao texto acima, o leitor André Fletcher chama atenção para um paralelo que pode ser feito com a
questão da ignorância voluntária por quem, não conhecendo, não quer conhecer a
vontade de Deus, bem como por quem, conhecendo, não quer se aprofundar mais. “O
que se evidencia, em ambos os casos, o eximir-se das responsabilidades quanto a
conhecer o que se deve ou não fazer para que a consciência não os acuse após
obterem conhecimentos de cunho moral”, escreve ele.