quarta-feira, maio 01, 2013

Sertanejo universitário e a imbecilidade monossilábica

[O texto é longo, mas vale a pena ser lido.] [...] O “idioma da velocidade” [...] pode-se considerar como sendo o sistema de comunicação mediante o qual o interlocutor prioriza a ligeireza da interlocução: o diálogo deve ser rápido, fluido, “líquido”, mesmo que, para tal fim, seja preciso sacrificar regras comezinhas de sintaxe ou abreviar impiedosamente as palavras. A ideia de “idioma da velocidade”, que ora estou a propor, encontrou terreno fecundo na música comercial brasileira. Especificamente,  refiro-me ao gênero que se convencionou chamar de “sertanejo universitário” – atualmente dominante em todas as rádios do País.

O conceito de “sertanejo universitário” é dos mais obscuros do cancioneiro nacional. Trata-se de uma aparente “contradictio in terminis”, afinal, “sertanejo” remete à ideia de “sertão”, área agreste, rústica, visto que distanciada dos grandes centros urbanos. Já “universitário” é adjetivo que se liga incontinenti à “universidade”, isto é, espaços de difusão dos saberes científico e filosófico e que, o mais das vezes, situam-se justamente em áreas de intensa urbanização. Por isso, já houve quem quisesse definir “sertanejo universitário” como sendo o “caipira que passou no vestibular” ou “o cidadão urbano com origens no sertão”. Nenhum desses conceitos, é claro, corresponde à realidade. De “sertanejo” esse universitário não tem absolutamente nada. Cuida-se, sim, da juventude da cidade que decidiu colocar um chapéu de cowboy e “cair na balada”.

Do ponto de vista musical, o sertanejo universitário hoje é um gênero musical utilizado comumente para designar a fórmula da “música dançante feita para gente descerebrada”. É o correspondente hodierno, do século 21, ao que foi a axé music no fim do século 20, mais precisamente na década de 1990: a demonstração cabal de que o físico alemão Albert Einstein estava certo quando afirmou: “Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, quanto ao universo, ainda não estou completamente certo disso”.

A década perdida da música brasileira
 
Recordando os tristes anos de 1990, a década perdida da música brasileira, o império da axé music na indústria fonográfica nacional proporcionou algumas das mais constrangedoras composições que alguém, su­postamente um ser racional, já foi capaz de escrever. Naqueles idos, expressões do quilate de “vai dançando gostoso, balançando a bundinha” tornaram-se símbolos de uma geração destruída pelo assédio constante da lógica hedonista do “prazer carnavalesco ininterrupto, curtição acéfala e exibicionismo de corpos plasticamente esculpidos na academia”. Era o princípio de uma tendência irrefreável, que só se acentuaria ao longo dos anos na música brasileira: a substituição do cérebro pelas nádegas. Era o começo da MIB: Música Imbecil Brasileira. O acrônimo de uma geração de jovens destruída pela estultice.

O grau de estupidez a que os ouvidos humanos foram submetidos nessa “idade das trevas” das rádios do País pode ser muito bem representado num dos hits do mais emblemático dos grupos surgidos no período. Refiro-me ao É o Tchan e a sua antológica “Na boquinha da garrafa”, sucesso radiofônico absoluto, cujas coreografias foram repetidas incessantemente em programas de auditório dominicais, com suas dançarinas calipígias “engatando” bem-sucedidas carreiras nas capas de revistas masculinas e no mundo das sub-celebrity. Vejamos: “No samba ela gosta do rala, rala. Me trocou pela garrafa. Não aguentou e foi ralar. Vai ralando na boquinha da garrafa. É na boca da garrafa. Vai descendo na boquinha da garrafa. É na boca da garrafa.”

A letra dispensa comentários e, por si só, revela a mais absoluta falta de respeito próprio, menos de quem compôs e produziu o grupo – um empresário na tarefa de lucrar na indústria do kitsch –, mais da parte de quem anotou na sua biografia momentos de supremo constrangimento “ralando na boquinha da garrafa”. [...] 

Nos anos 2000, no entanto, a axé music entrou em colapso no mercado. Os carnavais fora de época (micaretas) foram aos poucos desaparecendo pela perda crescente de público. Os grupos “clássicos” do período deixaram de existir não por brigas de seus integrantes, mas pela simples falta de shows. O mercado usou e abusou da axé music enquanto era lucrativa. Quando deixou de sê-lo, descartou-a, substituída que foi, nas rádios comerciais, pelo forró universitário e pelo funk carioca (cuja nomenclatura correta é “batidão”). Nem mesmo o movimento da “suingueira”, capitaneado por “pérolas” do nível de “Re­bolation”, associado a um amplo apelo midiático que tem por diretriz espicaçar os “sucessos do carnaval”, conseguiu ressuscitar o declínio inexorável daquele gênero musical moribundo.

O jovem hedonista do século 21 no Brasil

Entretanto, o mercado, no capitalismo, nunca pode parar na sua incessante busca pela rentabilidade. Ele precisa encontrar novos meios de entretenimento que gerem lucros vultosos. A fórmula mais fácil disso é, indiscutivelmente, estimular a imbecilidade da juventude. Sem escrúpulos.

Os meios de comunicação de massa cumprem, então, o seu papel: associam a ideia de “ser jovem” com a de “ser um imbecil”, aqui entendido como um irresponsável, que não se importa com nada que não seja o próprio prazer, imediato, rápido, fluido, como deve ser a linguagem nos tempos da globalização digital.

O sertanejo universitário surge nesse contexto. Ele vem ocupar o espaço dos ritmos que se prestam a proporcionar “diversão sem compromisso”, expressão que não quer outra coisa senão mascarar a baixíssima qualidade da música produzida, além de servir como sentença de absolvição da mediocridade humana de quem ouve esse estilo. Entender o estereótipo do sertanejo universitário, dessa ma­nei­ra, afigura-se como sendo da mais alta relevância para a compreensão da ideia corrente do que é ser um jovem hedonista no século 21. É o desafio a que me proponho a partir de agora.

O perfil estereotípico do sertanejo universitário

Naturalmente, numa empresa dessa envergadura, precisarei recorrer às letras de algumas das composições mais re­presentativas do estilo. Cuida-se de analisar como pensam os grandes artistas do gênero para, ao final, ro­bustecer um juízo estético-sociológico sobre este conceito indecifrável do “sertanejo universitário”.

Nesse sentido, creio que uma das suas primeiras características é o desapego aos estudos. O sertanejo universitário é um hedonista por excelência. Seu adágio popular dileto, alçado à condição de mote da própria vida, é o clichê: “Pra que estudar se o futuro é a morte?”

Desse modo, pode ser concebido como um jovem, de péssima formação intelectual e que, a despeito de cursar uma faculdade, não está nem um pouco preocupado com os estudos. Para ele, só existe a balada (o prazer imediato). É o que notamos na composição “Bolo doido”, da dupla “Guilherme e Santiago”: “Ai ai ai, sexta-feira chegou! Quem não guenta bebe leite e quem guenta vem comigo. Na sexta-feira, o bar virou uma micareta.  Mulherada foi solteira e os meus amigos loucos pra beber. Da faculdade eu fui pra festa tomar todas com a galera. E fiz amor até amanhecer. Toquei direto, fui à praia com as gatinhas na gandaia. Minha galera bota é pra ferver. Segunda de madrugada, travado, cheguei em casa. Sete horas acordei com uma ressaca, tinha prova pra fazer.”

Mas o sertanejo universitário, para levar uma vida de “baladeiro”, necessita de dinheiro, pois o vil metal tem o condão de, simultaneamente, torná-lo cliente especial da sociedade de consumo e despertar o interesse das garotas mais lindas da balada – verdadeiras empreendedoras no varejo dos relacionamentos humanos. Ele é, assim, um sujeito endinheirado. É o que se observa na composição “Ca­maro amarelo”, da dupla Mu­nhoz e Mariano: “Quando eu passava por você, na minha CG, você nem me olhava. Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber. Mas nem me olhava. Aí veio a herança do meu ‘véio’. E resolveu os meus problemas, minha situação. E do dia pra noite fiquei rico. ‘To’ na grife, ‘to’ bonito, ‘to’ andando igual patrão. Agora eu fiquei doce igual caramelo. ‘To’ tirando onda de Camaro amarelo. E agora você diz: ‘Vem cá que eu te quero.’ Quando eu passo no Camaro amarelo.”

Já sabemos, portanto, que o sertanejo, do tipo universitário, é jovem, de posses, sai da faculdade com seu Camaro amarelo direto para a balada e “bota a galera pra ferver”. Há quem lhe custeie os estudos. E, ainda que ao final de quatro ou cinco anos saia da faculdade no nível de um analfabeto funcional, seus genitores são suficientemente influentes para arranjar-lhe uma boa posição na iniciativa privada ou mesmo no serviço público.

O sertanejo universitário é sujeito destemido, porém sensível. Tem o dom da poesia in­crustado nas suas veias. Na balada, esse santuário da “pegação da mulherada”, sente a verve aflorar com facilidade, produzindo versos riquíssimos, como os que se notam na composição “Ai se eu te pego”, do cantor Michel Teló: “Sábado na balada. A galera começou a dançar. E passou a menina mais linda. Tomei coragem e comecei a falar. Nossa, nossa. Assim você me mata. Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego.”

De fato, é preciso ser muito perspicaz para rimar “dançar” com “falar”. Sobretudo, me impressiona a profundidade dos versos: quando passa a menina mais linda, ele toma coragem e fala. É um movimento controlado, premeditado. O eu lírico “toma coragem” e “parte para a caça” na balada. Inspirado pela beleza da garota, ele se aproxima e a corteja de uma maneira que qualquer mulher, de Carla Perez a Susan Sontag, sentir-se-ia enamorada: “Ai, se eu te pego”, “ai, se eu te pego”, ele repete à exaustão o verso aos ouvidos da “garota mais gostosa”.      

Contudo, talvez a característica mais significativa desta personagem – o sertanejo universitário – seja mesmo a preferência pelo “idioma da velocidade”. Sertanejo que é sertanejo universitário evita a prolixidade; é sucinto, direto, objetivo. Sua linguagem despreza floreios verbais, construções frasais longas, vocábulos de difícil entendimento. Dado o portento de seu talento poético, ele acentua a desnecessidade do vocabulário complexo, adepto que é da lógica do “dizer muito com muito pouco” ou do “falar fácil é que é difícil”. Conhecedor profundo da fonologia da gramática da língua portuguesa, ele lança mão do rico alfabeto fonético do idioma românico-galego e, conjugando-o com seu ideal filosófico de concisão e com as técnicas redacionais modernas que enaltecem o “texto enxuto”, passa a compor valorizando a mínima emissão de voz na entonação dos seus versos, economizando em palavras o que pode expressar, em seu entender, perfeitamente com vocábulos monossílabos. É daí que nasce a tendência manifesta das composições do estilo em priorizar a vocalização de uma única sílaba.

Exemplificativamente, temos: “Eu quero tchu, eu quero tcha”, de João Lucas e Marcelo: “Eu quero tchu, eu quero tchã. Eu quero tchu tcha tcha tchu tchu tchã. Tchu tcha tcha tchu tchu tchã.” “Eu quero tchu, eu quero tcha” é, sem dúvida, um dos mais formidáveis exemplos de como se pode economizar palavras, de como se pode fundir o dígrafo consonantal “ch” com o “t” e uma vogal (“a” ou “u”) e criar um hit nacional. O significado poético-filosófico do “tchu” e do “tcha” na composição também merece registro: o eu lírico cria um jogo de contrastes, antitético como as leis da dialética, onde o “tchu” só existe para o “tcha”, de modo que não pode haver “tcha” sem “tchu” nem “tchu” sem “tcha”. Daí o porquê de invocarem-se as expressões alternadamente, silabando-as na velocidade da luz: “Tchu tcha tcha tchu tchu tchã.”

Na mesma linha vem a composição “Tchá tchá tchá”, cantada por Thaeme e Thiago: “Ai, que vontade, ai, que vontade que me dá. De te colocar no colo e fazer o tchá tchá tchã. Tchá tchá tchá, tchá tchá tchã. Tchá tchá tchá, tchá tchá tchã. De beijar na sua boca, fazer o tchá tchá tchã. Tchá tchá tchá, tchá tchá tchã. Tchá tchá tchá, tchá tchá tchã. De beijar na sua boca e fazer o tchá tchá tchã.”

Outro exemplo notável do uso de monossílabos é observável em “Lê lê lê”, de João Neto e Fre­derico. Vejamos: “Sou simples. Mas eu te garanto. Eu sei fazer o Lê lê lê. Lê lê lê. Lê lê lê. Se eu te pegar você vai ver. Lê lê lê. Lê lê lê.”

Mais uma vez temos o eu lírico usando de monossílabos, economizando em palavras, porque riqueza vocabular tornou-se algo desprezível. Sendo possível conotar com um mero “lê”, por que falar mais? O “lê, lê, lê”, no entanto, guarda uma mensagem subliminar perigosa: se tomado isoladamente na segunda pessoa do imperativo afirmativo, pode vir a constituir-se em ordem para leitura. Nada mais distante do que pretende o compositor e a “filosofia de vida” que a­nima o sertanejo que frequenta a universidade. Logo, é preciso apreender o “lê lê lê” de maneira contextualizada, ou seja, como registro onomatopaico que emula o sentimento de autocompensação libidinosa do eu lírico diante da vergonha que é, numa sociedade de consumo, ter uma condição financeira oprobriosa.

A era da imbecilidade monossilábica

A partir das breves linhas expostas acima, penso que o leitor já se encontra habilitado a conceituar este personagem enigmático do cancioneiro nacional: o sertanejo universitário. Trata-se de um modelo hedônico de uma sociedade capitalista hedonista, marcadamente voltado ao consumo, onde ser um “idiota”, um “imbecil completo”, não só não é motivo de desonra – própria e familiar – como se consubstancia num status socialmente tolerado (diria mesmo instigado). É o estereótipo desejável da sociedade globalizada por relações líquidas sob o elo do idioma da velocidade: no falar, no vestir, no relacionar-se, tudo que se refere ao gênero humano passa numa piscadela. Na música, não é diferente. Predomina o sertanejo universitário como o modelo supremo da juventude irresponsável, mediocrizada, de baixíssimo nível cultural. As composições são cunhadas no esteio da pobreza vocabular de quem as escreve, mas também de quem as canta – em ambos os casos denunciando a mais absoluta falta de leitura. É um autêntico movimento circular, no qual aquele que nada tem a oferecer intelectualmente alimenta com sua arte quem já se encontra morrendo de inanição cerebral.

Por essas razões é que me sinto autorizado a declarar que, depois da hecatombe cerebral que a axé mu­sic proporcionou na década de 1990, contribuindo decisivamente na deseducação do povo brasileiro com seus versos de “balançando a bundinha” e “boquinha da garrafa”, o sertanejo universitário, gestado pela indústria fonográfica em crise, desponta como o meio mais fácil de lucrar em cima do desejo hedonístico, cotidianamente instigado pelos meios de comunicação, que impele o jovem a aproveitar a vida a qualquer preço, de qualquer maneira, custe o que custar – incluindo o próprio senso do ridículo daqueles aos quais falta massa encefálica para perceber o quão patético é idolatrar “artistas” incapazes de compor com vocábulos polissílabos. É quando aos olhos de uma garota, na balada, torna-se “bonito” ser um completo idiota. Com o sertanejo universitário, a MIB entrou definitivamente na “era da imbecilidade monossilábica”.

(Rafael Teodoro, advogado e músico; Jornal Opção)

Assista à palestra “O poder da música” (aqui).