Hoje
fui surpreendido com uma “notícia” no mínimo inusitada publicada no site do
jornal Folha de S. Paulo. O título: “‘Deus é como a fada do dente’, diz jovem
criado em família de adventistas do sétimo dia.” Das duas uma: ou a Folha está sem matérias relevantes para
publicar neste domingo, ou quis mesmo fazer uma provocação gratuita e sem
sentido. A reportagem fala de um jovem de 19 anos chamado Guilherme
Dangel e diz que ele “não achava certo que uma professora do colégio público
onde estudava começasse suas aulas recitando um salmo da Bíblia. Liderou um
protesto para que a laicidade do ensino fosse respeitada. A manifestação deu
certo. A professora, evangélica, trocou a oração por um minuto de silêncio.
Guilherme passou a se reunir com ateus e ativistas a favor da separação entre
religião e Estado”.
Já
seria meio estranho todo esse destaque para um rapaz que se insurgiu contra o “proselitismo”
da professora (garanto que se ela lesse reflexões humanistas ou qualquer outro
tipo de texto, quem sabe de Dawkins, não haveria problema), mas o que vem a
seguir torna ainda mais estranha essa pauta enviesada: “Criado em uma família
de adventistas do sétimo dia, Guilherme não sabe, exatamente, desde quando é
ateu, nem se lembra da última vez em que compareceu a um culto religioso. Foi
por uma amiga que ouviu falar pela primeira vez no ateísmo. Usou a rede social
Orkut para se informar melhor sobre a orientação, e a abraçou desde então. ‘Não
acho que tudo no mundo tenha uma explicação’, defende Guilherme. ‘A crença em
Deus é um conforto. Não tenho nada contra quem acredita, mas, para mim, ele é
um pouco como a fada do dente.’”
Será
que o fato de o moço abandonar a fé para abraçar o ateísmo torna a pauta tão
relevante assim? E os casos ainda mais importantes de descrentes famosos, como
Francis Collins e Antony Flew (para mencionar dois), que fizeram o caminho
inverso depois de muito estudar e acumular experiência na vida, por que não
recebem destaque? Histórias de ex-ateus não são tão relevantes ou há uma agenda
por trás desse tipo de reportagem publicada pela Folha?
Guilherme
comete o clássico erro de confundir estado laico com estado ateu, que, pelo
visto, é o que ele quer. Num estado laico, deve, de fato, haver separação entre
igreja e Estado (e isso é defendido pela Igreja Adventista), mas não pode haver
proibição de as pessoas partilharem sua fé ou a falta dela. Mesmo que se
discorde do fato de a professora querer partilhar com os alunos textos
inspiracionais reconhecidos por incontáveis pessoas ao longo da história (quase
clássicos da literatura religiosa), não se pode dizer que isso é proselitismo
que viole o princípio do Estado laico.
Segundo
a Folha, “Guilherme afirma não sofrer
preconceito por parte dos amigos nem nos empregos pelos quais passou - durante
um ano e meio, dividiu as aulas com um estágio na EMTU (Empresa Metropolitana
de Transportes Urbanos) e o trabalho numa empresa de telemarketing. Mas ele não esteve isento de xingamentos na escola: ‘Já
fui chamado de anticristo, idiota, herege - herege é um clássico’, brinca.”
Aí
já se trata de desrespeito (quase como querer impedir a professora de partilhar
algo de que ela gosta, não se tratando de proselitismo). Ninguém merece ser
xingado ou discriminado por causa de sua fé ou da ausência dela. Estado laico é
isto mesmo: um Estado no qual todos possam ter e manifestar em paz suas
ideologias.
Finalmente,
segundo o jornal, o moço “vê o Brasil como um lugar pouco afeito aos que não
acreditam em Deus”. Se ele tivesse continuado na Igreja Adventista, veria como
é ainda mais difícil ser criacionista num país de maioria absoluta
evolucionista (afinal, 60% dos brasileiros acreditam em Deus e em Darwin).
Guilherme
tem a vida toda pela frente. Muito para estudar e muito para amadurecer. Poderá
mudar de ideia, eventualmente. Quem sabe até voltar às suas origens. Mas, se
isso acontecer, será que a Folha vai
se interessar?
Quando
li essa reportagem despropositada, me lembrei de um texto do pastor evangélico Ed René Kivitz, que vale a pena ser relido neste momento (fiz apenas uma adaptação:
troquei bicho-papão por fada do dente):
Não conheço nenhum adulto que acredita em fada do
dente.
Não conheço nenhuma civilização baseada em fada do
dente.
Não conheço nenhuma religião que considere a fada do
dente um ser divino.
Nunca ouvi uma pessoa dizer que foi transformada pela
fada do dente.
A fada do dente não constitui o dilema existencial
humano desde sempre.
Nenhuma tradição de pensamento humano se ocupa com a
fada do dente.
Nenhum gênio da humanidade viveu atormentado por
causa da fada do dente.
A fada do dente não se sustenta num texto
considerado sagrado por mais da metade da população mundial, escrito ao longo
de dois mil anos, por 40 autores diferentes.
Não existe quem atribua a existência do Universo à fada
do dente.
Jamais alguém defendeu sua fé na fada do dente com a
própria vida.
Nenhuma das virtudes humanas é associada à fada do
dente.
A fada do dente não é uma crença universal e
atemporal.
A fada do dente não ajuda a explicar o mundo em que
vivo.
A fada do dente não ajuda a explicar a complexidade
da raça humana.
A fada do dente não ajuda a explicar o homem que
sou.
Nota 1: Com esta reportagem (clique aqui), o jornal Gazeta do Povo prova que sabe escolher pautas mais relevantes sobre pessoas que realmente fizeram diferença na vida de quem precisava.
Nota 2: Vale a pena relembrar uma citação de Noam Chomsky: “A
primeira coisa que se deve fazer é preocupar-se com seu cérebro. A segunda é
abstrair-se de todo esse sistema [de doutrinamento]. Existe um momento em que
isso se torna um reflexo de ler a primeira página do L. A. Times em busca dos enganos e das distorções, um reflexo de
recolocar tudo aquilo em uma espécie de quadro racional. Para chegar a esse
ponto, é preciso ainda reconhecer que o Estado, as corporações, as mídias e
assim por diante o consideram um inimigo: então, você deve aprender a se
defender. Se tivéssemos um verdadeiro sistema de educação, daríamos cursos de
autodefesa intelectual.”